BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - Quando tinha 20 anos, Rosario Murillo começou a trabalhar como secretária de Pedro Joaquín Chamorro, o diretor do jornal La Prensa, bastião de resistência à tirania de Anastasio Somoza, na Nicarágua. Em suas horas livres, escrevia poesia e participava de saraus literários. Vinha de uma família aristocrática, tinha estudado na Europa e sonhava ser escritora.

Discretamente, a jovem funcionária do jornal opositor acompanhou os bastidores da revolução sandinista de 1979. Conheceu, naqueles anos, atores importantes do episódio, como seu futuro marido, Daniel Ortega, com quem começou uma correspondência epistolar, enquanto ele estava na prisão. Os dois se encontraram pessoalmente em Caracas, tempos depois, visitando a casa natal de Simón Bolívar. E se casaram na Costa Rica em 1978.
Também no La Prensa, Rosario Murillo conviveu, além do próprio Pedro Joaquín Chamorro –assassinado pela repressão em 1978–, com a mulher dele, Violeta, que presidiu o país entre 1990 e 1997, e com seus filhos Carlos Fernando, Cristiana e Pedro Joaquín.


Na última quinta (12), o jornal La Prensa anunciou que estava deixando de circular por conta da perseguição política e econômica da ditadura de Ortega. O maior diário da Nicarágua é a mais recente vítima de um avanço contra os meios de comunicação que levou à prisão ou ao exílio dezenas de dezenas de jornalistas.


Nos últimos meses, também se intensificou a perseguição a líderes políticos, levando 30 deles a serem processados ou presos. A lista inclui Cristiana e Pedro Joaquin Chamorro, impedidos de concorrer à eleição presidencial e legislativa de 7 de novembro.


A repressão a políticos e meios de comunicação opositores ao regime ditatorial na Nicarágua prepara o que tudo indica que será uma eleição fraudulenta. Por trás dela estão Daniel Ortega e Rosario Murillo, o casal presidencial. Alarmada, a comunidade internacional reage, com os EUA e a União Europeia impondo sanções econômicas à cúpula do poder por conta de abusos aos direitos humanos.


Rosario Murillo, que é número dois no regime, é também o rosto e a voz da ditadura. Todos os dias, ela fala à população por meio de rádio e televisão nacionais com seu tom de voz que pode ir do solene e impessoal ao sedoso e maternal e ao raivoso.

Nesses momentos, a vice apresenta sobre notícias de clima, segurança e serviços, além de mensagens de propaganda do governo, com insultos e xingamentos aos opositores. E seu rosto e sua assinatura também costumam acompanhar outdoors de inaugurações de obras.
O figurino chama a atenção: é um hippie exagerado, que aposta em cores chamativas, e investe em cachecóis –mesmo numa cidade de clima tão quente como Manágua. Sempre cheia de anéis e pulseiras, faz referências a seu modo esotérico de ver o mundo.


Daniel Ortega aparece tão pouco em público que é comum surgirem boatos de uma suposta doença ou até mesmo de sua morte. De tanto em tanto, ele reaparece para desmenti-los. Mas quem está todos os dias na vida dos nicaraguenses é Murillo.


Sua amiga de juventude, a escritora Gioconda Belli afirma que Murilo é também "muito supersticiosa". Hoje vivendo no exílio nos EUA, Belli afirma não reconhecê-la mais. "Afastou-se de todos. Se diz uma apaixonada pela cultura da Nicarágua, mas persegue os intelectuais que são críticos a seu marido", diz. Um dos que sentiram na pele a perseguição de Murillo foi o sacerdote e teólogo Ernesto Cardenal, o mais importante escritor da Nicarágua, morto em 2020.


"É óbvio que ela tem rancor daqueles que ganharam protagonismo naquela época. Principalmente de Cristiana Chamorro, porque é alguém que a conhece, sabe que ela é medíocre. Cristiana vinha conseguindo apoios para tirá-la do poder, e isso ela não pode tolerar", afirma a socióloga Zoilamérica Ortega Murillo, filha mais velha da número dois do regime e enteada do ditador. "Não se trata apenas de uma estratégia para manter-se no comando, tem também um componente de vingança pessoal muito grande em suas atitudes."


Em 1998, Zoilamérica acusou Ortega de tê-la violado por vários anos, enquanto ela ainda era menor de idade e vivia com o casal. Murillo deu as costas para a filha e fez pressão para que a Justiça arquivasse o assunto. Zoilamérica, 53, teve de fugir do país e vive na Costa Rica, onde trabalha com ONGs de direitos humanos e faz oposição ao regime.

Foi depois da derrota de Ortega para Violeta Chamorro, em 1990, que Murillo trocou o papel de companheira discreta por um mais destacado na vida pública do marido. "Ele foi perdendo amigos e companheiros de militância por ter abandonado suas convicções, por ser cada vez mais autoritário, então ela passou a ser sua companheira em tudo. Ninguém que eu conheça daquela época tem relação com ele, está muito isolado", diz o escritor Sergio Ramírez, colega de militância de Ortega nos anos 1980.


A presença de Murillo na vida de Ortega se intensificou a partir de 1994, quando o ditador sofreu um infarto. Desde então, ela passou a controlar sua saúde e sua dieta e também a influenciar mais no governo, ocupando vários cargos, inclusive o de chanceler.


Nas eleições deste ano, Ortega será candidato à Presidência pela oitava vez, sendo a segunda em que tem a mulher como companheira de chapa.


Mas foi apenas a partir de 2018, com os protestos contra o regime que deixaram mais de 300 mortos, que Murillo passou a tomar a dianteira na decisões. É a ela que respondem, por exemplo, as milícias sandinistas, formadas por jovens militantes, que tiveram papel central nos atos de violência e vandalismo daqueles dias, junto às Forças Armadas.


Quando tinha 11 anos, Murillo foi enviada pelo seu pai, um rico produtor de algodão, para estudar na Europa. Ela passou pela Inglaterra e pela Suíça, mas acabou interrompendo o plano de se formar no exterior quando engravidou, aos 15 anos, do jornalista Jorge Narváez, enquanto passava férias com a família em Manágua. Acabou se casando e voltando a viver em seu país.


A mãe de Murillo, Zoilamérica Zambrana Sandino, era sobrinha de Augusto César Sandino (1895-1934), o líder revolucionário e anti-imperialista que lutou contra a presença dos EUA na Nicarágua entre os anos 1927 e 1933, e que inspiraria o sandinismo.

Murillo foi casada ainda uma segunda vez antes de se unir a Ortega. Ao todo, teve dez filhos. Um deles, com seu segundo marido, o jornalista Hanuar Hassan, morreu ainda bebê, num terremoto que derrubou parte de sua casa, em 1972. Amigos da época dizem que Murillo, abalada com a tragédia, se apegou aos estudos espirituais. Foi nessa época que publicou seu primeiro livro de poesias. Ela é autora também de "Amar Es Combatir" (1982), "Las Esperanzas Misteriosas" (1990) e "El País que Soñamos" (2001).


Hoje, os filhos de Murillo e Ortega dirigem empresas estatais ou relacionadas ao governo. O mais poderoso deles é Juan Carlos Ortega Murillo, diretor de um canal de TV e líder do Movimento Sandinista 4 de Maio. Juan Carlos também está sancionado por conta de seu envolvimento na repressão de 2018.