País lidera estatística compilada por ONG britânica, com 57 mortes de um total de 207 no ano passado. Governo brasileiro contesta os dados

Lima

O Brasil foi o país mais letal para ativistas e defensores da terra e do meio ambiente em 2017, denuncia a ONG britânica Global Witness em seu terceiro relatório anual sobre as lutas pelos direitos humanos ligadas aos recursos naturais, que abrange 22 países. O texto, intitulado A Que Custo? e lançado nesta terça-feira, aponta o agronegócio como o setor mais violento, responsável por 46 mortes no período estudado em todo o mundo. Em anos anteriores, mineração desencadeava a maior parte desses conflitos.

Pelo menos 207 líderes indígenas, ativistas comunitários e ecologistas foram assassinados mundo afora por protegerem seus lares e comunidades dos efeitos da mineração, da agricultura em grande escala e de outras atividades que ameaçam sua subsistência e seu modo de vida, indica a ONG.

O Brasil foi o país com o maior número de ativistas ambientais assassinatos: 57, dos quais 80% defendiam os recursos na Amazônia. O Governo brasileiro contesta os dados (veja o box). Entre os países latino-americanos, destaca-se negativamente também a situação na Colômbia, onde houve 24 assassinatos. “No México e Peru os homicídios passaram de 3 para 15 e de 2 para 8, respectivamente”, diz o relatório.

Em 2015, a Global Witness registrou 78 casos de pessoas assassinadas por conflitos fundiários, sendo 66% delas na América Latina. Em 2017, a região continua concentrando quase 60% desses crimes. Chama a atenção também o dado das Filipinas, com 48 homicídios, a cifra mais alta documentada em um país asiático.

“O Brasil foi o cenário de três terríveis massacres, nos quais 25 pessoas defensoras da terra morreram.”

“Um fator em comum entre os países com maior número de assassinatos são os altos índices de corrupção governamental. E, embora se pudesse dizer que há menos ataques contra defensores em países mais democráticos, vale a pena examinar o papel dos países investidores que facilitam a entrada de suas empresas em contextos onde opositores e ativistas são atacados. Não há tantos assassinatos no Canadá ou na Espanha, mas esses países têm investimentos relacionados a ataques no exterior”, diz ao EL PAÍS o coordenador de campanhas da Global Witness, Ben Leather.

Alvos da violência

“Uma pessoa defensora da terra ou do meio ambiente é alguém que toma medidas pacíficas, em caráter voluntário ou profissional, para proteger os direitos ambientais ou da terra”, descreve o relatório. Frequentemente são pessoas comuns, “outras são líderes indígenas ou camponeses que vivem em montanhas remotas ou florestas isoladas, que protegem suas terras ancestrais e seus meios de vida tradicionais contra projetos de mineração, do agronegócio em grande escala, das represas de hidrelétricas e de hotéis de luxo. Outros são guardas florestais que perseguem a caça furtiva e o desmatamento ilegal. Também podem ser advogados, jornalistas ou funcionários de ONGs que atuam para expor abusos ambientais e a grilagem de terras”, acrescenta.

Na Colômbia, por exemplo, Hernán Bedoya se manifestava contra plantações de dendê e banana em terras roubadas da sua comunidade quando foi assassinado com 14 disparos de um grupo paramilitar, em dezembro último.

Ramón Bedoya nas terras da sua família (Colômbia).Ramón Bedoya nas terras da sua família (Colômbia).THOM PIERCE / GLOBAL WITNESS

Das 207 pessoas assassinadas no ano passado, um quarto era de indígenas, em comparação com 40% em 2016. A população indígena representa 5% da população mundial, por isso a ONG destaca que “continuam estando enormemente super-representados entre os defensores assassinados”.

Diferentemente das populações urbanas, que costumam passar de uma casa alugada para outra ou se mudam de bairro sem sentir um deslocamento dramático, a relação com a terra é muito diferente no mundo rural e indígena. Por que é tão indispensável? Uma frase de um pesquisador peruano de literatura andina pode dar uma resposta. “A terra nos orienta, a árvore sabe mais”, afirma o catedrático Mauro Mamani, nascido em Arequipa e que cresceu cultivando um lote arrendado por um latifundiário. “Esse pedaço de terra não se cansava de parir e alimentou toda a família”, relatou numa conferência.

