SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um tribunal de Mianmar sentenciou, nesta segunda (6), a ex-líder civil Aung San Suu Kyi a dois anos de prisão, sob acusações de incitação à dissidência e violação de restrições impostas para conter a Covid.
 
Inicialmente, a pena anunciada foi de quatro anos, mas após algumas horas e várias manifestações de repúdio contra a decisão, foi reduzida pela metade pelo cabeça das Forças Armadas do país. O "perdão parcial" concedido pelo regime foi divulgado pela TV estatal, que não explicou o motivo da redução.

A corte, no entanto, é controlada pela junta que depôs Suu Kyi em um golpe de Estado em 1º de fevereiro, o que levou observadores internacionais a descreverem o julgamento como uma farsa. O hoje ex-presidente Win Myint, também deposto pelos militares, recebeu a mesma sentença.

Questionados por agências de notícias internacionais, os porta-vozes do regime não deixaram claro que impacto imediato a decisão desta segunda tem sobre Suu Kyi. Detida desde fevereiro, ela raramente foi vista em público, e as circunstâncias de seu cárcere tampouco foram esclarecidas.

O julgamento, realizado em Naypyitaw, ocorreu a portas fechadas, sem observadores independentes. Os advogados de defesa, que vinham sendo a única fonte de informação sobre o processo, são atualmente objeto de um mandado de silêncio sob a alegação de que comentários poderiam desestabilizar o país.

Além das acusações pelas quais foi considerada culpada, Suu Kyi, 76, responde por outros nove supostos crimes, como corrupção, fraude eleitoral e violação de segredos de Estado. Se condenada por todos eles, pode pegar mais de cem anos de prisão.

Segundo a acusação de incitação à dissidência, os dois ex-líderes civis estavam envolvidos na circulação de uma carta não assinada com seus nomes que instava países estrangeiros a não reconhecerem a junta militar depois do golpe. Suu Kyi e Myint negam envolvimento e alegam que estavam sendo mantidos incomunicáveis, o que impossibilitaria a articulação para a publicação da carta.


Já a suposta violação das restrições impostas no âmbito da pandemia de Covid-19 teria ocorrido em setembro do ano passado, durante a campanha eleitoral da qual o partido de Suu Kyi, a Liga Nacional pela Democracia (LND), saiu vitorioso, em detrimento da legenda apoiada pelos militares. Os detalhes da violação, no entanto, não foram esclarecidos publicamente pela Justiça.

Mianmar vive um cenário de múltiplas crises, em que ao menos 1.300 pessoas foram mortas, e mais de 10 mil, feridas durante protestos contra o regime, de acordo com a Associação de Assistência a Presos Políticos de Mianmar. Também há um movimento de forte repressão à imprensa livre, o que limita ainda mais a possibilidade de uma apuração independente dos acontecimentos no país.

Países ocidentais e organizações de defesa de direitos humanos como a Anistia Internacional e a ONG Human Rights Watch têm pedido a libertação da ex-líder mianmarense desde o golpe de 1° de fevereiro.

"As acusações foram ridículas, concebidas como retaliação a líderes populares", disse ​Richard Horsey, especialista em Mianmar do think tank International Crisis Group. "Portanto, os veredictos de culpa e as penas de prisão não são nenhuma surpresa."

Para a alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, a condenação de Suu Kyi "não tem nada além de motivações políticas" e "fecha mais uma porta para o diálogo político". Na visão dela, a decisão também vai aprofundar a rejeição popular à tomada de poder.


"Os militares estão tentando instrumentalizar os tribunais para remover toda a oposição", disse Bachelet. "Mas esses casos não podem fornecer um verniz legal para a ilegitimidade do golpe e do regime militar."

O enviado das Nações Unidas a Mianmar, Thomas Andrews, exortou os países-membros da entidade a considerarem a decisão um motivo para impor sanções contra o regime. "A sentença demonstra por que a comunidade internacional deve tomar medidas mais firmes para apoiar o povo de Mianmar, negando à junta a receita e as armas de que eles precisam para continuar seu controle ilegítimo".

Nesta segunda, um grupo de nove países c​om poder de decidir sobre a entrada de novos membros na ONU decidiu adiar a tomada de decisão sobre a adesão da junta de Mianmar à entidade -o que, na prática, já indica oposição ao reconhecimento dos militares como governo legítimo. O adiamento também atinge o Talibã, grupo fundamentalista islâmico que retomou o poder no Afeganistão em agosto.

Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia, também descreveu a condenação de Suu Kyi como fruto de motivação política e reiterou os pedidos pela libertação "imediata e incondicional" de todos os prisioneiros políticos detidos desde o golpe.

Os Estados Unidos, por meio de um comunicado do secretário de Estado, Antony Blinken, trataram a sentença como uma afronta à democracia e à justiça e exigiram a libertação imediata da líder civil.

"O contínuo desrespeito do regime pelo Estado de Direito e o uso generalizado da violência contra o povo mianmarense sublinham a urgência de restaurar o caminho de Mianmar para a democracia", disse Blinknen. "Apelamos ao regime para que ponha fim ao uso da violência, respeite a vontade do povo e restaure a transição democrática."

Um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, país que manteve boas relações tanto com Suu Kyi quanto com a junta que assumiu o poder, evitou críticas ao regime e exortou todas as partes a "resolverem suas diferenças sob a estrutura legal e constitucional e a continuar a avançar na transição democrática conquistada com dificuldade". Liz Truss, secretária de Relações Exteriores do Reino Unido, por sua vez, condenou a sentença contra Suu Kyi e a descreveu como "outra tentativa terrível do regime militar de Mianmar para sufocar a oposição e suprimir a liberdade e a democracia".

Apesar de todas as manifestações de repúdio, a condenação já era esperada. Aliados e apoiadores dizem que as acusações são infundadas e planejadas para pôr fim a sua carreira política -a lei de Mianmar proíbe condenados de disputarem cargos eletivos-, enquanto os militares se consolidam no poder.

Filha de um herói da independência de Mianmar, a líder civil, que recebeu o Nobel da Paz em 1991, já havia passado 15 anos em prisão domiciliar entre 1989 e 2010. Depois de libertada, conduziu seu partido a uma vitória esmagadora em 2015. Em novembro do ano passado, a LND venceu novamente as eleições.

Os militares, entretanto, alegaram fraude nos resultados -embora observadores independentes não tenham constatado qualquer irregularidade- e assumiram o poder horas antes da posse da nova legislatura por meio da deposição e detenção de Suu Kyi, de Myint e de várias outras lideranças.