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Destacaria algum momento de frustração naquela época? “Está brincando, não? Foi uma guerra, aqueles primeiros anos foram uma guerra”, diz Franco, 40 anos depois, em seu escritório.
É quinta-feira, 13 de fevereiro, e Sanders acaba de ganhar as primárias de New Hampshire. O telefone do velho colaborador do prefeito toca há dois dias com ligações de vários países. Para entender como um socialista de 78 anos, que foi derrotado em 2016 e sofreu há poucos meses um ataque cardíaco, transformou-se em um sólido aspirante à indicação democrata, é preciso viajar para esta cidade universitária e próspera, a mais populosa do Estado, onde Sanders causou sensação pela primeira vez. Para o senador, foi o laboratório de testes do projeto político social-democrata que agora ele promete levar à Casa Branca.
Greg Guma, veterano ativista e editor, diz que o carisma de Sanders vem de sua capacidade de “explicar muito bem, de forma muito simples, os problemas”. Seu sucesso, por outro lado, deve-se à “capacidade de adaptação”, aponta. “Ele diagnosticou muito bem os problemas há meio século e isso ficou demonstrado agora”, ressalta.
Guma, de 73 anos, descreve com precisão seu primeiro encontro com o político. Foi em 1971, durante a primeira de duas candidaturas fracassadas ao Senado. O jovem perguntou ao candidato qual era seu histórico, e Sanders lhe respondeu com irritação: “Obviamente você não estava ouvindo. Sabe o que é o movimento? É contra a guerra do Vietnã?”. Sim, respondeu Guma, mas Sanders era uma pessoa, não um movimento, e queria saber sua história para decidir se votaria nele. “A única coisa que importa −frisou Sanders− é o movimento. Se você não acredita nele, não quero seu voto”. “Ele já era assim naquela época”, afirma Guma, rindo.
As seis pessoas consultadas para esta reportagem que trabalharam ou se relacionaram com Bernie Sanders durante aqueles anos o descrevem como um prefeito muito mais pragmático do que o esperado, alguém que sempre manteve uma agenda esquerdista de reformas, mas acabou fazendo acordos com empresários e republicanos.
Algumas lembranças colecionadas por Greg Guma. A. M.
A vibrante Vermont dos anos 60
Sanders chegou a Vermont com sua primeira esposa em 1967, vindo de Nova York, depois de se formar em Ciências Políticas pela Universidade de Chicago. Pouco antes, tinha comprado um terreno em Middlesex, perto de Montpellier, a capital do Estado, por 2.500 dólares da época (11.000 reais), e lá se instalaram em uma casinha simples, sem eletricidade nem água corrente. O casamento não duraria mais de dois anos e ele se mudou para Burlington. Teve diferentes empregos: foi carpinteiro, trabalhou no Departamento do Tesouro, foi escritor freelance. E, é claro, voltou-se também para o ativismo.
Naquela época, Vermont fervilhava com protestos contra a guerra do Vietnã e conferências políticas. Um dia, em 1971, foi à convenção do Liberty Union, um partido esquerdista recém-fundado que buscava um candidato ao Senado. Aquele nova-iorquino de 29 anos, cabelos encaracolados e óculos com armação de acetato levantou a mão e saiu dali indicado. Começaram então as candidaturas infrutíferas: para a Câmara dos Representantes, para o Governo estadual, mais uma vez para o Senado e, novamente, para o Governo do Estado. Nada. Com quatro derrotas nas costas, saiu do partido em 1976 e fundou uma empresa de produção audiovisual, onde fez um documentário sobre seu admirado Eugene V. Debs, o fundador do Partido Socialista dos EUA.
Terry Bouricius, que dividiu um apartamento com ele na rua Maple −“na verdade, ele me acolheu em seu sofá durante alguns meses”, esclarece− diz que “ouvi-lo falar hoje é o mesmo que ouvi-lo naquela época, ele diz exatamente a mesma coisa, só tem de trocar a palavra milionários, que era o que havia nos anos setenta, por bilionários”. Era teimoso, apaixonado e extremamente discreto na vida pessoal. Depois de seu divórcio, teve seu filho Levi com outra mulher. Era, naquele momento, um homem carismático na faixa dos 30 anos que não conseguia ganhar nenhuma eleição, até que um grupo de amigos o convenceu a apostar na política local. Foi aí que concorreu como independente à prefeitura de Burlington.
“Era o lugar adequado para iniciar um movimento, dava para alcançar uma massa crítica com facilidade, havia descontentamento com a gentrificação, muitos ativistas, e o Partido Democrata não estava dando uma resposta, estava velho, por isso havia espaço para um terceiro partido”, explica Guma, que em 1989 publicou um livro intitulado
The People’s Republic: Vermont and the Sanders Revolution (“a república do povo: Vermont e a revolução de Sanders”).
“Dizem que o que ele propõe é radical, mas o que é radical é a política americana. Nada do que ele propõe é estranho na Europa. Você fica doente aqui e quebra; perde o emprego, quebra; fica grávida, quebra. O que fazíamos era promover campanhas educacionais, falávamos de uma via que não era nem o laissez-faire de Reagan nem o modelo soviético”, resume Franco.
