Ossadas de homens, mulheres e crianças demonstram as circunstâncias desumanas das primeiras explorações portuguesas pela costa oeste do continente

 
 
Madri 
 

A Europa reabriu em 2009 as bocarras dos infernos quando a Prefeitura de Lagos – hoje uma plácida, ensolarada, turística e bela cidade do Algarve português – decidiu construir um estacionamento subterrâneo alguns metros além de suas muralhas medievais, em uma área urbana conhecida como Vale da Gafaria. As escavadoras iniciaram seu trabalho e começaram a brotar dezenas de ossos de seres humanos. Maria Teresa Santos Ferreira, professora de Antropologia da Universidade de Coimbra, foi ao local com sua equipe. Hoje, dez anos depois, os resultados de sua pesquisa foram publicados no International Journal of Osteoarchaeology: eram os corpos de 158 africanos escravizados, cujos restos foram abandonados em um depósito de lixo no começo do século XV. Arrancados de sua terra pela violência e vendidos por traficantes, muitos deles não conseguiram suportar a viagem à Portugal. As ossadas de homens, mulheres e crianças – seis dos quais foram lançados ao depósito com pés e mãos amarrados com cordas – demonstram as circunstâncias desumanas das primeiras explorações portuguesas pela costa oeste do continente.

 

Santos Ferreira, com um dos restos humanos de Lagos.
Santos Ferreira, com um dos restos humanos de Lagos. DRYAS ARQUEOLOGÍA LTDA.

 

 
Os barcos portugueses chegaram pela primeira vez em 1444 ao litoral do Senegal e logo retornaram ao porto de Lagos carregados de mercadorias, incluindo pessoas escravizadas, diz o relatório. Mas em 1512, o rei Manuel I ordenou que Lisboa tivesse a exclusividade do tráfico de escravos. De qualquer maneira, e ainda que Lagos tenha perdido importância, as naus continuaram chegando a esse porto antes de alcançar a capital. Não se sabe quantos africanos escravizados entraram em Portugal nesses séculos, porque os arquivos se perderam durante o terremoto de Lisboa em 1755. Mas se calcula que entre 1441 e 1470 chegaram por volta de mil africanos por ano e quase 2.000 anuais nas duas décadas seguintes, um número que se manteve estável e diminuiu a partir de 1530.

O estudo – do qual, além de Santos, participaram Catarina Coelhoa, João de Oliveira Coelho, David Navegaa, Sofia N. Wasterlaina e Ana Rufino e que contou com o apoio do Archaeological Institute of America e da Fundação Gerda Henkel – estabelece que os corpos foram colocados no depósito de lixo entre os séculos XV e XVII, e que muitos daqueles infelizes sofreram em vida traumatismos e lesões degenerativas. Os especialistas analisaram o sexo de 88 deles (56,31% de mulheres, 29,13% de homens e o restante indeterminado). A idade de sua morte foi estabelecida entre os 20 e 30 anos em 32% dos casos, os 30 e 40 anos para 40% e 6,59% com mais de 40 anos.

Além dos adultos, a equipe da empresa Dryas Arqueologia LTDA. encontrou também 31 menores (“não-adultos”), em muitos dos quais foram detectadas alterações nas dentições e um atraso no crescimento. De acordo com o estudo, os menores foram expostos “a duras condições”, o que lhes provocou déficits nutricionais que se refletem em suas estruturas ósseas, com osteoporose cranial e falta de esmalte nos dentes. Isso, por sua vez, evidencia suas “duras e curtas vidas”. Os antropólogos, entretanto, vislumbraram algum sinal de humanidade no enterro dos menores, já que em 66,7% dos casos “parecem ter sido enterrados com mais cuidado do que os adultos”. Desses últimos, 79,4% não seguiam a “habitual orientação cristã da época, com a cabeça na direção oeste e os pés na direção leste”.

Naquela época, somente as pessoas batizadas podiam ser enterradas dentro da cidade. “Os escravos, evidentemente, não eram, de modo que seus corpos foram depositados nos depósitos de lixo, como poderia acontecer, por exemplo, com os animais. Essa situação mudou posteriormente e passaram a ser enterrados dentro da cidade”, diz Santos Ferreira.

Nos corpos analisados, foram encontradas evidências de que quatro mulheres, um homem e um menor de idade foram amarrados antes de morrer, o que deixa claro como esses “indivíduos escravizados foram tratados, mesmo na hora de sua morte”.