BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - O governo de esquerda do presidente Luis Arce decidiu criar um imposto anual a grandes fortunas na Bolívia. A medida lembra a decisão do governo argentino de Alberto Fernández, que também criou um chamado "imposto às grandes fortunas". A diferença entre os dois casos, porém, revela algo sobre as discrepâncias sociais e econômicas da região.

Na Argentina, trata-se de uma taxa que atinge aqueles que têm fortunas acima de 200 milhões de pesos argentinos (R$ 12,6 milhões, pelo câmbio oficial, quase a metade do valor do paralelo). Com isso, alcança a cerca de 12 mil pessoas.


Já no caso boliviano, o imposto anual a grandes fortunas alcançará aqueles que têm bens acima de US$ 4 milhões (ou R$ 22 milhões). Neste grupo, há apenas 152 pessoas.

"Na verdade isso é quase uma brincadeira, porque mostra que no nosso país, até os ricos são pobres. Mesmo na média da região, US$ 4 milhões não seria uma grande fortuna", diz à reportagem o analista político Raúl Peñaranda.


Desde que Luis Arce promulgou o decreto, que já começa a valer agora em janeiro, a lista dos 152 virou um segredo bem guardado na Bolívia. Há meios de comunicação interessados em descobrir quem são, mas o governo disse que manterá a relação de nomes sob sigilo.


Sabe-se, porém, que nela estão os grandes investidores do agronegócio, principalmente da região de Santa Cruz de la Sierra (mais forte opositora ao governo), os empresários ligados a mineradoras e os donos de bancos.


"É claro que essa lista diz muito sobre uma outro aspecto de nossa sociedade. Sabemos que há gente com maior fortuna que US$ 4 milhões e que não está na lista nem pagará impostos, são narcotraficantes e contrabandistas. Afinal, estão numa economia informal".


Essa é uma questão que também levantam os críticos da lei argentina, a de que não figuram na lista de contribuintes os que têm fortunas e propriedades não registradas em seu nome no exterior, que tenham contas em paraísos fiscais e que estejam vinculados a atividades delitivas internacionais.

"Desde antes de promulgarmos o decreto, durante a pandemia, tínhamos empresários que queriam ajudar no combate ao vírus", diz à Folha o deputado Omar Yujra, redator da lei. Eleito pelo do MAS (Movimento ao Socialismo), partido governista, houve críticas à lei "de pessoas desinformadas, que acreditavam que íamos taxar a classe média, aqueles que têm um carro, uma casa, e isso não é assim", explica.


"A ideia é seguir nosso projeto de campanha, que era o de instalar um sistema de impostos mais progressivo, eliminando carga tributária aos mais humildes e aumentando aos mais ricos. Isso tornou-se mais urgente quando sabemos que os mais pobres não podem trabalhar de casa ou fazer quarentena, e com isso perdem as rendas. Enquanto os ricos podem fazer 'home office'."


A pandemia chegou à Bolívia num momento de crise institucional, com uma presidente interina que administrou muito mal o combate ao vírus -com um escândalo de corrupção no meio, envolvendo a compra superfaturada de respiradores- e com um mercado de trabalho informal de 66% de pessoas.


Neste contexto, o país foi duramente golpeado no primeiro pico da pandemia, entre julho e agosto. Ao todo, o país acumula 173.896 contágios e 9.379 mortes. Médicos e analistas independentes, porém, contestam esse número e creem que o impacto foi muito maior, pois a Bolívia está entre os países que menos testa na região e registrou muitos falecimentos em casa, sem que as pessoas tivessem sido diagnosticadas.


Depois de uma queda na curva em outubro/novembro, o país está novamente tendo um aumento no número de casos.


"O dinheiro arrecadado com esse imposto irá inteiramente ao combate à pandemia. A ideia é investir em nossos hospitais, em testes e na campanha para prever os novos casos", diz Yujra.


Porém, ele vê a necessidade de que este imposto se mantenha porque, no ano em que o MAS esteve fora do poder -entre a renúncia de Evo Morales, em 10 de novembro de 2019, e o retorno do partido ao poder com a eleição de Luis Arce, em 18 de outubro do ano seguinte- "houve uma desconstrução de tudo aquilo que havíamos construído na gestão de Morales.


Contraíram-se dívidas altas, houve uma retração no mercado interno, temos uma situação financeira muito complicada. Por isso a ideia de impostos progressivos é nossa proposta para sair dessa situação", afirma Yujra.