Mariana Bomfim
Do UOL, em São Paulo
Graças a uma brecha na lei, o reajuste do salário mínimo definido pelo governo para este ano ficou abaixo da inflação. O índice que, pela lei, deve ser usado para os reajustes, ficou em 2,07% no ano passado, enquanto o mínimo subiu 1,81%.
Na prática, isso significa que o trabalhador vai conseguir comprar menos, neste ano, com o valor do salário mínimo.
Advogados ouvidos pelo UOL dizem que corrigir o salário mínimo abaixo da inflação é ilegal, viola a Constituição e que o governo pode ser questionado na Justiça.
Lei manda levar inflação em conta
Desde 2011, uma lei manda que o salário mínimo seja reajustado por decreto pelo presidente.
Essa lei define os termos do decreto: o reajuste deve ter como base a inflação do ano anterior, medida pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), mais o aumento do PIB (Produto Interno Bruto) de dois anos antes (no caso, 2016).
A lei de 2011 foi criada no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) com a finalidade de valorizar o salário mínimo. Em 2015, quando sua vigência terminou, a ex-presidente sancionou uma nova lei (nº 13.152), e agora a regra vale até 2019.
Como em 2016 o PIB encolheu (-3,6%), esse valor não é levado em conta para calcular o salário mínimo de 2018. Nesse caso, ele deve ser ajustado apenas pela inflação.
Governo estimou dezembro sem alta de preços
O governo definiu o reajuste do salário mínimo em dezembro, antes de a inflação de 2017 ser divulgada. Existe uma brecha na lei que permite estimar a inflação correspondente aos meses em que o índice oficial ainda não tenha sido divulgado.
Na época em que foi definido o reajuste do salário mínimo, o IBGE havia divulgado que o INPC acumulado entre janeiro e novembro de 2017 era de 1,8%. Então, o governo estimou qual seria a inflação em dezembro (e no acumulado do ano todo) e fixou o reajuste em 1,81%. Nessa conta, considerou que praticamente não haveria alta de preços no último mês do ano.
Mas houve. De acordo com o IBGE, o INPC foi de 0,26% no último mês do ano e, com isso, o reajuste do mínimo ficou abaixo da inflação.
Correção pode ser questionada na Justiça
Para o advogado trabalhista Horácio Conde, a medida do governo é ilegal. Segundo ele, a correção mínima deve ser pelo INPC e o decreto do governo, que estabelece a correção, pode ser questionado na Justiça por meio de uma ação civil pública.
Esse tipo de ação pode ser iniciado por entidades como o Ministério Público, a Defensoria Pública, sindicatos, fundações e autarquias em qualquer lugar do país.
Decreto violaria Constituição
O caso pode ir parar até no STF (Supremo Tribunal Federal), de acordo com Pedro Serrano, professor de direito constitucional da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
"Minha interpretação é de que a Constituição manda manter o valor real do salário mínimo, repondo pelo menos a inflação", diz. "Qualquer legislação que reduza o valor desse direito é inconstitucional."
O decreto do governo poderia ser contestado por meio de uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade), diz Serrano, movida por algum partido político, pelo Ministério Público ou por entidades de representação nacional, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) ou sindicatos.
Lei do salário mínimo já foi discutida no STF
O advogado Horácio Conde lembra que a primeira lei do salário mínimo, de 2011, já foi questionada no STF por meio de uma Adin ajuizada por PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), DEM (Democratas) e PPS (Partido Popular Socialista) durante o governo do PT.
Os partidos alegavam que a lei era inconstitucional porque dava ao presidente o poder de determinar sozinho, por decreto, o valor do salário mínimo. Segundo eles, a Constituição manda que o valor seja definido por lei, e não por decreto.
O STF decidiu que não havia inconstitucionalidade porque a própria lei determinava as regras do reajuste (inflação do ano anterior mais crescimento do PIB de dois anos antes). Tudo o que o presidente deveria fazer era seguir essas regras, usando os índices e dados oficiais do IBGE.
Brecha pode ser contestada
Segundo Conde, na ocasião, um dos ministros chegou a questionar o trecho da lei que permite ao governo fazer estimativas sobre a inflação e dá brecha para que o salário mínimo seja reajustado abaixo da inflação. Para o ministro, esse trecho seria inconstitucional.
No entanto, o tribunal não decidiu sobre essa brecha na lei por uma questão técnica. O STF não pode analisar questões por iniciativa própria, sem que elas tenham sido trazidas até o tribunal. E o trecho em questão não havia sido alvo da Adin dos partidos.
A lei de 2015 repete a de 2011 e segue com essa brecha até hoje. Conde afirma que contestá-la é outra maneira de questionar o reajuste do salário mínimo abaixo da inflação.
Para isso, partidos políticos, Ministério Público ou outras entidades precisam entrar com uma nova Adin no STF. Desta vez, questionando diretamente a brecha que permite fazer estimativas de inflação.