SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Pela primeira vez desde que as negociações para encerrar a Guerra da Ucrânia fracassaram em 2022, os governos de Moscou e de Kiev falaram ao mesmo tempo em retomar o diálogo pela paz. Se o árduo caminho será trilhado enquanto os combates continuam, isso é incerto.

A China, país que com o Brasil defende de forma mais assertiva que os rivais sentem-se à mesa, foi o mediador público da questão durante a visita do chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, ao país.

Ele foi recebido para quase quatro horas de conversas pelo seu par Wang Yi nesta quarta (24). Ao fim da rodada, o chinês disse a jornalistas em Guangzhou que "Kuleba disse novamente que está pronto para engajar o lado russo em um processo de negociação em algum estágio, quando a Rússia estiver pronta para negociar de boa fé".

"Mas", disse Wang, "enfatizou que não vê tal prontidão do lado russo agora". Seria apenas o óbvio, dado que o governo de Volodimir Zelenski promoveu uma conferência unilateral de paz para discutir o fim da guerra em seus termos, no mês passado na Suíça.

A surpresa veio dos comentários imediatos em Moscou. "A mensagem em si pode ser vista em uníssiono com a nossa posição", disse em seu briefing diário o porta-voz de Vladimir Putin, Dmitri Peskov.

"Vocês sabem que o lado russo nunca recusou negociar, e sempre se manteve aberto ao processo de negociação. Mas os detalhes são importantes aqui, e ainda não sabemos nada deles", afirmou. Como se vê, ambos os rivais mantiveram uma posição dura, mas piscaram.

Isso não ocorria abertamente desde o início do conflito. Após a invasão russa de fevereiro de 2022, delegações dos dois países se reuniram seis vezes, três em Belarus, três na Turquia -na última ocasião, com a presença do presidente Recep Tayyip Erdogan, ávido em selar sua posição de mediador entre a Otan (aliança militar ocidental) que integra e Putin.

Depois, o mês de abril viu líderes ocidentais e russos conversarem sobre as propostas, cada vez mais consideradas inaceitáveis de lado a lado. Um fator central ocorrera no fim de março, com a retirada das forças russas do cerco a Kiev.

A derrota fortaleceu a posição ucraniana de não negociar, e viu aumentar o fluxo de apoio militar ocidental a Zelenski. Diplomatas russos dizem que a retirada foi necessária para evitar um desastre, mas também era um sinal de que Putin abriria mão de derrubar o presidente rival pelas armas.

Houve alguns contatos. Como a Folha relatou em março e o chanceler russo, Serguei Lavrov, confirmou em uma entrevista na semana passada, um grupo de especialistas em relações internacionais foi formado com russos e americanos.

Sem poder decisório, ao longo de um ano eles debateram questões como a neutralidade da Ucrânia e a eventual troca de terra pela paz -além da Crimeia, anexada em 2014, os russos ocupam boa parte do leste e do sul do vizinho, perfazendo algo como 20% do território ucraniano.

Segundo Lavrov, as discussões não lograram resultado prático. A agência Reuters disse que, por meio de intermediários, Putin fez em fevereiro uma proposta aos EUA, que vê como o real inimigo na guerra, de congelar o conflito, que também não prosperou.

Até aqui, há duas linhas de abordagem pela eventual paz. No mês passado, Putin colocou suas condições na mesa: Kiev precisa abandonar sua pretensão de ingressar na Otan, aceitar se desarmar e entregar as quatro províncias anexadas ilegalmente em setembro de 2022 por Moscou, que não as controla integralmente.

Kiev e o Ocidente recusaram a oferta, feita na véspera da cúpula internacional que reuniu 90 países simpáticos à Ucrânia na Suíça, que acabou sem consenso. Nas últimas semanas, o ucraniano tem dito que haverá uma segunda reunião e que os russos, desta vez, serão convidados. Mas insiste que será para discutir a paz em seus termos.

Há também o fator Donald Trump, o republicano que pode voltar à Casa Branca e já disse que vai impor uma paz imediata, sugerindo o fim do apoio a Kiev. O premiê húngaro, Viktor Orbán, é aliado tanto do americano quanto de Putin, e encontrou-se com ambos, além de Zelenski, enquanto ocupa o papel de presidente temporário da União Europeia.

Ocorre que ele foi desautorizado pelos líderes europeus, que o acusam de ser peão do Kremlin. Aí entrou a China, que por ser a maior aliada de Putin, é vista também como o único país capaz de mediar de forma eficaz as conversas. Isso é rejeitado publicamente no Ocidente, por pressupor que Pequim tem lado, mas no bastidor é diferente.

A viagem de Kuleba foi a do mais alto representante de Kiev à China desde a invasão. A resposta de Peskov sugere um jogo combinado, mas por evidente há um longo caminho para que a disposição mostrada se torne algo concreto.

O amargor do conflito, que neste ano tem os russos numa lenta e sangrenta ofensiva, e diferenças enormes de visão de mundo são empecilhos grandes.

O processo é temperado pela eficácia tardia de um tipo específico de sanção econômica contra Moscou, ameaçando de forma secundária bancos chineses que fazem negócios com os russos. Isso tem derrubado o comércio entre os aliados, que no ano passado chegou ao maior nível histórico e é um seguro contra o isolamento econômico imposto pelo Ocidente, até aqui driblado por Putin.

Os chineses usaram a carta comercial. Segundo uma porta-voz da chancelaria, Mao Ning, "a China irá continuar a expandir sua importação de alimentos da Ucrânia". "Apesar de as condições não estarem maduras, estamos dispostos a ter um papel construtivo para trazer um cessar-fogo e a volta das negociações".