Após 14 horas seguidas de trabalho, em uma rotina em que o excesso de jornada era comum, a recrutadora de talentos Carolina Martins preparava-se para voltar para casa quando teve um apagão. “Eu sofri um desmaio e precisei ser levada de ambulância para um hospital. Quando acordei, ainda no leito ambulatorial, a primeira coisa que pedi ao médico foi meu notebook, porque eu ainda tinha tarefas para terminar”, lembra a psicóloga que, após uma bateria de exames, foi diagnosticada com a síndrome de esgotamento profissional, mais conhecida como síndrome de burnout. Desde 1º de janeiro deste ano, o distúrbio é classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um problema ligado ao estresse crônico de trabalho que não é administrado com sucesso. Os sintomas estão relacionados a esgotamento físico e mental, cansaço, sensação de exaustão, irritabilidade, insônia, perda ou exagero na alimentação, tristeza.

“O mais curioso é que eu sempre adorei trabalhar na área de recursos humanos e recrutamento. Era algo que me dava prazer. E, por isso, à época (o episódio ocorreu em 2016), não imaginei que estaria suscetível a sofrer com esse tipo de problema”, reconhece. Hoje, a profissional tem outro entendimento. “O que eu percebo é que as pessoas que gostam muito do que fazem podem estar mais vulneráveis ao trabalho excessivo, que pode levar ao comprometimento da saúde”, comenta.

A avaliação de Carolina está em consonância com o que apontam outras especialistas ouvidas por O TEMPO. “No contexto do burnout, confundir trabalho e lazer é, sim, um fator de risco. Afinal, é algo que ofusca a percepção da pessoa sobre os males gerados pelo excesso em função das recompensas financeiras e morais que ela tem quando atua em uma área que vê sentido e propósito”, destaca a psicóloga Graziela Alves, especialista em gestão de pessoas e negócios. “Resumindo, o prazer que se tem ao trabalhar não é suficiente para impedir que o sujeito desenvolva um quadro de exaustão”, complementa.

Para ilustrar a questão, Graziela faz uma analogia com a dança. “Imagine um bailarino apaixonado pelo que faz. O fato de amar o seu trabalho não protegerá ele do esgotamento e do comprometimento físico caso, simplesmente, dance horas a fio”, diz. “Nesse caso, como no caso do burnout, o comportamento automatizado e com afastamento da consciência vai gerar prejuízos. E, se a pessoa não ouvir os sinais do próprio corpo de que precisa de descanso, então o organismo vai pará-la de alguma maneira. Em casos mais extremos, estamos falando até mesmo da ocorrência de complicações graves, como um acidente vascular cerebral (AVC)”, adverte.


Cultura do excesso

Diante das graves consequências associadas à síndrome de burnout, a jornalista e pesquisadora Izabella Camargo, autora do livro “Dá um tempo! Como encontrar limites em um mundo sem limites”, alerta para o perigo da propagação acrítica de frases como “trabalhe com o que você gosta e você nunca trabalhará”.

 
“É uma afirmativa que transmite uma ideia nociva e ilusória do que seria uma rotina saudável”, sustenta. “Se a pessoa pensa nesses termos, ela acaba mentindo para si mesma, pois, mesmo gostando daquilo que faço, eu vou me sentir cansada e, portanto, precisarei de descanso. E mesmo que ame meu trabalho, é importante, sim, que eu tenha momentos de lazer, que vão me nutrir com outro tipo de prazer, diferente daquele que encontro no ambiente laboral”, reflete.

Izabella viveu, na própria pele, os efeitos do estresse crônico de trabalho. Ela lembra que, quando recebeu o diagnóstico, já vinha de uma rotina desgastante, que levou seu corpo a pedir socorro. “Os sintomas começaram em 2014, mas a síndrome só foi descoberta cerca de três anos depois, quando eu tratava separadamente 26 manifestações físicas que, embora não imaginasse, estavam todas relacionadas”, pontua ela, que é uma das principais vozes a falar sobre o burnout no Brasil.

