Presidente do STJ diz que a reforma da Previdência é uma necessidade, porém defende benefício integral a magistrados. Sobre o pacote anticrime de Moro, afirma que a legislação precisa ser melhorada, mas que o combate à criminalidade se dá com educação


Discreto e atento aos fatos da República, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro João Otávio de Noronha, afirma que o acesso da população aos tribunais superiores é o maior legado destes 30 anos da Corte, completados amanhã. Em entrevista exclusiva ao Correio, em seu gabinete, ontem, ele discorre sobre os mais variados assuntos — das mudanças nas aposentadorias dos magistrados, neste projeto da nova Previdência, ao pacote anticrime do ministro da Justiça, Sérgio Moro, tema sobre o qual ainda não havia comentado em público: “Não vai se acabar com a violência no Brasil mudando a lei. A saída é a educação”, diz.
 
Sobre o Poder Judiciário, Noronha considera que magistrado tem de ser protegido. “A gente precisa blindar o juiz. E, quando falo isso, alguns acham que estou propondo corporativismo. Blindar juiz da influência de terceiros, de amigos, da família. Na hora de decidir, ele não tem de saber o que pensa a mulher, o filho… Tem de decidir com base na Constituição”, ressalta.
 
O ministro garante que a Justiça age em seu tempo, sem ser muito rápida nem muito demorada. Ele citou casos importantes noticiados nos últimos tempos, lembrando o assassinato da vereadora fluminense Marielle Franco, o atentado contra o presidente Jair Bolsonaro e os imbróglios do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 
 
Confira a entrevista completa.
O que, na visão do senhor, é a principal marca do STJ?

A maior abertura para o jurisdicionado do acesso a um tribunal superior. Essa função que hoje exerce o STJ era exercida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição de 1988 cria o Superior Tribunal de Justiça e retira do STF a competência para julgar os recursos em que se alega violação à lei federal. Também se agregaram outras competências, como julgar crimes de governador, desembargador… O nosso maior trabalho, nosso maior volume de trabalho é justamente o recurso especial, ou seja, cuidar para que os tribunais não violem a lei federal. Temos a missão de manter a inteireza da ordem jurídica. Nosso ordenamento jurídico era baseado na Corte norte-americana. O Supremo julgava matéria constitucional e matéria infraconstitucional, mas aí o volume ficou muito grande. Nos Estados Unidos, a maioria da legislação é estadual. Então, a violação é reparada pelos tribunais dos estados. Mas o Brasil tem legislação preponderantemente nacional. Lógico que o controle não será feito pelas cortes estaduais.
 
"Precisamos defender as instituições. O pensamento de que não é necessário (responder) é uma falácia. O Supremo vem sendo ardilosamente atacado por muitas pessoas, inclusive jornalistas” 
 
Como avalia a sessão da semana passada no Supremo Tribunal Federal em defesa da própria Corte?

Acredito que o STF não marcou a sessão exatamente para isso. Várias autoridades estavam lá, presidentes da Câmara e do Senado, acho que mais por um ato de solidariedade pelos injustificáveis ataques feitos à Suprema Corte. Acabou se transformando em uma sessão de defesa da instituição. Precisamos defender as instituições. O pensamento de que não é necessário (responder) é uma falácia. O Supremo vem sendo ardilosamente atacado por muitas pessoas, inclusive jornalistas. Ataques são, às vezes, injustificáveis. Atacam pelo conteúdo da decisão sem impugnar o que tem dentro dessa sentença. Só veem o resultado. Ninguém fala quando o decreto prisional não tem fundamento, quando a prisão é cautelar… Ninguém faz uma análise da decisão. Apenas se fala que soltou alguém que a Lava-Jato prendeu. Não podemos deixar alguém preso só porque o clamor público deseja ou porque determinado segmento da imprensa pressiona. Um tribunal constitucional precisa garantir os direitos fundamentais assegurados na Constituição.
 
"Não podemos deixar alguém preso só porque o clamor público deseja ou porque determinado segmento da imprensa pressiona” 
 
O senhor defende a independência do Judiciário. Acha que ela corre risco?

