O cantor e compositor Chicó do Céu e a gestora cultural e narrada de histórias Aline Cântia se conheceram em 2006, nos metros quadrados de uma sala de aula da universidade Una, em Belo Horizonte. A professora e o então aluno sentiram que naquela relação que acabara de nascer havia uma afinidade artística que entrelaçava música e literatura. Muita coisa aconteceu no meio do caminho e agora, quase 20 anos depois, o que eles começaram a escrever lá atrás ganhou mais um marcante capítulo.

No início do mês, o projeto AbraPalavra: Onde a Literatura se Encontra Com a Vida, foi anunciado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) como um dos cinco finalistas do Prêmio Jabuti, distinção literária mais importante do Brasil, na categoria Fomento à Leitura. Os vencedores serão conhecidos na próxima segunda-feira (27/10), em uma cerimônia no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

“Essa é uma vitória muito especial, todos os finalistas promoveram iniciativas muito bonitas. Esse também é um reconhecimento de uma história de quase 20 anos. A gente semeou, depois germinou. Passamos por muitos lugares, ouvimos as pessoas, sentimos o calor na pele, participamos das políticas públicas. O reconhecimento do Jabuti é o ápice, o acúmulo de todas as nossas vivências”, celebra Chicó do Céu.

Voltemos a 2006 para narrar um pouco dessa história. Depois de se conhecerem na sala de aula, Aline Cântia e o músico participaram de projetos de extensão da universidade nos anos seguintes. Em 2008, uma longa viagem por Minas Gerais, Mato Grosso, Pará, Maranhão, Pernambuco e Bahia se transformou em uma decisiva jornada de pesquisa, investigação e mergulho nas histórias e no universo da tradição oral e da gestão cultural.

Após estudos diversos, planilhas preenchidas, cursos, oficinas, intercâmbios com produtores de outros estados e apresentações em várias cidades, tendo Chicó do Céu ao violão e Aline na contação de histórias, a dupla estava pronta para institucionalizar o trabalho que se consolidava.

Em 2011, a dupla funda o Instituto AbraPalavra, nascida do desejo de promover a fruição cultural que há na mescla entre literatura, música, oralidade e memória. No AbraPalavra, a valorização da contação de histórias como linguagem artística contemporânea é um princípio fundamental, colocado em prática em ações gratuitas, culturais e educativas – eventos, cursos de formação, oficinas, livros e iniciativas de incentivo à leitura.

Na final do Jabuti

O projeto AbraPalavra: Onde a Literatura se Encontra Com a Vida, que pode levar o importante Prêmio Jabuti na próxima segunda-feira (27/10), é uma espécie de síntese do posicionamento do instituto e abrange iniciativas realizadas na Candeia – Mostra Internacional de Narração de Histórias e na Elena – Escola Livre de Estudos em Narração Artística, além do próprio AbraPalavra enquanto Pontão Nacional de Cultura Viva de Livro, Leitura e Literatura, o único no Brasil que possui esse tipo de reconhecimento do Ministério da Cultura em Minas Gerais.

Ao longo de 2024, o projeto desenvolveu mais de 100 atividades presenciais e online nas cinco regiões do país, impactando milhares de pessoas de todas as faixas etárias. A participação de contadores de histórias em ações no Centro de BH – na Praça da Estação e na Feira Hippie, por exemplo – e em ocupações urbanas, mapeamento de bibliotecas comunitárias em todo o Brasil e a mobilização para que novos espaços se tornem pontos de cultura foram algumas iniciativas promovidas no ano passado e agora destacadas pelo Prêmio Jabuti.

Expressão urbana

Em 2014, Chicó do Céu e Aline Cântia ganham a companhia de Fernando Chagas na direção do AbraPalavra. Chagas diz que o instituto preza pela defesa da narração artística como expressão urbana e contemporânea que gera reflexão e novos significados sobre a vida e a realidade. Esse movimento, ele ressalta, evidencia um processo de linguagem artística que ocupa espaços sociais que se organizam em torno da arte, como teatros, galerias e centros culturais.

“A narração faz parte do processo humano, mas o narrador contemporâneo se desloca do lugar tradicional. Nesse sentido, é possível pensarmos a narração como linguagem artística que passa a ocupar também o espaço do estudo e da pesquisa, da técnica, do treinamento, do processo estético e da forma. Você começa a pensar em repertório, figurino, quem é o público”, argumenta Fernando Chagas.

Para aprofundar a discussão sobre a narração como arte e linguagem, o Instituto AbraPalavra realiza em BH, há oito anos consecutivos, a Candeia – Mostra Internacional de Narração de Histórias. A programação conta com apresentações de contadores de histórias e artistas nacionais e estrangeiros, oficinas, rodas de conversa e lançamento de livros.

E na seara da literatura, o AbraPalavra também se desdobra em uma editora de mesmo nome. Já são três obras publicadas: “Narração Artística: Modos de Fazer” (organização de Aline Cântia e Fernando Chagas, 2022), “Sons da Cidade: Mostra Internacional de Violão de Belo Horizonte” (Carlos Walter e Fernando Chagas, 2023) e “Produção Cultural pelo Afeto: Uma Trajetória do Instituto Cultural AbraPalavra” (Aline Cântia e Chicó do Céu, 2024). 

Elena: pioneirismo

Em 2024, Aline Cântia, Chicó do Céu e Fernando Chagas abriram as portas da pioneira Elena – Escola Livre de Estudos em Narração Artística, a primeira no Brasil dedicada ao estudo, à prática e à pesquisa da narração artística como linguagem.

Voltadas ao público adulto, todas as atividades oferecidas são gratuitas e há cursos de narração artística e de escrita literária e criativa, entre outros. A Elena funciona na sede do AbraPalavra, no bairro de Lourdes, região Centro-Sul da capital mineira. 

“Com a escola a gente pode produzir conhecimento, trazer pessoas de fora para dar cursos. BH, essa cidade que tem uma tradição literária tão grande, sai na frente nessa discussão da narração de história como linguagem, arte e ofício”, sublinha Aline Cântia.

A idealizadora e presidente da AbraPalavra é a única mineira representante da sociedade civil no Conselho Diretivo do Plano Nacional do Livro, Leitura e Literatura 2025-2035. No debate sobre políticas públicas que estimulem o acesso e o fomento à leitura no país, o desenvolvimento de um novo plano irá contemplar e promover a narração artística. 

Aline está acompanhando tudo de perto, atenta e com o mesmo entusiasmo pelas novidades que tinha quando conheceu Chicó do Céu na sala de aula de uma universidade.