RECURSOS
 
Lisboa — O baiano Danilo Cardeal, 40 anos, conta cada centavo de euros que fatura com o trabalho de entregador de mercadorias na capital portuguesa. Há 11 meses em Lisboa, tem cumprido, sistematicamente, as metas financeiras que estabeleceu para levar de Ilhéus (BA), sua cidade natal, para o outro lado do Atlântico, a mulher, Carmen, e os dois filhos, um de 10, outro de 12 anos.

A determinação do brasileiro já lhe permitiu comprar à vista uma moto por 3.290 euros (R$ 18 mil) e tem garantido uma pensão entre 500 euros (R$ 2.750) e 1 mil euros (R$ 5.500) que ele envia todos os meses à família. Com dois empregos, que lhe consomem pelo menos 16 horas do dia, fatura 1.700 euros (R$ 9.350) por mês.

Como Cardeal, milhares de trabalhadores que migraram para Portugal em busca de uma vida melhor se tornaram a principal fonte de renda das famílias que deixaram, ainda que temporariamente, para trás.

São eles, segundo o Banco Central, que vêm sustentando um crescimento vertiginoso nas remessas de recursos do país europeu para Brasil. Somente nos primeiros três meses deste ano, essas transferências totalizaram US$ 76,8 milhões (R$ 391,7 milhões).

É mais que o dobro do observado no mesmo período de 2017, de US$ 33,9 milhões (R$ 172,9 milhões), quando o fluxo de brasileiros para terras lusitanas ganhou ímpeto. Pelos dados do BC, esses valores só são superados pelas remessas oriundas dos Estados Unidos e do Reino Unido, onde as comunidades brasileiras são maiores e estão consolidadas há tempos.


Levantamento do Observatório de Migrações aponta que, de todos os recursos enviados aos países de origem por estrangeiros que vivem em Portugal, metade pertence a brasileiros. Tal concentração, afirma a economista Sandra Utsumi, diretora executiva do Banco Haitong, é explicada pelo forte aumento na migração de cidadãos do Brasil para território luso.

Os brasileiros representam um terço de todos os estrangeiros oficialmente registrados em Portugal. São mais de 250 mil, dos quais 47,6 mil obtiveram autorização para morar na terra de Cabral nos primeiros seis meses de 2022. "Há muitos estímulos para que os brasileiros migrem para Portugal, a começar pelas constantes crises econômicas do Brasil", diz.


A economista lembra que, a partir do fim dos anos de 1980, houve uma migração grande de brasileiros para o Japão, os dekasseguis, descendentes de japoneses que haviam se mudado para o Brasil muitas décadas antes. Tempos depois, o fluxo de brasileiros se direcionou para os Estados Unidos e para a Inglaterra — em menor intensidade. Agora, o foco é Portugal. "O Japão endureceu muito as regras para imigrantes. O mesmo ocorreu nos Estados Unidos e, mais recentemente, na Inglaterra, por causa do Brexit", explica. "Em Portugal, está ocorrendo o contrário, o governo está incentivando a vinda de estrangeiros", acrescenta.


Perfil variado


O fluxo mais recente de brasileiros para Portugal é disseminado, aponta o economista Roberto Luiz Troster. "Estamos falando de trabalhadores menos qualificados, de empresários, de profissionais com nível superior, de aposentados, de empreendedores e nômades digitais", ressalta. Para ele, esse movimento só tende a aumentar. "Infelizmente, não vemos melhora econômica no Brasil tão cedo. A perspectiva é de que o país cresça, no máximo, 0,5% em 2023, independentemente de quem seja o vencedor nas eleições presidenciais", frisa.

"Além disso, temos um país extremamente polarizado politicamente, e o debate se restringe a temas como inflação, pobreza e gastos públicos. Em Portugal, e em boa parte da Europa, o pensamento está voltado para a nova economia e as oportunidades que a tecnologia traz", emenda.

Na avaliação de Troster, que comandou o Departamento Econômico da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), ainda que os salários em Portugal sejam menores do que na maioria dos países europeus — o piso atual é de 705 euros (R$ 3,8 mil) —, estão acima dos pagos no Brasil.

"Portanto, Portugal acaba sendo uma oportunidade de melhoria de vida e pode se tornar uma porta importante de entrada para a Europa, caso os trabalhadores adquiram o direito de residência", afirma. Para ele, os jovens são os mais desencantados com o Brasil e os mais propensos a deixar o país. Contudo, mesmo aqueles que têm a vida estabelecida não se acanham em vender tudo e recomeçar a vida do outro lado do Atlântico.


Professor do Insper, Ricardo Rocha assinala que há um conjunto de fatores a estimular os brasileiros a migrarem para Portugal, não só os econômicos. "Há a facilidade da língua; o clima não é tão frio no inverno como no restante da Europa; a cultura brasileira é parecida com a portuguesa; e tem a segurança pública. As pessoas podem transitar tranquilamente pelas ruas, de dia e à noite", diz.