Hoje, o juiz novo precisa ser bem formado e bem-instruído. A gente precisa blindar o juiz. E, quando falo isso, alguns acham que estou propondo corporativismo. Blindar juiz da influência de terceiros, de amigos, da família. Na hora de decidir, ele não tem de saber o que pensa a mulher, o filho… Tem de decidir com base na Constituição. (É necessário) blindar o juiz da mídia, que costuma trazer um clamor público que nem sempre é verdadeiro. É preciso blindar os juízes dos próprios colegas. O juiz precisa ser totalmente independente para que possa, com sua livre convicção motivada, julgar e conceder a liberdade ou a prisão.
 
"Em todos os países, a aposentadoria de juízes é integral. A carreira de Estado é assim. Precisamos tirar a ideia de que a aposentadoria do juiz é um privilégio” 

O que acha do tempo que os juízes ficam na ativa? Há uma comoção no Congresso para que a aposentadoria compulsória volte aos 70 anos (hoje, são 75).

O que me preocupa é a causa do debate. Ninguém discutiu: ‘Olha, não devemos ficar até os 75 anos por causa da improdutividade, porque não é bom’. Querem derrubar porque outro presidente vai nomear ou porque os que estão aí foram nomeados por outro governo, e nós não queremos que fique. Isso não é uma discussão inconstitucional. Nos Estados Unidos, por exemplo, é vitalício. Se os exames médicos indicarem plena capacidade, o ministro da Suprema Corte pode ficar. Lá, eles não desprezam a experiência. A sapiência norte-americana faz com que os juízes mais antigos fiquem com a menor carga de trabalho, mas dá a eles as causas mais complexas. Eles usam a experiência de vida para decidir com segurança os anseios da sociedade. Então, nós temos essa discussão. E ela tem de vir de outra forma. Não se pode mudar a legislação por conta de um acerto de contas.
 
Uma das críticas ao Supremo foi o adiamento da análise sobre prisão após decisão em segunda instância. Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro até convocaram um ato, para o dia 7, sobre essa questão. Qual é a sua opinião?
I
sso é uma pauta do Supremo Tribunal Federal. O presidente tem uma demanda de pedidos de julgamento. Há o interesse para que o tema seja exaurido com rapidez, até para que quem se encontra nessa situação possa progredir na pena ou reestabelecer a liberdade até o trânsito em julgado.
 
A população reclama da morosidade da Justiça, às vezes, os processos demoram muito. O que pode ser feito para tentar acelerar o trabalho, assegurando o amplo direito de defesa?
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Um famoso processualista italiano, Francesco Carnelutti, diz que processo repele a ideia de instantaneidade. Processo nasce para se desenvolver no tempo. Tem de ter as fases: pedido, defesa e produção de provas para, assim, chegar à sentença, que é a conclusão. O processo instantâneo, chamado sumário, tende à injustiça, sacrifica o direito de defesa, mas não pode ser tão longo a ponto de fazer com que a justiça seja tardia. Rui Barbosa dizia que a justiça tardia, na realidade, é uma justiça denegada. Um fator de injustiça. É preciso definir um conceito quando se fala em tempo. As ações previdenciárias são demoradas. A razão é que, para implementar aposentadoria, as ações passam pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), que não tem estrutura adequada para processar as determinações judiciais. Aí, gasta tempo. As causas de família não são demoradas, grande parte se resolve no primeiro grau. Causas repetitivas podem ser atacadas pela implantação de um sistema de inteligência artificial. Assuntos penais requerem investigação mais profunda da parte do réu, do Ministério Público… Uma investigação dos juízes nas provas. Recurso existe para que o cidadão, diante do seu inconformismo, busque nova decisão, com propósito de almejar a justiça. Por vezes, a parte não se conforma com as decisões que lhe são contrárias.
 
Juízes dizem que o conceito da justiça é subjetivo, mas a letra da lei não é fria?

A lei é dúbia. Às vezes, as normas do direito se alteram sem alterar o texto da lei. Olha bem: quem censura adultério como crime? Ninguém. Isso estava há pouco tempo no Código Penal, na letra da lei. Houve uma mudança da consciência social. Isso leva o juiz a avançar, mesmo que a lei não tenha mudado. As coisas mudaram. Veja a defesa da honra, o assassinato de mulheres… O caso do (ex-presidente) Lula, alguém pode dizer que demorou? Quantos processos da Lava-Jato têm sentença condenatória? Quando se fala em homicídios: nós temos uma estrutura policial adequada para investigar? Aí, vem falar do caso da Marielle (Franco, vereadora do PSol no Rio de Janeiro, assassinada no ano passado) que demorou um ano e não foi resolvido. Não tinha testemunha, não tinha estrutura. A facada no presidente Bolsonaro? Esse caso foi resolvido, embora as pessoas não se conformem com o resultado da investigação.
 
