Sputnik - O diagnóstico foi elaborado no âmbito do projeto #MigraMyths, de combate aos estereótipos, mitos e fake news relacionados à imigração. Promovido pela CBL e financiado pelo Programa de Apoio ao Associativismo Imigrante, do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), o projeto criou um formulário nas redes sociais para ouvir imigrantes e conhecer as diferentes realidades e experiências no processo de imigração. Na pesquisa, foram recolhidos relatos que evidenciavam a realidade e o impacto da discriminação na vida dos(as) imigrantes em Portugal, especialmente dos brasileiros.

A maioria dos inquiridos eram de nacionalidade brasileira (77,1%), mulheres (77,8%), com ensino superior completo (80,5%) e residentes em Lisboa (62,7%). As faixas etárias mais representativas foram de 35 a 39 anos (24,6%) e 30 a 34 anos (22%). Segundo o relatório, de forma geral, evidenciou-se que a nacionalidade brasileira sofre mais discriminação baseada em preconceitos e estereótipos sobre a imigração ou por ser imigrante em Portugal (66,95%).

"Nosso diagnóstico revelou que o estereótipo das mulheres brasileiras em Portugal que está relacionado à prostituição: 23,9% dos(as) inquiridos(as) afirmaram já ter vivenciado algum tipo de discriminação ou ouvido algum tipo de comentário relacionado à prostituição da brasileira. A seguir, os estereótipos, mitos e fake news mais representativos estão relacionados à criminalidade (21,6%), a roubar emprego (14,2%) e a roubar maridos (também relacionado às mulheres brasileiras - 14,4%)", lê-se em um trecho do relatório. 
 
Além da pesquisa quantitativa, houve uma qualitativa, com relatos de imigrantes cujas identidades foram preservadas, como o de uma brasileira que mora em Setúbal: "Trabalho em call center e já ouvi que era incompetente para fazer meu trabalho porque brasileira só é boa para uma coisa. Hoje uma senhora me disse que aqui não era bagunça como o Brasil e que ela era racista mesmo."

A própria presidente da CBL, Cyntia de Paula, conta à Sputnik Brasil que já foi vítima de discurso de ódio em uma página de extrema-direita no Facebook. Ela fez queixa à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), mas o Ministério Público arquivou a denúncia por alegar que a página havia sido retirada do ar e não era possível identificar o responsável.

"Infelizmente, é mais comum do que a gente pensa. É fundamental registrar essa situação, identificar e denunciar. Apesar de a legislação de Portugal não ser como a do Brasil, é preciso fazer alguma coisa. Quantas vezes já não ouviu isso? Recebemos mais de 100 relatos, a maioria de mulheres. Esse tipo de experiência é catastrófica. Não é um relatório do governo, mas de uma organização da sociedade civil", destaca Cyntia. 


Sputnik Brasil também ouviu brasileiros que foram vítimas de xenofobia em Portugal. "Brasileiros são escravos", "volta para a favela de onde você veio", "seu defeito é ser brasileira" são alguns dos insultos ouvidos em Portugal no cotidiano. O próprio correspondente da Sputnik em Lisboa presenciou uma cena de discriminação em um restaurante no bairro de Penha de França na última semana. 

Ao ouvir um homem falando alto ao celular que "brasileiros são os segundos africanos, são escravos, têm que ir embora" em um restaurante onde trabalham três brasileiros (um dos quais estava servindo este homem), o repórter recorreu à Polícia de Segurança Pública (PSP) e o denunciou. Três policiais foram ao restaurante e conduziram o homem coercitivamente à esquadra, que fica em frente. Segundo um policial, como o homem não portava nenhum documento, a polícia foi à casa dele para identificá-lo.

De acordo com o artigo 240º do Código Penal português, é crime "difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de gênero ou deficiência física ou psíquica". A pena prevista é de prisão de seis meses a cinco anos. 


Apenas 2% das queixas entre 2017 e 2019 resultaram em sanções

Na prática, contudo, apenas 13 pessoas foram condenadas por discriminação racial pelos tribunais portugueses desde 2017. Já a CICDR, que atua no regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate à discriminação, tornou públicas 20 decisões no mesmo período, a maioria com multas ou admoestações aos denunciados, sanções cabíveis nestes casos, em que são consideradas contraordenações, mas não crimes.

Metade diz respeito à prática de atos racistas em espetáculos desportivos, sete deles punidos com coimas (multas) variando entre € 375 (R$ 2.351,25) e € 1.500 (R$ 9.405). Dois foram contemplados apenas com admoestações, inclusive um torcedor que exibiu "uma cruz suástica nazi" durante um jogo de futebol.

Nos outros dez casos, além de discriminação contra negros e ciganos, houve dois processos relacionados ao aluguel de imóveis com preconceito contra determinadas nacionalidades, não identificadas. Na única das 20 decisões em que a nacionalidade da vítima é revelada, trata-se de uma situação em que "foram proferidas expressões depreciativas em razão do pertencimento à nacionalidade brasileira do ofendido". A sanção aplicada foi uma multa de € 530 (R$ 3.323,10), mas o recurso do acusado foi julgado procedente.

