“Se queres prever o futuro, estudas o passado.” A lição do pensador chinês Confúcio (551 a.C. a 479 a.C.) deveria servir como um mantra para este período que o mundo está vivendo. Mas não tem sido bem assim, avaliam especialistas em história. Em mais de um momento desde o registro da chegada do coronavírus ao Brasil, no final de fevereiro passado, a história está sendo reprisada em sua pior forma.

Autor do livro À sua saúde: a vigilância sanitária na história do Brasil (Anvisa, 2006), o jornalista e escritor Eduardo Bueno chama a atenção para coincidências entre a atual pandemia do novo coronavírus e a gripe espanhola, que, em dois anos, a partir de 1918, matou 20 milhões de pessoas em todo o mundo.

“O mais impactante de tudo em relação à pesquisa que fiz para esse livro foi sobre o momento específico em que a gripe chegou ao Rio de Janeiro, a bordo do navio inglês Demerara, no final de setembro de 1918. Carlos Seidl, diretor-geral do Departamento de Saúde, que seria hoje como um ministro da Saúde, convocou a imprensa,  no dia 10 de outubro, para defender a benignidade da gripe. Disse ainda que tudo o que estava acontecendo era causado pela histeria da imprensa, que ela estava amedrontando o povo e que por isto deveria ser censurada”, comenta Bueno.

Demissão Sete dias mais tarde, em 17 de outubro, Bueno conta, “quando só no Rio já havia mais de 800 mortos”, o então presidente Venceslau Brás (1914-1918), demitiu Seidl. “E, na hora em que ele deixou o Palácio do Catete,  ainda disse que poderia ser demitido, mas que assegurava que a maior forma de combater a gripe era censurando a imprensa.”

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Outras coincidências entre as duas pandemias, com um século de diferença, fazem referência ao quinino, apontado como capaz de curar a gripe. “O quinino, que custava 1, 6 conto de réis, passou a custar 9 contos. E as pessoas que precisavam dele, pois é importante para combater a malária, principalmente no Norte do país, não encontraram”, aponta Bueno, fazendo uma referência ao que ocorreu com a cloroquina nas últimas semanas.

A naftalina, segundo o jornalista, era o álcool em gel da época. “Ela era considerada fundamental em casa, para as roupas. E você não encontrava em lugar nenhum. Houve charges na época dizendo que trocavam-se beijos por naftalina.”

E Belo Horizonte? A capital mineira, então uma cidade recém-chegada aos 20 anos e com uma população de 50 mil pessoas, conviveu três meses com a gripe espanhola. “Ela chegou aqui em 7 de outubro de 1918, de trem, por meio de um oficial que veio da Vila Militar no Rio de Janeiro e foi para o bairro da Floresta”, conta a historiadora Anny Jackeline Torres Silveira, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).

Para sua tese de doutorado, Influenza espanhola e a cidade planejada: Belo Horizonte, 1918, defendida em 2004 na Universidade Federal Fluminense (UFF) e publicada em livro três anos mais tarde pela editora Fino Traço, Anny encontrou números tímidos. Entre outubro e dezembro de 1918, BH teve 3.867 notificações da gripe espanhola, que resultaram em 206 mortes.

“Havia uma diretoria de higiene que divulgava diariamente o número de novos casos, as pessoas curadas e as que haviam morrido. O grande problema das estatísticas é que o Estado não tinha infraestrutura capaz de dar conta da população como um todo. E havia pessoas que não queriam dizer que os parentes morreram da gripe, pois isto significava que aquela família, aquela casa, seria vista de forma diferente”, comenta Anny.

Em sua pesquisa nos jornais da época a historiadora encontrou indícios da disparidade. “Muitos cronistas da época falavam que o número de notificações ultrapassava os 10 mil.”

Assim como a BH de 2020, com ruas vazias, a capital de 1918 também teve cinemas, clubes e escolas fechados. “Uma das coisas que mais se mencionava era o problema do abastecimento, que já vinha desde a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e que só foi aprofundado com a pandemia. Há uma crônica que fala sobre as ‘roças gripadas’, que são os trabalhadores que viviam nos arredores de Belo Horizonte e, não podendo mais trabalhar, trazem uma quebra na produção.”