O que o senhor pensa das mudanças na aposentadoria dos juízes, prevista no projeto de reforma da Previdência? Pode ser que a pensão por morte se torne proporcional…

Em todos os países, a aposentadoria de juízes é integral. É assim na Itália, na França, nos Estados Unidos… A carreira de Estado é assim. Precisamos tirar a ideia de que a aposentadoria do juiz é um privilégio, que somos uma categoria de privilegiados. O juiz só pode ser juiz. Um militar só pode ser militar. Empresário que vira ministro de Estado pode ter negócios aqui, ali, mas o magistrado, não.
 
Mas pode ser professor de cursinho, de universidade…

Professor de cursinho é uma questão que a gente precisa estudar melhor. Fazer carreira em uma universidade, tudo bem. Existe melhor laboratório de direito do que um tribunal? Essa experiência deve ser compartilhada. O que ganha um professor? Alguém vai ficar rico por dar aula? Se estiver dando aula em universidade federal, ainda está limitado ao teto. Muitos acabam dando aula de graça. Mas em cursinho, eu sou contra.
 
O senhor acha que as mudanças na aposentadoria dos juízes foram mais duras do que para os militares? O Judiciário vai pressionar o ministro Paulo Guedes e o Congresso?

Com certeza, o Judiciário vai lutar para melhorar esse cenário. Há uma preocupação muito grande com a transição. Acho que as entidades de classe, como Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros)... Parece que elas vão lutar. A aposentadoria dos juízes, se estabelecer a idade mínima de 65 anos, não tem problema nenhum. Onde há vitaliciedade, não tem problema a idade.
 
O que pensa sobre a reforma da Previdência?

Precisa ser feita com muito cuidado para não voltar um novo projeto daqui a dois, quatro anos. Sempre há uma coisa ou outra que pode ficar para depois, mas a Previdência, não. O Brasil não pode continuar gastando progressivamente com aposentadorias. Tem de se pensar numa solução agora e, tanto quanto possível, pensar no futuro. Pensar naquele funcionário com 50 anos que é despedido e tem de esperar os 65 para se aposentar.
 
E o regime de capitalização, acabando com o sistema distributivo?

Não sou contra, mas o problema é como fazer o corte. Quem entrar no mercado agora vai passar por isso? Você vai ensinar o trabalhador jovem a começar poupando. Aqui no Brasil, temos esse problema. Uma pessoa que ganha R$ 10 mil vai a uma loja e se compromete com uma prestação de R$ 2 mil. Não discute sequer o preço. Com isso, acaba gastando tudo o que ganha. O trabalhador europeu tem poupança, ele sabe que vai receber menos dinheiro na aposentadoria. Demorou até eles chegarem a esse ponto, a Europa teve duas grandes guerras… A população aumentou, e o problema da aposentadoria chegou, mas eles resolveram.
 
Parte da agenda prioritária do governo inclui o pacote anticrime do ministro Sérgio Moro, que prevê menos saídas de presos com escolta policial para audiências. Ele diz que isso pode criar uma economia de R$ 40 milhões por ano. O que o senhor pensa?

Acredito que as audiências presenciais com a condução de presos são um atraso. Se faz isso em São Paulo, com um aparato de segurança enorme. O preso sai da penitenciária, fica vários dias andando pelo estado e dormindo em lugares inadequados. Toda vez que o Fernandinho Beira-Mar precisa sair, há um aparelhamento muito grande: helicóptero e tudo. Hoje, temos a videoconferência, é muito mais simples, mais seguro e mais barato. Um defensor público vai para o lugar onde o preso está depondo, outro, à sala de audiência, e pronto.
 
Qual é a saída para acabar com a criminalidade? 

"É educação. Educação em tempo integral. Jovem com alimentação, esporte, cultura… Não é gasto, é investimento”
 
O senhor teve acesso ao projeto anticrime de Sérgio Moro?