No entender dele, não só aumentarão as remessas de recursos de brasileiros de Portugal para o Brasil, renda oriunda principalmente do trabalho, como também crescerão as transferências para o país europeu, pois parcela das classes média e alta quer fixar residência definitiva em terras lusitanas.


Os registros do Banco Central confirmam isso. Entre janeiro e março deste ano, foram remetidos US$ 105 milhões (R$ 535 milhões) do Brasil para Portugal. Parte significativa desses recursos foi para a compra de imóveis, que são mais baratos do que em regiões como Itaim (São Paulo), Lago Sul (Brasília) e Leblon (Rio de Janeiro), pois, lembra o professor do Insper, muitos descendentes de portugueses conseguiram cidadania, graças às mudanças nas leis.

Agora, o país europeu quer atrair, sobretudo, mão de obra para suprir a demanda em áreas que vão da hotelaria à medicina. Os trabalhadores que obtiverem esses vistos especiais, que duram até 180 dias e permitem que as pessoas procurem emprego nas cidades portuguesas, certamente vão remeter parte dos salários para o Brasil.

A cada euro no bolso, a esperança renovada
O brasiliense Alexandre Guimarães Davi, 37, está em Portugal há três anos. Mestre em gestão, trabalha na diretoria financeira de uma consultoria de mobilidade internacional. Todos os meses, envia entre 200 euros (R$ 1,1 mil) e 300 euros (R$ 1.650) para o Brasil, a fim de ajudar nas despesas do apartamento que mantém no Distrito Federal e para investimentos em ações.

O interesse pelo país europeu, acrescenta ele, começou quando decidiu fazer uma pós-graduação no exterior. Hoje, garante, está completamente adaptado à nova vida, ao lado de mulher e das duas filhas. "A qualidade da educação e da saúde públicas nos garante uma satisfação que não se vê no Brasil. Isso, sem falar nas facilidades de acesso a outras culturas", assinala.


Eric da Silveira Gonçalves, 28 anos, também está há três anos em Portugal. Todos os meses, transfere, em média, 100 euros (R$ 550) para o Brasil. O valor corresponde à pensão que ele paga para a filha que deixou em Porto Alegre, onde morava. Às vezes, a transferência é um pouco maior, dadas às necessidades da criança, inclusive na escola. O jovem trabalha como entregador de mercadorias, com salário líquido de 850 euros (R$ 4.675).

A mulher dele, Michelle, é gerente de uma hamburgueria e recebe 1 mil euros (R$ 5.500) por mês. "Com essa receita conjunta, conseguimos pagar todas as nossas despesas mensais de 1.200 euros (R$ 6.600), incluindo aluguel, e ainda sobra alguma coisa para diversão e para a poupança", conta ele, que tem uma filha, Laura, nascida em território luso.

Esforço e benefício


Mineira de Contagem, Paloma Bianca Martins, 28, assumiu o compromisso de ajudar a mãe e os irmãos, que continuam no Brasil, a pagar as contas de casa. Para isso, ela transfere entre 100 euros (R$ 550) e 150 euros (R$ 825) todos os meses para a família. Em Lisboa, ela trabalha em um restaurante. A jornada pesada não a desamina.

"O trabalho é estafante, mas, em Portugal, tenho acesso a coisas que não tinha ao Brasil. Posso ir aos restaurantes que quiser, ir à praia, usar transporte público com segurança, andar na rua sem medo", relata ela, que não abre mão de poupar uma parcela do salário por segurança.

Para Sherida Aryanne Paes, 30, não há a menor possibilidade de voltar para o Brasil neste momento. Muito pelo contrário. A paulista de Santa Rita do Passa Quatro quer fincar raízes em Portugal, onde trabalha como entregadora de mercadorias. "Já até comprei a minha moto", comemora".

"Foi com muito esforço, mas é minha, o que me permite ganhar um pouco mais", conta. Ela também remete entre 100 e 150 euros para o Brasil mensalmente, dinheiro fundamental para a mãe e a irmã. "Não é fácil ser migrante, precisa ter muita força de vontade, mas os benefícios que tenho em Portugal são muito bons e compensam os sacrifícios", diz.


No que depender do baiano Danilo Cardeal, até fevereiro do próximo ano, a família toda estará em Portugal. E ele não precisará mais remeter recursos para o Brasil. Os planos dele estão traçados: a mulher vai trabalhar — uma vaga está esperando por ela —, e o apartamento de três quartos que hoje ele divide com mais duas pessoas ficará só para ele e os familiares.

"Melhor, não precisarei mais trabalhar dois turnos, pois o que ganho à noite será compensado pelo salário da minha mulher", explica. "Terei, inclusive, os finais de semana livres", sonha. Experiente, ele dá um recado para aqueles que pretendem se aventurar por Portugal. "Não aceitem trabalho com salário inferior a 1 mil euros. Quem seguir por esse caminho estará condenado a morar sempre em quarto alugado."