Em 3 de março de 1981, Sanders conquistou a prefeitura. “Os democratas ficaram furiosos e foram muito obstrucionistas no início. O Conselho Municipal derrubou todas as nomeações [de Sanders] e ele teve de levar adiante dois orçamentos municipais com voluntários. Não tinha como governar. Bernie conseguiu então chegar a um entendimento com os republicanos e a cidade foi administrada naqueles anos com uma coalizão entre republicanos e progressistas. Houve espaço para acordos, ninguém queria tanta carga tributária sobre os trabalhadores, queriam novas fontes de renda. Os republicanos não eram como agora”, acrescenta o advogado.
David Thelander, um republicano independente na Câmara Municipal da época, recorda que Sanders “era muito disciplinado em matéria fiscal, em um município você simplesmente tem de ser assim, e Bernie foi”.
Um socialista preocupado com o esgoto
Um dos problemas mais urgentes que ele encontrou ao chegar foi a crise de moradia. Burlington, outrora terceiro porto madeireiro mais importante dos Estados Unidos e sede de grandes fábricas no século XIX, tinha emergido bem de sua transição para uma economia mais concentrada nos serviços e mantinha importantes investimentos da IBM e da General Electric, entre outras. Os preços dos imóveis para alugar e vender dispararam.
O novo prefeito impulsionou a criação do Champlain Housing Trust, uma entidade sem fins lucrativos que mantém os custos de moradia acessíveis, contribuindo com parte do capital de entrada com o compromisso de que, quando o proprietário quer vender, deve devolver esse capital e também doar parte da revalorização. Esse projeto representa um dos legados mais visíveis e valorizados na cidade. A entidade administra hoje um total de 3.000 aluguéis e recebeu um prêmio das Nações Unidas. Chris Donnelly, seu diretor de comunicação, explica que “aquilo foi muito inovador nos anos oitenta. A primeiro intenção de Sanders foi um sistema de controle de aluguéis, mas o conselho municipal não aprovou e ele lançou isto, que continua sendo bastante singular, muita gente vem estudá-lo”.
Sanders, contam pessoas que trabalharam com ele, ficou obcecado com a viabilidade da cidade, em demonstrar que, como dizia em seus discursos, não se devia temer o socialismo. Sua segunda esposa, Jane, contou em uma entrevista à emissora pública NPR, alguns anos atrás, que o trabalho dos limpadores de neve e a situação das ruas tiravam o sono de Sanders, que costumava sair todas as noites, antes de ir dormir, para verificar como andavam os trabalhos. Queria demonstrar que era um bom gestor, que podia recitar em verso a vida de Eugene V. Debs, mas também cuidar da rede de esgoto.
Quando outros progressistas ganharam peso na Câmara Municipal, teve maior margem de manobra. Ao se candidatar à reeleição, venceu por mais de 20 pontos. Trouxe uma liga pequena de beisebol, atraiu voos de uma empresa aérea, acabou com as isenções fiscais de algumas instituições e melhorou a assistência infantil. Irmanou Burlington com a cidade nicaraguense de Puerto Cabeza em 1984 e com a russa Yaroslavl em 1988.
“Foi uma revolução em muitos aspectos, na modernização dos serviços e na estrutura tributária. Com os poderes limitados de um Governo local, mudou muitas coisas”, destaca John Franco. “A presença de Bernie em Vermont moveu o debate político de todo o Estado para a esquerda. Vermont tinha sido republicana desde a Guerra Civil, e agora [desde o fim dos anos 1980] é democrata [nas presidenciais]. É o que está acontecendo agora no país. Até agora, os democratas tinham deixado os republicanos definirem o debate”, sustenta Franco.
Quando irritou a esquerda
Sanders também pisou no calo de muitos setores da esquerda durante seus anos em Burlington. As manifestações pacifistas de 1983 contra a fábrica da General Electric por produzir armamento militar o levaram a uma luta fratricida. No passado, Bernie, o ativista, tinha ido às ruas com os manifestantes. Mas o prefeito, agora, apenas observava enquanto eles eram detidos, como relata Robin Lloyd, uma pacifista irredutível, hoje com 81 anos. Recentemente, o The Wall Street Journal perguntou a Sanders sobre isso e o senador respondeu: “Minha opinião era que ali você tinha centenas de empregos com salário decente e com representação sindical. Se fechasse ali, iria para outro lugar”.
Um socialista defendendo a fábrica, um revolucionário chamando a polícia. Greg Guma diz que Sanders “sempre foi mais da velha esquerda do que da nova esquerda, ele estava focado na análise econômica, não estava interessado na política de identidade, eram filosofias diferentes”. Hoje, a reflexão de Guma ainda é válida para muitos. Já como pré-candidato em 2016, Sanders era muito beligerante em relação aos efeitos dos tratados comerciais sobre a classe trabalhadora americana, uma crítica que, com base em ideias diferentes e com atitude distinta, compartilha com Donald Trump. Agora recebe críticas por apoiar o uso do aeroporto de Burlington por jatos F-35. John Franco disse certa vez que Sanders, nos anos oitenta, podia receber votos de eleitores do presidente Reagan. Esse é o coletivo que o senador de Vermont quer recuperar: os democratas de Reagan. O dilema é se o discurso sanderista afugentará o voto moderado, agitará os republicanos e favorecerá a reeleição de Donald Trump. Se os votos que o senador de Vermont atrair compensarão o resto.