Armadilha da competência. “Ouvindo mais de 5.000 pessoas, posso dizer que essa síndrome vai atingir, majoritariamente, pessoas que são comprometidas, responsáveis e que amam o que fazem”, crava a autora. Ela destaca que essas pessoas, naturalmente, tendem a receber mais tarefas e incumbências justamente por dar conta de suas obrigações e por cumprir bem com suas missões. 

 
“Chamo isso de armadilha da competência, porque, em vez de ser realmente recompensado pelo seu bom desempenho, esse profissional acaba sendo, de certa forma, punido por amar o que faz”, examina Izabella.

A pesquisadora acrescenta que pessoas que se sentem vocacionadas para desempenhar um certo papel social também são mais vulneráveis ao burnout. “Por isso, algumas profissões idealizadas costumam ter maior incidência do problema, caso dos médicos, professores, jornalistas e policiais”, situa. Mas ela assevera que, ao falar sobre o problema, deve-se tomar cuidado para não culpabilizar a vítima. “Estamos falando de um acometimento associado ao ambiente profissional altamente competitivo, de estruturas que oferecem pouco suporte e pouco recurso em relação ao volume de demandas e de outras rotinas nocivas para a saúde mental, como a normatização do assédio de trabalho”, comenta.

Alerta. Para quem se entrega apaixonadamente ao trabalho, pode ser especialmente difícil identificar o momento em que tanta dedicação deixa de ser saudável. “Para essas pessoas, sugiro atenção a alguns comportamentos, que podem denotar negligência com aspectos da vida que fogem à carreira profissional”, comenta a psicóloga Carolina Martins. 

“Vale ligar o alerta se você se propôs a fazer exercícios físicos, mas não está conseguindo tempo para tal, ou se não está conseguindo se alimentar bem e se hidratar porque ‘o trabalho não deixa’. Da mesma maneira, é importante se preocupar se você está faltando a compromissos sociais ou mesmo deixando de cumprir outras obrigações, como fazer visitas médicas periódicas e acompanhar a vida escolar dos filhos, porque está sempre muito atarefado com o trabalho”, ressalta.

 
Prevenção. Percebendo esse tipo de comportamento, vale agir preventivamente. “Para começar, é entender que trabalho é trabalho, descanso é descanso, lazer é lazer. Inclusive, o repouso necessário, o contato com a arte, com o lúdico, retroalimentam a produtividade. Quando você sai em viagem, vê paisagens novas, tem conversas em outros contextos, sua criatividade é alimentada. Além disso, o sono de qualidade, os momentos em silêncio e o simples hábito de mudar o disco e consumir outros conteúdos são importantes para a autorregulação emocional, que contribuem para um melhor desempenho, seja no trabalho ou em outras dimensões da vida”, destaca Graziela Alves.

Para alcançar esse equilíbrio desejável, ela sugere o planejamento e a organização. “A pessoa pode, por exemplo, definir quantas vezes vai se dedicar a atividades físicas por semana, e estabelecer melhor sua programação semanal, incluindo atividades de lazer”, cita.

Sintomas. Há um grande leque de sinais físicos e psicológicos da ocorrência da síndrome de burnout. Os sintomas são variados, incluindo comportamentos de irritabilidade, de consumo exagerado de substâncias, dificuldade para pegar no sono e para relaxar, dores musculares e cefaleias, perturbações gástricas e baixa autoestima. Se a pessoa já sofre com alguns desses distúrbios, é importante buscar ajuda profissional a fim de se ter um diagnóstico mais preciso do problema.

Tratamento. “Geralmente, a síndrome esteja associada a outros problemas, como a depressão e distúrbios de ansiedade, que precisam ser tratados separadamente”, informa Graziela, dizendo que a psicoterapia é indicada tanto para a prevenção como durante o tratamento. “Além disso, a ajuda de neurologistas e psiquiatras pode ser indicada e esses profissionais podem orientar o uso de medicamentos para tratar sintomas do distúrbio”, diz.

A especialista destaca que, em alguns casos, se aquele profissional está instalado em um ambiente de trabalho adoecedor, pode haver indicação de uma transição de carreira. “Talvez seja uma decisão de médio e longo prazo precisa ser enfrentada”, menciona.