As forças policiais de Portugal –acusadas de condutas agressivas e preconceituosas por diversos relatórios europeus– serão alvo de um amplo programa de combate à discriminação.


Além de incentivar a contratação de mais mulheres e de pessoas de diferentes origens étnico-raciais, o plano, que acaba de entrar em vigor, cria a figura de agentes especializados em direitos humanos em todas as polícias do país. Esses oficiais serão responsáveis por coordenar a implementação das ações de combate à discriminação em suas instituições e por monitorar o andamento das medidas adotadas.
 
A forma de recrutamento para as forças de segurança também terá mudanças. O objetivo é ampliar a diversidade e identificar elementos extremistas antes mesmo da contratação.


Um grupo de trabalho vai propor alterações para que as provas de seleção incluam maneiras de identificar indivíduos com "níveis reduzidos de empatia, tendências para posturas radicais e intolerantes, reduzida capacidade para lidar com a frustração, agressividade exacerbada e descontrolada", entre outras características consideradas indesejadas aos policiais.

Um dos principais objetivos do governo é também atrair para a carreira policial mais mulheres e pessoas de diferentes origens étnicas e sociais. Segundo o documento, "forças e serviços de segurança com maior diversidade, para além de serem mais 'representativas' da própria comunidade, constituem-se como mais eficazes na prevenção e combate a práticas discriminatórias por parte dos seus efetivos".

De acordo com dados do Eurostat (escritório de estatísticas da União Europeia), a média de feminização das polícias do bloco é de 16,9%. Em Portugal, a GNR (Guarda Nacional Republicana), que atua nas áreas rurais, e a PSP (Polícia de Segurança Pública), que trabalha no perímetro urbano, têm respectivamente 7% e 8% de mulheres em seus quadros. No caso específico da presença feminina nas polícias, o plano estabelece como meta um aumento de 3% a cada concurso realizado.

O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, que tutela as polícias em Portugal, destacou a importância das ações de inclusão começarem nos processos seletivos e afirmou que existe um trabalho de "adequação das forças de segurança àquela que é a realidade plural da sociedade portuguesa".
Responsável pela criação do plano, Anabela Cabral Fernandes, chefe da Igai (Inspeção-Geral da Administração Interna), avisou que a conduta dos policiais nas redes sociais também passará a ser escrutinada com "grande atenção".

"As redes sociais são a praça pública moderna, representam o espaço público mesmo quando funcionam em grupo fechado. Quem exerce funções de garantir a paz social e o normal funcionamento do Estado de Direito tem de estar preparado para fazê-lo em todos os momentos da sua vida. Não podem, a um passo, serem os garantidores dos valores do Estado de Direito, para, quando nas redes sociais, atentarem contra esses mesmos valores que juraram honrar e defender", afirmou.


O governo não atribui as mudanças a nenhum caso concreto, mas, nos últimos anos, as forças de segurança portuguesas foram criticadas por relatórios do Conselho da Europa. Na última quarta (24), um memorando assinado pela comissária de direitos humanos Dunja Mijatovic voltou ao assunto.

"Relatos recebidos pela comissária apontam para um número crescente de casos de má conduta policial com motivação racial. A comissária recebeu também alegações muito preocupantes sobre a infiltração de movimentos extremistas de direita nas forças policiais, assim como sobre o aumento do uso da força em operações em zonas habitadas principalmente por afrodescendentes, migrantes e ciganos", diz o texto.

Em novembro, o Comitê Antitortura do Conselho da Europa foi especialmente crítico à situação dos detentos no país. Embora afirme que a maior parte dos presos seja tratada de maneira adequada, o documento diz que há um número considerável de queixas.

"As autoridades portuguesas têm de reconhecer que os maus-tratos perpetrados por agentes policiais são uma realidade, e não resultam apenas de ações de alguns agentes transgressores", diz o texto.

A morte de um cidadão ucraniano após agressões no centro de detenção temporária no aeroporto de Lisboa, sob a guarda do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), ajudou a colocar o tema da violência policial em debate. O caso aconteceu em março de 2020, mas ganhou força em outubro.

Atualmente, três agentes do SEF estão sendo julgados pelo homicídio de Ihor Homenyuk, 40. A versão inicial dos policiais, de que o ucraniano morreu devido a convulsões, foi desmentida após denúncia do médico responsável pela autópsia. O processo aponta que os integrantes do SEF espancaram e torturaram Homenyuk dentro das instalações do aeroporto. Além de apanhar, ele permaneceu por mais de 15 horas algemado com as mãos nas costas. O caso levou à queda da cúpula do SEF e ao anúncio de uma reforma no serviço de imigração, que deve perder o caráter policial.


Na avaliação do antropólogo Otávio Raposo, pesquisador e professor auxiliar do ISCTE (Instituto Universitário de Lisboa), a polícia portuguesa tem condutas agressivas e de racismo estrutural. Ele destaca, no entanto, que o tipo de violência policial em Portugal é bem diferente do que existe no Brasil.
"No Rio de Janeiro, por exemplo, a polícia é responsável por um terço das mortes. A polícia no Brasil é assassina. Não faz sentido usarmos em Portugal esse adjetivo. Mas podemos dizer, sim, que a polícia portuguesa é violenta, que não são casos episódicos", afirma.

"A violência policial em Portugal ocorre principalmente em relação aos jovens das periferias, dos bairros marginalizados. Ela não é episódica, é cotidiana. Há um problema estrutural no modo como a polícia atua."


O pesquisador considera que a implementação de um plano de combate à discriminação é positiva, mas é preciso alterar estruturalmente a forma como as corporações atuam. O cenário ideal, segundo ele, seria a inclusão das comunidades na elaboração de estratégias de segurança. "A polícia tem uma hierarquia, tem um modus operandi que torna a violência possível. Por isso, as mudanças têm de partir de cima."

Mesmo com os relatos de agressão e discriminação, a polícia portuguesa é responsável por um baixo número de mortes, especialmente com armas de fogo. Em 2018 e 2019, não houve nenhuma vítima fatal (com tiros) em operações das forças de segurança portuguesas. Em 2017, houve apenas duas, sendo uma delas uma brasileira, morta por engano após uma abordagem policial. O carro em que a mulher estava foi confundido com o de assaltantes em fuga e foi alvejado 40 vezes. Os policiais foram absolvidos.