21ª edição do festival começa na sexta e tem 'Chamado Realista' como tema central
O “Chamado Realista”, que será o tema central da 21ª Mostra de Tiradentes, não surgiu exatamente a partir dos filmes selecionados para este ano. Na verdade, ele é uma constatação dos curadores sobre as produções que marcaram o festival nas últimas edições, desde a vitória de “A Cidade É uma Só?”, em 2012. Cada vez mais, elas abdicam de uma criação dramatúrgica tradicional, com um roteiro puramente ficcional, para uma abertura “ao que é imediato” – seja na elaboração do filme a partir do cotidiano real do próprio sujeito retratado, seja na incorporação do contexto político, histórico e social na história.
“Resolvemos pensar sobre essa penumbra de realidade que paira, de diferentes formas, sobre os filmes da nova geração”, explica o curador Cléber Eduardo. E são essas “diferentes formas” que a Mostra – que começa na sexta com a homenagem ao ator Babu Santana e a exibição de “Café com Canela” – pretende discutir em seus 102 filmes distribuídos em 51 sessões até o dia 28.
Segundo o curador, elas são o elemento central dessa nova produção e do tema proposto: não se trata de filmes que reproduzem aquele realismo clássico do cinema italiano dos anos 50, mas que dialogam com o universo a seu redor das mais diversas maneiras. “Há produções, como ‘Arábia’, que vão atrás de um indivíduo que tem sua singularidade, mas são abertas a serem entendidas como parte de um contexto social trabalhista atual. E outros como ‘Era uma Vez Brasília’, um longa de gênero que abre sua viagem espacial para ouvir o áudio da votação do impeachment”, descreve.
Esse fantasma do contexto político brasileiro atual é um dos principais interlocutores desse chamado realista. Mas Cléber ressalta que o desencanto e um certo derrotismo presente no país hoje não se manifestam de maneira única nos filmes. Ele admite que alguns deles são afetados por uma certa melancolia e resignação. Já outros – como o paulista “Ara Pyau”, que traz à mostra Aurora a luta guarani por terras – são mais propositivos de uma reação. “E tem ainda aqueles em que se percebe a resposta a esse contexto mais no estado de espírito do filme do que nele diretamente, como ‘Madrigal para um Poeta Vivo’, que faz um elogio a um personagem que é emblema da liberdade e da insubmissão a qualquer controle e poder”, completa.
O diálogo proposto pela programação, porém, não se dá exclusivamente com o cenário político. O curador afirma que ele atira para todos os lados em voga no mundo contemporâneo – desde questões de gênero e classe até relações assimétricas de poder e sexualidade. Essa invasão de um terreno puramente cinematográfico – das mostras – por controvérsias sociais externas já causou bastante polêmica no último Festival de Brasília e incomodou alguns críticos e realizadores, que reclamam que a questão audiovisual estaria sendo cooptada ou colocada em segundo plano. Cléber, no entanto, discorda disso e acredita que, “nos momentos mais atritados da história do cinema, o que sempre saiu ganhando foi o debate estético”.
“A arte nunca esteve tão insuflada de discussão estética como nos últimos meses porque, no que está sendo condenado e defendido, é possível perceber que princípios estéticos nunca foram neutros ou isolados, eles são morais, legais e estão na tensão entre o interior do filme e as pressões externas”, dispara. Ele acrescenta que todas essas questões – de gênero, raça, classe, orientação sexual – “são somente ‘tags’. Cada produção tem sua particularidade, e o que a coloca em exposição é o enquadramento, a forma como ela lida com seu universo, seu personagem, seu tema”.
E, por mais que essas estratégias de cruzamento entre realidade e ficção estejam presentes em quase toda a programação – como em “Navios de Terra”, longa da mineira Simone Cortezão na mostra Olhos Livres, que justapõe a presença da lama de Mariana a um ator como Rômulo Braga –, elas encontram suas provocações mais fortes na mostra Aurora. Como Cléber destaca, a competitiva de Tiradentes nunca foi pensada como um espaço de produção de consenso, mas sim de dissensão sobre o que é o filme autoral brasileiro hoje e sua relação com crítica e público. E neste ano não será diferente. “Há longas que te convidam a ficar do lado dele, outros que te fazem desconfiar do seu lugar, e alguns ainda que te convidam a não ficar do seu lado. O atrito sempre esteve programado para a Aurora, e a temperatura neste ano varia muito”, avisa.
Mas, mesmo em diálogo com todo esse contexto e com a volatilidade polarizada do mundo atual, o curador admite que é impossível prever a grande polêmica, o que vai se destacar ou se algum filme repetirá o sucesso de um “Baronesa” ou “A Vizinhança do Tigre”. “É como um jogo de futebol. A gente escala, mas não tem como garantir que vai dar certo. É o maior desafio de uma curadoria”, reconhece.