Recebemos o projeto, e eu pedi à área penal que o examinasse, temos especialistas. Há quem apoie e quem pense que precisa de ajustes. Uns dizem que é um projeto antigo, que está sendo resgatado. A única coisa que eu entendo é que a legislação precisa ser melhorada e discutida, mas é importante falar que não vai se acabar com a violência no Brasil mudando lei. Não vamos ter essa ilusão. Enquanto um menor na favela do Rio estiver ao lado de um traficante com um fuzil e demonstrando poder… Uma análise bem fria é que aumentamos as hipóteses de crime hediondo, criamos a Lei Maria da Penha… As mulheres deixaram de apanhar? Não. Intimidou, mas não resolveu. Não é lei que muda comportamento. Qual é a saída para acabar com a criminalidade? É educação. Educação em tempo integral. Jovem com alimentação, esporte, cultura… Não é gasto, é investimento. Sou favorável à modificação da lei, mas não podemos dizer ao povo, sem uma ação de governo paralela, que vamos resolver o problema.
 
Bolsonaro está aberto ao diálogo com o Judiciário?

Fui entregar a ele o convite da solenidade de 30 anos do STJ, e ele se mostrou muito bem-intencionado, muito acessível, preocupado. Isso eu posso dizer com muita honestidade: o presidente está aberto ao diálogo.
 
Algumas frentes do Congresso pressionam o governo para dividir o Ministério da Justiça com uma nova pasta de Segurança Pública, como no governo Michel Temer. Seria uma boa decisão?
 
Não estou acompanhando isso, mas o ministério sempre foi único. O governo Temer quis dar ênfase à segurança em meio às crises e, por isso, desdobrou o ministério. Unir ou separar… Você pode colocar mais força na segurança sem fazer esse desdobramento. Depende das políticas públicas de combate.
 
O ministro Sérgio Moro ficou escanteado. Por que o projeto dele ainda não está em análise formal pelo Congresso?

No Senado, está andando. Na Câmara, o (presidente) Rodrigo Maia (DEM-RJ) enviou para a comissão. Cada macaco no seu galho. O Sérgio Moro decide o que tem de decidir na sua área e envia para o Congresso. Aí, é com os deputados e os senadores. Quem tem de trabalhar é a base do governo.
 
O Congresso também fala na Lei de Abuso de Autoridade. Quer colocar no pacote do Moro… O Ministério Público diz que isso pode travar a Lava-Jato...

Isso é competência do Legislativo. Se eles estão sentindo esse abuso, cabe a eles regular. Sou um juiz como tem de ser: justo, equilibrado. Não tenho nenhum temor com essa lei. A última palavra no caso concreto será do próprio Judiciário. Não pode o Ministério Público achar que isso é uma trava à Lava-Jato. Não existe só Lava-Jato no Brasil. A Lava-Jato é uma série de ações penais que tem um prazo de vida. Fora daí, não pode pegar crimes e jogar para lá como se só isso resolvesse. Aquela não é a única equipe de juízes e promotores do país.
 
Pegando o exemplo do governo, que gosta de se comunicar pelas redes sociais, o ministro Sérgio Moro criou uma conta no Twitter. É uma tendência que as autoridades comecem a ter essas páginas? O senhor tem Twitter?

Não tenho. Juiz precisa de discrição, juiz se manifesta nos autos. Se alguma coisa falamos nas entrevistas, são teses acadêmicas. Não se fala de caso concreto. Juízes que começam a se valer em Twitter vão acabar sendo desacreditados. Juiz não deve se manifestar em rede social. Se quer ser juiz, precisa saber que sua vida será pautada pela discrição.
 
Com a exoneração de Moro como juiz, levantou-se a possibilidade de permitir que magistrados e promotores tirassem licença para assumir cargos públicos e, depois, voltassem. É viável?

Sou radicalmente contra. Magistratura requer dedicação exclusiva e integral. Não podemos permitir, como se permite em determinados segmentos, que o sujeito vá e volte. Funcionário do Banco Central vai para o mercado e volta, assessora bancos, depois volta para ser diretor. Juiz tem de ter dedicação exclusiva. Moro fez uma opção, deixou de ser juiz. Estou aqui como ministro, tiro uma licença de três anos, vou trabalhar numa empresa e volto. Não dá.
 
O recurso especial apresentado pelo ex-presidente Lula tem prazo para ser julgado?
 
O caso do ex-presidente está seguindo rigorosamente todos os trâmites processuais. E, quando estiver pronto, o ministro Felix Fischer levará a julgamento.