As 20 decisões com algum tipo de sanção representam apenas 2% das 961 queixas recebidas pela CICDR no mesmo período, entre 2017 e 2019. Dados do último Relatório Anual sobre a situação da Igualdade e Não Discriminação Racial e Étnica, referentes a 2019, mostram um aumento de 26% no número de queixas em relação ao ano anterior. Desde o primeiro relatório elaborado pela CICDR, em 2014, o crescimento foi superior a sete vezes.

De acordo com o último relatório, dentre as queixas recebidas pela CICDR em 2019, a expressão que mais se destaca como motivo da discriminação é a pertença à "etnia cigana" com 19,3%, sendo seguida pelas expressões "cor da pele negra/preto(a)/negro(a)/raça negra" (17,7%) e "nacionalidade brasileira" (17%).

A administradora carioca Raquel Cruz não está nessas estatísticas, pois considera que não adianta denunciar, mas também sente a xenofobia na pele em Lisboa, onde mora há três anos e meio. À Sputnik Brasil, ela diz que nunca tinha passado por isso, mas que, em Portugal, o preconceito é recorrente.

"No meu antigo  trabalho,  um colega disse que eu não devia estar em Portugal e que meu defeito era ser brasileira. Eu vivia ouvindo: 'esses brasileiros estão acabando com esse trabalho' e 'por que você não volta para sua terra, brasileira?'. Só em Portugal senti o preconceito de perto pela primeira vez na vida. Depois, houve vários outros episódios. Minha reação foi não reagir, fiquei inerte, nunca me posicionei ou confrontei. Ficava mesmo sem reação alguma, apenas tentava entender o porquê dessas atitudes", conta Raquel.

Questionada por Sputnik Brasil por que nunca denunciou, Raquel tem uma resposta bastante compreensível à luz dos números.

"Eu errei por omissão, ser imigrante não é fácil. Além do mais, trabalhamos tanto que não dá para parar um dia e ir fazer a denúncia que 'não vai dar em nada'. Sei que é triste pensar assim", ela lamenta.

Deputada diz que autoridades desencorajam denúncias

O erro não é de Raquel ou de qualquer outra vítima. A deputada Beatriz Gomes Dias reconhece que as próprias autoridades desencorajam pessoas a denunciar e que a legislação portuguesa ainda é muito fraca para combater casos de racismo, xenofobia e outros tipos de discriminação. Ao fim do debate virtual "O papel da representatividade política no combate ao discurso de ódio", organizado pela CBL no âmbito do projeto #MigraMyths, a parlamentar do Bloco de Esquerda falou à Sputnik Brasil.

"Muitas vezes, os policiais inventam um monte de coisas para as pessoas não apresentarem queixas. Já há muitos relatos de pessoas que quiseram apresentar queixa, depois os policiais diziam que iam ter que pagar, coisas assim", afirmou a deputada. 

Mesmo com o anúncio da criação de um Observatório de Combate ao Racismo e à Xenofobia, assim como um Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação, ambos previstos para 2021, Beatriz Gomes Dias avalia que as medidas são apenas um esboço e que ainda há um longo caminho a percorrer para a efetivação de políticas públicas antidiscriminatórias. Segundo ela, em março, o governo deve colocar o plano em audição pública para que as pessoas possam contribuir. 

"Outra medida era que o plano fosse construído em articulação com organizações da sociedade civil: antirracistas, de pessoas ciganas, migrantes e refugiadas. O governo criou um grupo de trabalho para formação do plano com algumas organizações e alguns investigadores. Penso que a composição do grupo não é tão diversificada quanto gostaríamos. Também sou da opinião de que o Observatório só por si não funciona, pois tem o papel de encomendar estudos sobre as dimensões do racismo e da discriminação e fazer recomendações. Mas, depois, quem implementa as recomendações, como se põe em prática? Portanto, ainda falta muito para começarmos a ter políticas públicas antirracistas. Ainda estamos só na fase de pensar o pensamento. Mas os avanços vão acontecendo", ela ponderou.

Carioca insultada

Enquanto as medidas não saem do papel, brasileiros como a consultora imobiliária Amanda Mello continuam a sofrer preconceito por conta da sua nacionalidade. Morando em Lisboa há seis anos, a carioca conta que um português que trabalhava com ela já a assediava e a menosprezava, até que, em uma discussão, ele gritou que ela devia voltar para o Brasil. Ela não aceitou calada e reagiu. Segundo Amanda, os chefes tiveram conhecimento do episódio, mas não tomaram nenhuma atitude. Contudo, tempos depois, o português acabou demitido. 

"Ele começou a gritar comigo, na frente dos outros colegas, até que veio a frase clássica: 'Volta para tua terra! Para a favela de onde você veio.' Eu o enfrentei e disse que ele não estava em casa e que eu não era da família dele para ele estar gritando. E que, com a idade dele, ele poderia enfartar. Ele ficou fora de si, gritando feito louco, e dois colegas vieram tirá-lo de perto de mim. Apesar de saberem, os gerentes da empresa nada fizeram. Ele permaneceu lá por mais pouco tempo e depois foi demitido pelo seu 'temperamento explosivo'. Na época, eu ainda não tinha minha autorização de residência e não queria me expor. Então, não levei à frente. Assim como a maioria não leva", relembra Amanda.