R7, com Agência Estado

Na letra da canção Sou uma Criança, Não Entendo Nada, parceria de Erasmo Carlos com o amigo de fé Roberto Carlos, lançada em 1974, Erasmo canta que, apesar de um homem feito, diante dos problemas da vida, e ao contrário do que todos esperavam dele, não entendia nada. Três dias antes de chegar aos 80 anos, completados neste sábado (5), em conversa com a reportagem do Estadão, ele confessa: "Hoje entendo menos ainda, bicho."

Esse inconformismo, na verdade, é o que leva Erasmo para frente, desde que ele, morador da Tijuca, na zona norte do Rio de Janeiro, ouvia nomes como Cauby Peixoto, Angela Maria e Dorival Caymmi cantando na Rádio Nacional. Depois, veio o rock'n'oll e a bossa nova. A vontade do garoto pobre era ser um desses ídolos. Conseguiu.


"Com 80, podia estar jogando cartas com os aposentados na praia. Não. Estou aqui trabalhando. Eu gosto do que eu faço. Quis a vida que eu fosse um compositor, que eu aprendesse alguns acordes que me permitissem fazer minhas músicas... O resto é minha imaginação que faz", diz.

Entre as novas canções, há pelo menos duas. Uma é em parceria com o rapper Emicida, feita para o novo disco da cantora Alaíde Costa. Outra é assinada com Supla, o rock Brothers Again, feita para a volta do Brothers of Brazil, projeto que o roqueiro paulistano tem com o irmão, João Suplicy.


Erasmo anda ansioso para que os shows voltem, quando as condições sanitárias permitirem, para que ele bote no palco a nova turnê que planejou. O projeto chama-se O Futuro Pertence à Jovem Guarda, frase do político russo Lenin, que também inspirou o nome do movimento ocorrido nos anos 1960,

No show, sucessos do iê-iê-iê que Erasmo nunca cantou antes. Entre eles, Coração de Papel, sucesso de Sérgio Reis; Esqueça, hit de Roberto Carlos; O Bom, de Eduardo Araújo; e Devolva-me, sucesso de Leno e Lilian. "Adoro estrada, viajar de ônibus com a banda, conhecer as pessoas pelas cidades, parar para comer churrasco. Essa é minha vida", diz.

Playlists

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Erasmo tem uma obra totalmente coerente com o que sempre representou musicalmente /DANIEL PINHEIRO/AGNEWS

 

Erasmo conta que adquiriu um novo hobby nesse intervalo forçado dos palcos: criar playlists de músicas para ouvir. Uma delas já tem mais de 600 músicas, segundo ele. Sem citar nomes, diz que seleciona canções dos anos 1950, rock e atualidades. "Ouço, choro. As melodias e a harmonia me fazem chorar. Hoje em dia, a melodia e as letras bem feitas morreram."

Ouvir —e fazer— música é um antídoto que o compositor usa para esquecer aspectos da vida atual que o afetam e impedem que ele seja plenamente feliz. "Não era esse o mundo que eu imaginava nos anos 1970. Estou decepcionado com o ódio, o egoísmo e o individualismo das pessoas. Essas coisas são do mal. Fica uma atmosfera pesada, um progresso desenfreado sem fim. A Terra é nossa casa. Precisamos cuidar melhor dela. Mas ainda acredito na humanidade, nas pessoas", diz.

Erasmo não cita a década de 1970 à toa. Foi nesse período, após o sucesso da Jovem Guarda, que ele, buscando novos caminhos musicais, sem jamais perder o rock'n'roll de vista, e para além do fortalecimento da parceria com Roberto, amadureceu os temas abordados em suas canções, voltando o olhar para questões mais existenciais e a filosofia que ele carrega até hoje: distribuir amor.

Um dos símbolos dessa fase é o álbum Carlos, Erasmo, que chega aos 50 anos agora em 2021 —e se tornou um dos mais cultuados de sua carreira. "Foi algo natural. Parei de beber e virei outro homem. Saí do bê-á-bá da Jovem Guarda e fui para a faculdade", diz, de maneira franca.

O compositor, porém, revela que seu disco preferido é o anterior a Carlos, Erasmo, chamado Erasmo Carlos e Os Tremendões, que tem músicas como Sentado À Beira do Caminho, Vou Ficar Nu Para Chamar Sua Atenção, Coqueiro Verde (todas com Roberto), Saudosismo, de Caetano Veloso, e Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. "Foi meu vestibular para essa nova fase. Estava tudo na minha frente. Era só agarrar", diz.

Para o pesquisador e produtor musical Marcelo Froes, que nos anos 2000 fez dois boxes com os álbuns dos anos 1960, 1970 e 1980 do compositor, Erasmo tem uma obra totalmente coerente com o que sempre representou musicalmente. "Nunca pisou na bola. Não há nada que o desabone. Não se rendeu a modismos. A impressão que eu tenho é que ele sempre teve liberdade para fazer seus álbuns. Se não a tivesse, não fazia", diz Froes, autor do livro Jovem Guarda Em Ritmo de Aventura.

Saúde


Recentemente, Erasmo anunciou que, há quatro anos, em um exame de rotina, descobriu um câncer no fígado. O compositor, que nos próximos dias fará novos exames para confirmar se está de fato curado da doença, como os últimos prognósticos mostram, diz que quer chamar a atenção para o tratamento que realizou em um hospital no Rio de Janeiro. Erasmo foi submetido a ablação percutânea, na qual uma sonda emite energia térmica para destruir os tumores. Ele não precisou fazer quimio ou radioterapia.

Esse é o segundo câncer que o artista enfrentou. Há vinte anos a doença apareceu na garganta. "Me cerquei da minha mulher e dos meus filhos. Minha boa fé também me ajudou. Não sou um ser especial. Sou igual a todas as pessoas. Quando algo assim vem, não tem que fugir. Só enfrentar", diz, sobre o período complicado que passou.

Fazendo jus ao apelido de Gigante Gentil que ganhou dos colegas - a fama de mau não passava de uma estratégia nos tempos da Jovem Guarda - Erasmo lembra-se de Wanderléa, amiga de uma vida toda, com quem já dividiu muito o palco, que também aniversaria neste sábado. "Um amor de pessoa. Ela se preocupa comigo, manda recadinhos, quer saber da minha saúde. É uma querida. Minha irmãzinha", diz, sobre a cantora que completa 77 anos.