(*) Amauri Meireles

 

Toda atividade profissional tem uma doutrina, um conjunto permanente de princípios fundamentais, conjunturalmente aceitos, que orienta sua operacionalização. Em sua essência, essa doutrina congrega e difunde terminologia e linguagem próprias, além de reunir condutas e procedimentos específicos de cada profissão.

Particularmente, quanto à segurança, à primeira vista, pode parecer estranho, mas, quero crer, uma das causas de inquietante e preocupante insegurança, em nossa sociedade, é a precária doutrina relativa à proteção social.

Há conceitos débeis, há interpretações heterogêneas, há órgãos, mas não há sistemas, há superposição de esforços, há inobservância das missões prescritas no Art.144 da CF/88. Aliás, talvez, a origem de sucessivos equívocos pode estar ali: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a ...”. Na fila de eventuais erros, pode vir, a seguir, a contribuição da Secretaria Nacional de Segurança Pública, a SENASP: “Segurança Pública é um processo complexo, sistêmico, abrangente e otimizado, que visa a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, permitindo o usufruto de direitos e o cumprimento de deveres”.

Sem dúvida, vistos, Segurança Pública, um processo complexo… ou Segurança Pública, dever do Estado … inexoravelmente surgirá a pergunta: Afinal, Segurança Pública é o quê?

Observem, nas duas citações, usam-se apostos sem que haja conceituação efetiva e objetiva. Na primeira, em seu início, se se trocar segurança pública por educação, transporte coletivo, saúde, saneamento, etc., continua válida a expressão. E continua “é exercida...” Ora, segurança não se exerce, segurança é um ambiente (utópico, em que todas as vulnerabilidades estão controladas e todas as ameaças estão mitigadas) decorrente dos mecanismos de proteção, as defesas, praticados pelos instrumentos de proteção (as instituições).

Na segunda, o conceito se aplica se se substituir segurança pública por “combate ao COVID-19” ou “implantação da comanda em restaurante” ou outras ações.

Segurança Pública não é um processo, não é uma ação, uma operação, as quais, são uma defesa, reitera-se, um mecanismo de provimento da proteção social.

Portanto, observa-se, até aqui, há quiméricas conceituações, um terrível vazio que enseja pessoas e instituições a adotarem certos comportamentos, na convicção de que estão dando uma enorme contribuição para a tranquilidade pública.

Veja-se, por exemplo, o publicado, recentemente, no jornal O GLOBO, sobre a percepção do novo Secretário de Polícia Civil do RJ: “... as restrições feitas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) às operações policiais não vão impedir o trabalho dos agentes e que precisaria de tanques das Forças Armadas para levar as equipes até o alto dos morros. Segundo ele, bandidos com fuzis e barricadas em comunidades justificam a intervenção policial. Defende ainda o uso de helicópteros — “uns três” — nas incursões”.

Segundo a CF/88, cabem às Polícias Civis (outro equívoco, visto que, exceto as Forças Policiais Estaduais, todas as demais polícias são civis) a polícia judiciária e a polícia de investigação.

É oportuno e urgente haver definição se “... levar as equipes até o alto do morro”, com tanques das Forças Armadas, é um trabalho de apoio ao Judiciário ou de investigação de autoria ou materialidade de delitos. E essas atividades, visando ao êxito, não deveriam ser realizadas velada e não ostensivamente? Não seria um trabalho percuciente, qualificado, técnico, idealmente realizado em gabinete, em laboratórios? “... levar as equipes...” não seria atribuição da Força Policial Estadual, a Polícia Ostensiva, a Polícia Militar?

É possível que esse sentimento, essa intenção da Polícia Civil em realizar operações típicas de Força Estadual se espelhe no modelo americano (que atende especificidades locais) ou em nosso modelo federal, onde a Polícia Federal, na falta de uma Força Policial Federal, executa missões de Polícia Ostensiva.