O ano de 2017 não foi só o mais sangrento já registrado em número de homicídios de defensores da terra; foi também o de mais massacres. Em sete casos, mais de quatro pessoas foram assassinadas ao mesmo tempo. “O Brasil foi o cenário de três terríveis massacres nas quais morreram 25 pessoas defensoras da terra. Oito ativistas indígenas foram massacrados nas Filipinas, enquanto no México, Peru e República Democrática do Congo também ocorreram incidentes que resultaram na morte de mais de quatro pessoas ao mesmo tempo”, informa a Global Witness.

Em uma dessas chacinas no Brasil, 20 indígenas gamelas ficaram gravemente feridos depois de um ataque de homens armados com facões e rifles. Alguns deles tiveram as mãos cortadas.

Nas Filipinas, oito membros de uma comunidade que se opunham a uma grande plantação de café da empresa Silvicultural Industries em sua terra foram mortos por militares. A ONG suspeita que essa força armada seja responsável por 56% dos assassinatos de ativistas no país – 67% das mortes ocorreram na ilha de Mindanao, rica em recursos, e 41% estão relacionados ao agronegócio.

“O pano de fundo desse crescente número de vítimas mortais inclui um presidente descaradamente contrário aos direitos humanos, a militarização das comunidades, múltiplos grupos armados e o fato de que os organismos governamentais não oferecem proteção”, lista a ONG.

Como evitar mais agressões?

Diante do aumento da violência, a organização britânica recomenda em quase todos os casos que os Governos fortaleçam as instituições responsáveis por proteger os direitos dos povos indígenas e seu acesso à terra, ofereçam mecanismos de segurança às pessoas ameaçadas e garantam a transparência do Estado, já que a corrupção e a participação de agentes públicos nas mortes estão associadas ao aumento das agressões.

Das 207 pessoas assassinadas no ano passado, um quarto era de indígenas

Entretanto, na América Latina a maioria de Governos não tem uma prática de transparência nem dá prioridade ao balanço de suas ações. Apesar disso, Leather salienta algumas iniciativas. “Existem propostas da sociedade civil que os Governos da região devem aplicar. Em Honduras, solicitou-se a criação de uma promotoria especial para crimes contra defensores de direitos humanos. No Brasil, pediu-se a federalização dos assassinatos emblemáticos de pessoas defensoras cujas investigações não avançam em escala local. No México também pedem aos promotores que alterem a metodologia de forma a considerar adequadamente os motivos potenciais, relacionados com o ativismo da vítima”, detalha.

O relatório cita os ineficientes mecanismos de proteção a três líderes mexicanos no último ano. “As comunidades Coloradas de la Virgen e Choreachi, na serra de Tarahumara, se envolveram numa longa disputa jurídica contra a outorga de concessões madeireiras em suas terras ancestrais. Segundo Isela González, diretora da Aliança Sierra Madre, sete membros dessas comunidades foram assassinados entre 2013 e 2016. Nenhum dos assassinos foi levado à Justiça”, afirma.

Em 2014, González começou a ser ameaçada de morte por participar de uma campanha contra as concessões. As autoridades mexicanas lhe entregaram um botão de pânico e lhe ofereceram a possibilidade de solicitar escolta policial, mas em março deste ano a ativista disse à Global Witness que não se sentia protegida.

Para o México, o relatório propõe que o Governo garanta avaliações de impacto social, ambiental e de direitos humanos “antes da outorga de qualquer permissão ou concessão para projetos de desenvolvimento ou de exploração de recursos naturais”, já que a imposição de projetos às comunidades “sem seu consentimento livre, prévio e informado é a causa dos ataques contra as pessoas”.

