SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Na quarta (1º), entrou em vigor no Texas uma lei que proíbe todo tipo de aborto, mesmo em casos de estupro e incesto, após um ultrassom conseguir detectar se o coração do feto está batendo, o que acontece por volta da sexta semana de gestação. Boa parte das mulheres sequer sabe que está grávida.
 

Ao decidir não bloquear a legislação, a Suprema Corte dos Estados Unidos desenhou o mapa para banir o procedimento quase que em definitivo no resto do país. Os republicanos têm salivado há décadas por este momento. Agora é hora, como gostam de dizer, de "chutar o traseiro" de Roe vs. Wade.


Trata-se do nome do caso, em 1973, que levou à decisão da mais alta corte americana de reconhecer o aborto como um direito constitucional da mulher. Há quase meio século, os ativistas antiaborto, com uma mão amiga do Partido Republicano, têm pedido à Suprema Corte para reverter a deliberação que tomou 48 anos atrás –ou seja, admitir que a Constituição não dá um pio sobre o aborto, a favor ou contra ele.


Um dos conservadores do tribunal em sua época, Antonin Scalia (1936-2016) argumentava que colegas mais à esquerda haviam, no passado, estabelecido direitos políticos sem se preocupar se por baixo deles havia qualquer carpete constitucional. "Algum dia vocês terão uma Suprema Corte muito conservadora e se arrependerão dessa abordagem", vaticinou. Esse dia chegou.


O capítulo texano é uma vitória para o conservadorismo de digitais religiosas que, tal qual uma sanfona, mingua e infla sazonalmente na nação que se vangloria por respeitar o direito do indivíduo de fazer suas escolhas com mínima intervenção do Estado –até mesmo regular o acesso de civis às armas é tabu nacional. Onde já se viu o governo meter o bedelho na minha vida? Já na de milhões de mulheres, tudo bem. O aborto vai ficar mais difícil para todas, e sem surpresa as mais pobres são as que mais vão sofrer.


A aversão ao aborto eletriza o eleitorado conservador há anos, uma causa que viu sua voltagem exponencializar na era Donald Trump. Mas a bandeira nem sempre foi prioridade dos evangélicos brancos, importante tropa aliada do ex-presidente que perdeu o cargo para o democrata Joe Biden.

Um bom termômetro é a Convenção Batista do Sul (SBC, na sigla em inglês). Trata-se da maior denominação evangélica do país, guarida para duas estrelas do televangelismo nacional, Jerry Falwell (1933-2007) e Billy Graham (1918-2018). Na mesma década do Roe vs. Wade, a SBC publicou resoluções bem flexíveis sobre o procedimento. Dizia trabalhar por uma legislação que liberasse o aborto em casos como "estupro, incesto, evidências claras de deformidade fetal grave e evidências cuidadosamente verificadas da probabilidade de danos à saúde emocional, mental e física da mãe".


Na época, evangélicos não morriam de amores por essa luta por a enxergarem como uma questão católica. Não queriam dar ibope para uma bandeira do Vaticano, resume o historiador da religião Randall Balmer, da Dartmouth College. A disposição de comprar essa briga engatou de vez nos anos 1980, com a vitória do republicano Ronald Reagan, de quem Trump emprestou o slogan Make America Great Again.


Outro julgamento da Suprema Corte deu um empurrãozinho para o despertar político dos chamados evangélicos brancos dos EUA. Em 1971, o tribunal decidiu que um colégio particular que praticava discriminação racial não poderia pleitear isenção de impostos. Muitos deles eram comandados por religiosos em estados de herança escravagista, como Mississippi.


Elas acolheram alunos brancos que migraram para o sistema privado após –ela, de novo– a Suprema Corte proibir escolas públicas de segregar com base na cor da pele.


"Quando a Receita Federal ameaçou rescindir benesses fiscais, provocou Jerry Falwell e outros a se tornarem politicamente ativos", afirma Randall Balmer. "O surgimento da direita religiosa foi o ápice desses esforços. O aborto foi adicionado à sua agenda política no final da década."


Eis a deixa para megapastores como Billy Graham passarem a dizer que todo cristão que zele pelo título tem a obrigação de interromper "o assassinato de bebês não nascidos".


"Havia uma corrente pró-vida antes disso, mas não era uma questão dominante", diz o teólogo Timothy George, diretor-fundador da Beeson Divinity School. "O que mudou: a Igreja Católica sempre se opôs ao aborto, mas a Renovação Carismática [movimento católico vizinho ao pentecostalismo] tornou-se muito mais vocal após Roe vs. Wade. Aí os evangélicos se aliaram aos católicos para resolver esse problema."


Em 2021, ganharam uma batalha crucial. A lei texana tem um trunfo sobre antecessoras: permite que qualquer cidadão processe quem facilitar um aborto ilegal –quase todos, agora. É guerra.