Esta, poderá vir a ser a Força Nacional, se reconhecida constitucionalmente, como aconteceu recentemente com a Polícia Penal.

Há uma série de procedimentos que necessitam ser revisados ou melhor entendidos. Por exemplo, cumprimento de mandado por órgão que, em princípio, trabalha descaracterizadamente, veladamente, para segurança de seus próprios integrantes, e muitos outros.

Ao contrário do senso comum, entendo que a concepção do que deveria ser um Sistema de Segurança Pública (melhor seria, sistema de salvaguarda social), em nosso país, é muito boa. Porém, para que funcione, é necessário que cada instituição policial entenda o que ela é e o que são as demais, além de conhecer muito bem as atribuições peculiares a cada uma, para se evitar conflito ou invasão de competência.

É comum ouvir-se dizer que o sistema policial brasileiro é ruim, quando, de fato, sua operacionalização é que é ruim. Aliás, antes disso, convém implantar um sistema patível, uma verdadeira sistematização e testá-la. Afinal, joga-se xadrez movendo-se as peças conforme as regras do jogo.

Enfim, culpa-se o sistema, mas, na realidade, os culpados são alguns encarregados de torná-lo efetivo, que não aceitam a sincronia, a sintonia, a sinergia, a interação entre as Instituições policiais.

O atual modelo é coerente com nossa realidade cultural, decorrente de um processo de civilização que se realizou de cima para baixo (de macro capitanias para micro comunidades), diferente de outros países, cujo processo se realizou de baixo para cima (vilas, condados, principados, reinos), de onde alguns sugerem importar o modelo policial.

Residualmente, reconheça-se, há procedimentos administrativos anacrônicos, assim como há comportamentos operacionais originais.

No primeiro caso, cita-se a não aceitação, em algumas localidades, do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) lavrado pelas PMs. Ainda!...

No segundo, o fato de a polícia ostensiva ser a Força de Polícia, atuando rotineiramente em casos de normalidade, alteração, perturbação e grave perturbação da ordem social, permite rápida passagem à fase de Força Auxiliar, em casos eventuais de grave perturbação da Ordem (GLO, Estado de Defesa, Estado de Sítio, Intervenções), continuando a realizar operações de polícia ostensiva.

Aproveitando os atuais ventos do Ciclo Completo de Polícia, seria extremamente salutar que ele fosse entendido e aprestado como “sistematização das atribuições que cada Polícia realiza, de per si”, vale dizer, ele é o próprio Sistema Policial.

Para isso, é necessário internalizar que há 06 (seis) grandes ramos de Polícia: a Normativa, a Ostensiva Estadual, a Judicial (Federal e Estadual), a Técnico-Científica Estadual, a de Socorrimento Público (corpo de bombeiros militar) e, agora, a Penal, recentemente reconhecida. Ressente-se, não apenas por simetria, mas por coerência com a efetividade, a falta da Polícia Ostensiva Federal (hoje, um arremedo, como um programa de cooperação de Segurança Pública, com a denominação de Força Nacional) e da Polícia Técnico-Científica Federal. Minimamente, as atribuições respectivas daqueles ramos são: baixar normas, resoluções, portarias, inibir vontades, obstaculizar oportunidades, fiscalizar, advertir, realizar apreensões, detenções e prisões, investigar, lavrar autos, instaurar inquérito, periciar, exumar, suster, socorrer, interditar, remover, custodiar, ressocializar, complementar esforços estaduais.

Aceitas nossas ponderações, fica evidente que é impossível cometer, a uma única instituição policial, todas essas tarefas. Portanto, o ciclo completo de polícia deve ser visto e compreendido, reitera-se, como um sistema.  

Certamente, havendo apoio recíproco, respeito mútuo, pronta colaboração entre as instituições policiais, o sistema policial, que é o ciclo completo de polícia, operaria com efetividade.

A sociedade, certamente mais protegida, agradece!…

(*) Coronel Veterano da PMMG

Foi Comandante da Região Metropolitana de BH