RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - O cabo Arthur tentava avançar, de abrigo em abrigo, até chegar aos traficantes que se encontravam mais à frente, em uma favela da zona norte do Rio de Janeiro. Quando fez a posição de base e se preparou para progredir, entretanto, ouviu um barulho estranho.


Era um tiro de fuzil que estourava o rosto de seu colega, metros atrás. O choque o fez desacreditar da cena. Abortou a missão e chamou o apoio aéreo para conseguir voltar para casa, já que o blindado não conseguiria ultrapassar as barricadas.

Três dias depois, seguindo seu regime de 24 por 72 horas, ele estava de volta ao trabalho nas ruas da mesma comunidade, sem ter falado com qualquer superior ou psicólogo sobre o que havia acontecido. "A cabeça fica como?"


Arthur está entre os muitos policiais que sofrem, matam e morrem em silêncio no violento território fluminense, sem o treinamento, a supervisão, a estrutura e o amparo psicológico adequados.

Essas são algumas das carências dentro da própria Polícia Militar do Rio que ajudam a explicar por que os índices de morte pelo Estado são tão altos, de acordo com praças, oficiais e pesquisadores ouvidos pela reportagem. Juntam-se a elas a cultura da guerra e do improviso, além do consentimento tácito de autoridades e da sociedade.

Esse conjunto de motivos demonstra que a letalidade estatal não é apenas um problema individual de um ou outro agente, mas passa pela estrutura da própria corporação, que se alterada pode reduzir os índices.

É unanimidade que o policial do Rio trabalha em um contexto anormal se comparado a outras regiões brasileiras, com bairros inteiros sob domínio de diferentes grupos criminosos, onde as forças de segurança não entram sem um alto risco de serem atacadas.

Histórias como as do início deste texto são repetidas frequentemente durante a conversa de pouco mais de uma hora com Arthur, que tem 31 anos e trabalha há nove em UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) - seu nome foi trocado, assim como o de todos os outros servidores citados, para resguardar sua segurança.

Em 2015, um questionário respondido por mais de 5.000 policiais militares no estado mostrou que mais da metade foi alvo de tiros no ano anterior; que um terço já viu um companheiro ser baleado; que um quinto já presenciou a morte de um colega.


Esse mesmo estudo, realizado pelos pesquisadores Beatriz Magaloni e Ignacio Cano, concluiu que os mais estressados e expostos à violência quando criança ou adulto dizem usar mais a força. Ter visto um companheiro ser morto em confronto é um dos fatores mais relevantes para tomar a decisão de atirar.

"Olha a aceleração desse cara. Troca tiro, mata três, vem pro quartel, troca de roupa. No outro dia mata mais dois, prende cinco, socorre alguém e vai com a mulher ao shopping. Até o dia em que o reloginho para. Aí vai dar tiro mal dado, acertar criança, ser morto", enumera o coronel Mauro, comandante de um batalhão da Baixada Fluminense.

Apesar de a Polícia Militar argumentar que implantou um Protocolo de Avaliação Psicológica Pós-Confronto em 2018, que prevê o acompanhamento da saúde mental de todos os agentes envolvidos em ocorrência com morte, a resposta institucional ainda é tímida.

"Não temos nenhum apoio psicológico. Zero. Até para procurar o atendimento é complicado, tudo é longe, a maioria dos batalhões não tem. Amigos que perderam companheiros de farda não tiveram amparo e, no dia seguinte, estavam na rua fazendo a mesma coisa", conta o soldado Lucas, 30, que atua em Angra dos Reis.

São 92 psicólogos e 17 assistentes sociais disponíveis para 44.484 homens e mulheres ativos, sendo que a grande maioria está concentrada na região metropolitana. Não há concursos para essas especialidades há dez anos.

"O policial não é só um RG", lembra a policial Lúcia, uma das poucas assistentes sociais da corporação. "Se ele não é tratado com humanidade, como vai reproduzir essa perspectiva humanizada para fora?"

Mauro, o coronel da Baixada, sente falta de uma "desaceleração" do policial. Para ele, é preciso que todos os agentes façam o que ele fez após sua primeira ocorrência com óbito. Se olhou no espelho e se perguntou: "Fiz o certo? Fiz". Neste ano, planejou implementar um projeto que estimulasse uma pausa para reflexão em seu batalhão após casos letais. Sem incentivo, desanimou.

O que ele vê como "desaceleração" a socióloga Paula Poncioni vê como formação continuada. Ela, que é professora de políticas públicas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), estuda formação policial há 30 anos, defende que o agente deve voltar periodicamente aos bancos escolares.