EM DIA COM A PSICANÁLISE


Sintoma manifesto no coletivo revela faceta de quem não tem pudor de se exibir e expor intenções espúrias, verbalizando violências. Ao analista, cabe deter o real, curar pelo amor


Há mais num sintoma do que nos julgamos capazes de compreender a princípio. Toda essa odiosidade atual entre bolsonaristas e petistas me parece um sintoma manifesto no coletivo. O conflito entre lados opostos, acompanhado do sofrimento (ou podemos dizer do gozo da pulsão de morte) pelos rompimentos entre irmãos, amigos, pessoas que pensam diferente. Pela jactância verbal agressiva jogada ao vento e no rosto.


Estou colocando no coletivo porque é um fenômeno social atual. No plano individual, todos somos sintomáticos, porque sintoma psíquico é o modo como nos ajeitamos com a realidade. Desde o berço, precisamos satisfazer necessidades básicas ainda incapazes de qualquer autonomia. Fome, sono, frio, medo, dor e outros incômodos nos obrigam a esperar que venha alguém em nosso socorro.


Algumas mães ficam ansiosas quando o bebê chora; assim ele a chama, e elas precisam traduzir a necessidade sem linguagem pelo choro: a intensidade, o volume, o tom. Dizem que um choro é sono, outro é fome, sempre traduzindo o que o bebê está sentindo. Colocam nomes que acreditam adequados. Nomes que colam. As prospecções de uma mãe sobre um filho podem ser de grande influência no futuro.


A questão é que a ansiedade da mãe impede ao bebê esperar um pouco. Um pouco de espera não é ruim. Demorar demais é, mas este pequeno tempo entre necessidade e satisfação dá início à atividade imaginativa do bebê, o protótipo da subjetividade.


A lembrança da última experiência de satisfação adia a urgência. Chamamos isso de alucinação satisfatória, a capacidade de fantasiar que para sempre nos acompanhará. Quando descobrimos a existência do outro, que não é o próprio eu, a primeira reação é a agressividade. O estranho não é bem-vindo. O diferente é ruim. O eu é bom.


O modo como aprendemos a lidar com esta reação primordial estará ligado ao modo particular de tradução do mundo. A educação vai nos humanizar e orientar sobre o certo e o errado, segundo a moral vigente em cada sociedade. Vai nos impor tolerância com o outro.


E este processo nos obriga a mandar para o esquecimento aquilo que vai contra a socialização. Mesmo que seja uma coisa que nos dá grande prazer, tipo odiar o outro e descontar nele nossa raiva. Comer as mãos era prazeroso e depois fica “nojento”. Incontinência urinária e fecal era prazer e torna-se repulsiva. O toque curioso nas partes íntimas, vergonha.


As pulsões antissociais antes da censura prazerosa se reverterão em seu oposto tornando-se desprazerosas. Por isso, ficam represadas sob vigia da censura e são esquecidas, mas pulsam para libertar-se do juízo crítico que as condenou para convivermos.


Às vezes, escapole algum prazerzinho proibido que foge à censura e logo vem o castigo, seja em modo de culpa, boicote, angústia, ansiedade, inibição etc. Sempre que pulamos a cerca, em caso de sermos pessoas normais, isto é, neuróticas, teremos estes sintomas e outros mais, tipo compulsões, obsessões, fobias, pânicos, manias, ruminações, rituais. Como dizem popularmente: de louco, todo mundo tem um pouco. Nós e nossas loucurinhas...


Então, o sintoma é como um acordo entre o desejo censurado (ódio e desejo de matar) e o juízo crítico (lei: amar o próximo como a si mesmo). Nossos dias trouxeram à tona nosso selvagem, o homem in natura. Sem pudor de se exibir. Selfies mostram tudo, o belo, o almoço, o jantar, a viagem, a roupa, a festa, a casa do outro, mostra o fake via fotoshop. Fala-se tudo sem pensar no prejuízo, difama-se irresponsavelmente. Mentem sem compromisso de responder, falam coisas estúpidas sem inibição. O exemplo vem de cima. De onde deveria vir a educação. Tudo se inverteu...


Sofremos, nós que ainda temos alguma noção e discernimento, porque não suportamos a falta de recalque e de recato. Sofremos e odiamos ao ver tudo que aprendemos a reprimir em nós sendo satisfeito (gozado) pelo outro. Não suportaríamos realizar certos atos, mesmo que desejados. Somos impedidos pela encarnação da lei.


Mas há sim os que escapam a esta encarnação e, mesmo sabendo dela, praticam o que têm vontade. Expõem intenções espúrias, verbalizam violências, aprovam torturas, homenageiam ditadores, cortam verbas para educação. É difícil saber onde vai dar esta briga. Mas ela vale a pena. Cabe ao analista deter o real, deslocar sintomas, curar pelo amor. É nossa luta.


Por isso, nos cabe questionar os sintomas. Sintomas que são nos mantém no sofrimento, encobrindo a verdade. Os que prescindem da polidez, da educação e soltam as rédeas galopando para o pior.  Brasil, bons tempos para pensar nisso. Por que tanto ódio?