A advogada Sandy Baird, uma ativista veterana, mudou-se nos anos sessenta, assim como Sanders, para Vermont. Entrou em choque com o prefeito pelo projeto de desenvolvimento costeiro às margens do lago Champlain. Sanders chegou a apoiar um projeto que previa alguns negócios e moradias semiluxuosas. “Ele lançou um bônus para captar financiamento, aí os ambientalistas e outros ativistas nos mobilizamos contra isso, o conselho derrubou o projeto e ele mudou de opinião. Eu o respeito por isso, porque mudou de opinião”, explica Baird, de 79 anos.
As margens do lago Champlain, embora isso tenha sido definido com Sanders já fora da prefeitura, são hoje uma área de lazer que a pessoas atribuem ao senador. Quando seu projeto foi rejeitado, ele se encarregou de batalhar no Supremo de Vermont para defender sua condição de propriedade pública. Os traços de Sanders estão em muitos outros aspectos intangíveis, em uma forma de fazer política. Promoveu, por exemplo, um sistema de assembleias de moradores para o planejamento dos bairros que contava com pequenos orçamentos públicos.
O futuro da centro-esquerda americana
O escritor Russell Banks, que escreveu um longo perfil sobre Sanders em 1985, durante seu segundo mandato, acompanhou-o em sua visita de porta em porta aos moradores da cidade, aos quais perguntava que reclamações tinham, e também os incentivava a comentar as coisas positivas. Naquele texto, fez uma pergunta meio premonitória: “É possível que esta pequena cidade de Vermont às margens do lago Champlain e seu desalinhado prefeito socialista nos contem mais sobre o futuro da centro-esquerda da política americana do que, digamos, North York e Ed Koch ou Los Angeles e Tom Bradley? Um olhar mais atento sobre Burlington e seu prefeito pode dar a resposta”.
Depois da prefeitura, Sanders conseguiu chegar à Câmara dos Representantes e ao Senado. Sempre contra o mundo. Agora quer o Salão Oval. Dá para imaginá-lo sentado lá? “Sim, tem um estilo duro, mas sempre soube se adaptar, acabou se dando bem com os empresários daquela época e está treinado para aguentar muita oposição”, responde Lloyd, que foi presa pela polícia nos protestos contra a General Electric.
Guma e Lloyd estão juntos há quatro décadas, tiveram um filho juntos e agora são avós de uma neta, mas nunca foram um casal, esclarecem, apenas amigos. Vivem em apartamentos independentes com áreas comuns em uma mesma casa. Isso lembra os anos sessenta, não? “Somos as sobras dos anos sessenta”, responde Guma.
A fotografia do hoje senador está ao lado das dos demais prefeitos na administração municipal. É de 40 anos atrás, mas com seu famoso cabelo prematuramente branco e hoje ícone juvenil estampado em cartazes espalhados por toda a cidade, é impossível não reconhecê-lo.
Max Tracy, um vereador distrital de 33 anos que pertence ao Partido Progressista, define Sanders como seu “herói”, sua “inspiração”. “Uma coisa que é igual a 40 anos atrás é que temos uma série de problemas para os quais os dois grandes partidos não dão soluções. Precisamos dessa revolução de que Sanders fala”, insiste em uma lanchonete do Old North End, o distrito que ele representa. Há algum paralelo entre a história do jovem vereador e a de Sanders. Tracy se mudou de Chicago para Vermont em 2005, para estudar na universidade, e decidiu se estabelecer em Burlington. Quando lhe pergunto por que, abre muito os olhos: “Porque esta cidade, estas pessoas, são incríveis, não acha?”
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Greg Guma, veterano ativista e editor, diz que o carisma de Sanders vem de sua capacidade de “explicar muito bem, de forma muito simples, os problemas”. Seu sucesso, por outro lado, deve-se à “capacidade de adaptação”, aponta. “Ele diagnosticou muito bem os problemas há meio século e isso ficou demonstrado agora”, ressalta.
Guma, de 73 anos, descreve com precisão seu primeiro encontro com o político. Foi em 1971, durante a primeira de duas candidaturas fracassadas ao Senado. O jovem perguntou ao candidato qual era seu histórico, e Sanders lhe respondeu com irritação: “Obviamente você não estava ouvindo. Sabe o que é o movimento? É contra a guerra do Vietnã?”. Sim, respondeu Guma, mas Sanders era uma pessoa, não um movimento, e queria saber sua história para decidir se votaria nele. “A única coisa que importa −frisou Sanders− é o movimento. Se você não acredita nele, não quero seu voto”. “Ele já era assim naquela época”, afirma Guma, rindo.
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