1968 não terminou bem para minha tia Zenir. Aos 38 anos, ela ficara viúva em abril, quando meu tio Jair morreu de câncer no pulmão, após meses hospitalizado. Mais tarde, em dezembro, logo após o AI-5, foi a vez de seu irmão Zuenir ser preso. Três agentes haviam chegado lá em casa pela manhã. Eram simpáticos, conversaram comigo, mas estranhei quando meu pai foi para o quarto se arrumar e voltou com uma sacola. Eu tinha 5 anos e perguntei: “Ué, pai, você vai viajar com eles?” Ele me tranquilizou: “Vou, mas papai volta logo.” Foi levado para “prestar esclarecimentos” e só retornaria para casa três meses mais tarde.
Um ou dois dias depois que ele foi conduzido pelos agentes para o Sops (Seção de Ordem Política e Social), uma delegacia da PF instalada na Praça XV, minha mãe e meu tio foram levar roupas, escova e pasta de dente. Sem qualquer explicação, também acabaram detidos.
Assim que viu a mulher e o irmão serem presos, meu pai explicou para o delegado Antônio da Costa Sena que sua filha – minha irmã Elisa, à época com 4 anos – estava com coqueluche, tendo acessos de tosse. “Isso é problema seu”, foi a resposta seca.
– Fiquei apavorada, estava sem notícias dos três – lembra minha tia hoje, quando se completam 50 anos daquele período.
Ela, que já cuidava sozinha das duas filhas, teve que passar a tomar conta também de mim e de minha irmã. Um dia, uma amiga nossa da Urca, Claudia, disse a ela, a respeito de outro vizinho, um militar do Exército: “Esse coronel está paquerando você.” Minha tia desconversou: “Para com isso, Claudia!” Mas ela insistiu: “É sim. Quando você passa, ele fica olhando.”
Minha tia não deu bola. Até que, desesperada pela falta de informações, bateu à porta da casa dele e explicou a situação: “Meus irmãos e minha cunhada foram presos, não sei onde estão. Minha sobrinha está doente, estou sem notícias.” Ele prometeu apurar: “Fique tranquila, vou ver o que posso fazer.” À noite, o militar foi lá em casa e contou que os três estavam no Sops.
Minha mãe passava o dia sentada num banco na delegacia e, à noite, dormia numa cama que era armada na sala do delegado. Já meu tio Zé Antônio ficou na carceragem, no porão, dormindo no chão. Após poucos dias, os dois seguiram para o Dops, enquanto meu pai foi transferido para o Regimento Marechal Caetano de Farias.
Minha mãe ficou no presídio São Judas Tadeu, localizado no andar térreo do Dops, num pavilhão com outras 30 mulheres. Assim que chegou, uma das presas ofereceu a ela a opção de ficar na cama de cima ou na de baixo do beliche. “Qual a diferença?”, ela perguntou. “Na de cima tem baratas, na debaixo tem ratos.”
Apesar do pavor de baratas, ela optou pela de cima. Minha mãe dividia espaço com presas comuns. A maioria traficantes, que alegavam: “Eu tava tomando café no botequim, alguém chegou, botou um pacote ali, a polícia veio e achou que era meu.” Mas uma detenta contava, com naturalidade: “Eu pedi dinheiro emprestado pra patroa. Minha filha pequena tava doente e eu precisava comprar remédio. Ela negou. Peguei o fio do aspirador de pó e enforquei.” O crime ficou célebre à época. Entre as presas, havia mães recentes, e tinha bebê que ficava em caixa de papelão
Minha mãe tinha como tarefa limpar a privada. “Tem lacraias, cuidado”, avisaram. Por sorte, ela tinha uma rede de solidariedade que a ajudou. Amigas como Ceres e Maria Clara levavam biscoitos, doces e outros alimentos. Não podiam vê-la, já que estava incomunicável, mas ela recebia os produtos e distribuía entre as colegas de cárcere. Assim, ficou liberada de lavar a privada.
– Eu também comecei a ensinar as presas a fazer tapete – conta hoje.
Quem dirigia o São Judas Tadeu era um casal espírita. Às 5h da manhã, eles batiam palmas e gritavam: “Acordem senhoras!”. Na época, a moda era minissaia e, quando as amigas de minha mãe iam até lá, os dois as repreendiam: “Ponham essa toalhinha, por favor.”