COLÔNIA 
A historiadora Mary Del Priore, especialista em história do Brasil, vai até o Brasil colônia para fazer analogias com os tempos atuais. “Já nas cartas jesuítas do século 16 se mostra claramente que os portugueses, chegando ao Brasil, trouxeram dois males que afetaram as populações indígenas: a varíola e a tuberculose.”

Segundo ela, no século 19 o Brasil fica conhecido pelas epidemias. “A tal ponto que os navios evitavam parar no Rio de Janeiro e iam para Buenos Aires. Aqui, se dizia, tinha de tudo: peste bubônica, varíola, febre amarela. Santos, no auge da exportação do café, por volta de 1890, teve que fechar o porto, que era por onde se escoava a produção.”

Os surtos das doenças acabaram causando revoltas populares. Uma das mais conhecidas foi a chamada Revolta da Vacina, ocorrida entre 10 e 16 de novembro de 1904, no Rio de Janeiro. “Todo mundo sabia que o Rio era uma cloaca de doenças. O Rodrigues Alves, então presidente (1902-1906), deixa São Paulo e chega à então capital federal. Ele foi o primeiro presidente brasileiro a ter um projeto de saneamento básico, que começa pelo Rio”, conta Mary.

Tal projeto tornava obrigatória a vacinação contra a varíola. “Inclusive para casar, alugar casa, viajar, a pessoa tinha que apresentar um atestado de vacinação. Era um projeto bastante ditatorial”, lembra a historiadora, acrescentando que, quando a obrigatoriedade chegou às localidades que haviam sido banidas da renovação pela qual o Rio de Janeiro passava, teve início a revolta.
 
“O grupo de médicos ia para os cortiços acompanhado da polícia, porque as pessoas não queriam que suas casas fossem vasculhadas. E estamos no auge do moralismo, então os homens não queriam ainda que as mulheres exibissem coxas e braços para serem vacinadas.”
 
 Rodrigues Alves morreu de gripe espanhola (foto: Wikipedia/Reprodução)
Mary destaca que a Revolta da Vacina foi um quebra-quebra tremendo. “Tem gente que luta para não ter a casa invadida, a família vacinada, que é deportada para o Acre. A revolta também envolve saqueadores, ladrões, gente que destrói bondes, fábricas.” Anos mais tarde, quando foi eleito para um segundo mandato como presidente, no final de 1918, Rodrigues Alves não chegou a tomar posse. Morreu em decorrência da gripe espanhola, em 16 de janeiro de 1919.
 
Professora da UFMG, a historiadora e escritora Heloisa Starling acredita que a hora é de se perguntar o que a história nos ensinou. “Se pensarmos na gripe espanhola, que é a nossa referência mais forte, as condições agora são diferentes. O que pode nos ensinar a pensar é como os países enfrentaram as pandemias. Isto aconteceu por meio de medidas feitas para proteger a população. Há os estados autocráticos, que fazem isso de forma autoritária; e os democráticos, que vão te dar argumentos para que tomemos as medidas por livre e espontânea vontade.”

Para Heloisa, muitas das respostas não vêm apenas da história, mas também da literatura. Ela cita dois livros que trataram do assunto de formas diferentes. “A peste (1947), de Albert Camus, é habitualmente lido como uma metáfora da ascensão do nazismo. Acho que outra leitura do livro nos sugere o que fazer diante de uma ameaça total. No caso do Camus, são as equipes sanitárias que combatem a peste. Ou seja, é o trabalho de equipe, a disposição em aceitar o risco, uma coisa que os médicos de hoje estão fazendo.”

Outra obra que ela considera fundamental é Um diário do ano da peste (1722), de Daniel Defoe, o autor de Robinson Crusoé (1719). No livro, o autor faz uma reconstituição do verão de 1665, quando a peste bubônica assolou Londres. “É meio romance, meio jornalismo, um livro que fala da solidão e do medo do contágio, duas das coisas que estão de volta agora.”