No Peru, seis agricultores foram assassinados a tiros em setembro após terem as mãos amarradas. O contexto foi uma disputa por terras em Ucayali, uma das duas regiões mais afetadas pela exploração ilegal de madeira e pelo desmatamento para dar lugar a cultivos de palma (dendê).

O mesmo diagnóstico é aplicável ao Peru, onde dezenas de projetos de mineração, infraestrutura e agroindústria foram implantados sem processos de consulta aos povos indígenas, o que seria obrigatório por se tratar de um Estado que desde 1989 é signatário do Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho e aprovou a Lei de Consulta Prévia em 2011.

Desde 2013, o Ministério de Cultura do Peru realizou 41 processos de consulta prévia. A ministra Patricia Balbuena disse ao EL PAÍS que esse organismo está esperando a decisão do Tribunal Constitucional para saber o que fazer com dezenas de projetos energéticos ou de mineração sobre os quais os povos indígenas deixaram de ser consultados entre 1995 e 2012. Duas comunidades da região de Puno (sul do Peru) esperam, desde 2011 e 2014, respectivamente, que o Tribunal Constitucional responda aos pedidos de liminar contra concessões de mineração que o Estado outorgou sem seu conhecimento e que se sobrepõem às suas terras.

O porta-voz de Global Witness também vê “potencial prático nas instituições internacionais independentes, quando sua operação é permitida”, e cita como exemplos a Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala e o Grupo Assessor Internacional de Especialistas (GAIPE) que acompanhava a investigação do caso de Berta Cáceres, ativista hondurenha assassinada em 2016 por enfrentar a empreiteira que construía uma hidrelétrica em terras indígenas.

A responsabilidade do setor privado

Além da Silvicultural Industries nas Filipinas, o relatório menciona também a empresa Desarrollo Energético SA em Honduras como empresas privadas ligadas aos assassinatos. “O grau de indício para poder acusar a uma empresa é bastante alto, e já é complicado citar os setores aos quais os defensores assassinados haviam se oposto”, comenta o chefe de campanhas da ONG britânica.

“Entretanto, fica claro que certos setores – e em particular a agricultura em grande escala e a mineração – não estão fazendo o devido processo para prevenir a violência contra os ativistas. Se a Global Witness pode identificar este risco, quem investe nesses setores também poderia e deveria evitar os países mais perigosos para pessoas defensoras até que seus Governos tomem medidas genuínas para abordar as reivindicações das comunidades afetadas”, acrescenta Leather.

“Somos parte da coalizão Defenders in Development, que neste ano vai publicar um relatório demonstrando que muitos defensores de direitos humanos foram agredidos por protestar contra um projeto financiado por bancos de desenvolvimento, entre eles o Banco Mundial, o Banco Holandês de Desenvolvimento e o Banco Interamericano. Até agora nenhum banco de desenvolvimento apresentou uma política específica sobre defensores e defensoras, só o Banco Holandês se comprometeu a fazê-lo”, aponta o ativista.

Uma resolução do Parlamento Europeu aprovada em 3 de julho alerta de que, diante da “febre global pela terra”, a Comissão Europeia deve considerar mecanismos efetivos sobre as obrigações de devido processo das empresas, “para assegurar que os produtos importados não sejam vinculados à grilagem de terras e a graves violações dos direitos dos povos indígenas”.

PLANALTO CONTESTA DADOS DO RELATÓRIO

Em nota à imprensa, a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República afirmou que o relatório da ONG Global Witness apresenta dados equivocados, inflados, frágeis e metodologia duvidosa. Ainda segundo a nota, a morte atribuída por investigação policial ao tráfico de drogas, por exemplo, é transformada em resultado de conflito agrário. "Se consultassem fontes oficiais, os elaboradores do relatório saberiam, por exemplo, que segundo a Polícia Civil seis dos listados como mortos por serem “defensores da terra” foram assassinados em disputa de tráfico de drogas na localidade de Iúna, distrito de Lençóis, na Bahia, e um deles foi vítima de latrocínio. Isso por si só tira qualquer resquício de credibilidade que tal documento poderia ter, e mostra que a Ong distorce os fatos", afirma o comunicado.