Ceres morava no Leblon, no mesmo prédio do general Costa Cavalcanti. Um dia, foi ao apartamento dele e suplicou: “General, eu tenho uma amiga que está presa. Ela não fez nada. Tem dois filhos pequenos, e a menina está doente.” O militar respondeu: “A senhora garante que ela não fez nada?” Ceres disse: “Garanto. Ela é minha amiga. Não tem inquérito nenhum contra ela.”
Ele confirmou a informação e assim, após cerca de um mês, ela foi liberada e posta em prisão domiciliar:
– Depois de um certo tempo, percebi que não havia ninguém tomando conta e fui à padaria. Não aconteceu nada. E comecei a sair.
Até porque não havia nenhuma acusação contra ela.
Meu tio tinha sido solto dias antes. No Dops, havia um pouco de tudo: presos políticos, bicheiros, travestis.
– O barulho de tranca da cela me marcou muito – relembra.
Após umas três semanas, ele foi chamado e levou um sermão de um militar: “Você é comunista, estamos de olho.” Meu tio ainda hoje se espanta:
– Eu era diretor de fotografia, trabalhava com cinema, não tinha qualquer ligação com política.
E assim pôde ir para casa. Mas ao viajar precisava pedir autorização às autoridades. Pouco depois, seguiu para a Itália a trabalho e ficou cerca de um ano.
Eram tempos difíceis. Eu perguntava muito: “Tia, meus pais não vão voltar?” Não pudemos ver minha mãe na cadeia, mas depois tivemos autorização para visitar meu pai uma vez por semana.
– Eu saía da prisão arrasada – diz minha tia atualmente.
Uma prisão a que meu pai foi submetido, sem culpa e sem provas, por simples e infundadas suspeitas. O ambiente naquele período era de tanto terror e paranoia que, anos depois, ele consultou sua ficha no Dops e viu o tamanho do equívoco. Achavam que era a pessoa encarregada pelo Partido Comunista de controlar a imprensa, decidindo quem seria admitido ou demitido dos jornais. Logo ele, que não tinha militância política, nem era filiado a qualquer partido e muito menos combateu o governo pelas armas. Era professor universitário e jornalista, e participou de assembleias e passeatas contra o regime militar, como tanta gente que queria a volta da democracia. Mas, em tempos de ditadura – qualquer ditadura, de direita ou de esquerda -, pensar diferente dá cadeia.
Meu pai só foi solto em março de 1969, graças a Nelson Rodrigues. O dramaturgo visitava o poeta e psicanalista Helio Pellegrino, colega de cela de meu pai, todo dia, até no carnaval. Os dois eram grandes amigos, apesar das divergências ideológicas. Nelson apoiava o regime militar, enquanto Helio era de esquerda – foi, por exemplo, orador na Passeata dos Cem Mil. Só que Nelson fez parecer maior o papel de Helio na vida pública do país. O escritor, com o exagero caricatural que lhe era comum, costumava ironizar em suas crônicas o engajamento político do amigo. Dizia que “o verbo de Helio movia montanhas”. O resultado foi a prisão do mineiro.
O dramaturgo sentiu-se tão culpado que fez de tudo para libertá-lo. Chegou a interceder junto ao general Henrique de Assunção Cardoso, chefe do Estado Maior do I Exército, alegando que Helio era uma “cotovia, um homem com alma de passarinho, meu amigo de infância!”. Insistia: “Como um homem desses pode ser um perigoso condutor das massas?”
Por fim, o general decidiu soltá-lo. Mas o psicanalista bateu o pé e disse que só saía com meu pai. Nelson respondeu: “Mas Helio, o Zuenir, essa doce figura, será que ele não vai colocar uma bomba aí no quartel?” Helio negou, o dramaturgo se convenceu de que meu pai não era um perigo e assinou um documento se responsabilizando pelos dois.
E assim o psicanalista e o jornalista que anos depois escreveria o clássico “1968 – O ano que não terminou” acabaram enfim libertados.
Mauro Ventura
http://mondolivro.com.br/as-prisoes-de-zuenir-e-mary-ventura-e-o-que-nelson-rodrigues-teve-a-ver-com-isso/