Do Brasil de Fato - A rotina de pressão e condições adversas dentro dos muros dos batalhões da Polícia Militar de São Paulo (PM-SP), corporação que completou 188 anos neste mês, têm reflexos diretos na relação dos policiais com a população do estado.
De acordo com o planejamento estratégico da própria PM, publicado no plano de comando 2018-2019 e divulgado no site da instituição, fazem parte das diretrizes o aperfeiçoamento das competências dos policiais militares – diretriz número 1 – e a valorização do policial militar – diretriz número 4.
No entanto, a realidade dos soldados está muito distante dos planos elaborados nos gabinetes de comando da instituição, conforme o relato de Vanessa Gomes, uma das organizadoras do movimento "Luta dos Familiares de Policiais Militares do Estado de São Paulo".
"Eles ficam refém do regulamento disciplinar, que impede qualquer tipo de manifestação. Isso na melhor das hipóteses, porque podem ser punidos de forma velada e até mesmo perseguidos", diz Gomes.
A lei estadual número 893, de março de 2001, estabelece os parâmetros e o nível de gravidade das violações de disciplina dentro da PM. O artigo 42 aponta como falta grave os casos em que o policial "desconsiderar ou desrespeitar, em público ou pela imprensa, os atos ou decisões das autoridades civis ou dos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário ou de qualquer de seus representantes".
Na prática, o artigo conhecido como "lei da mordaça", impede que os policiais se manifestem sobre reajustes salariais, equipamentos precários ou sobre a qualidade e relevância do treinamento. O silêncio forçado é considerado uma das causas de adoecimento, que podem amplificar um quadro de desequilíbrio na saúde mental e levar ao suicídio.
"'Os códigos [da PM] têm por base os códigos militares do Exército, que são arcaicos e não se adequam à realidade da profissão de policial e bombeiro militar. A nossa luta é para mudar esses códigos e trazer lógicas de ética e disciplina que priorizem as relações humanas, acabando com prisões administrativas e regras que tolhem o policial de se expressar", explica Elisandro Lotin, presidente da Associação Nacional de Praças (ANASPRA). "Vivemos em um Estado democrático de direito, e não pode existir um regulamento que proíba e puna um trabalhador que quer expressar a sua opinião, inclusive sobre segurança pública. É absurdo imaginar um médico que não possa falar de saúde ou um professor que não possa falar de educação", compara.
Diante de um regulamento punitivista, são as mulheres dos policiais que organizam as manifestações por melhores remunerações. Os protestos com maior adesão aconteceram no início de 2017.
"É um dos piores salários do país – mesmo São Paulo tendo a maior quantidade de policiais no Brasil e sendo o estado mais rico. Por esse motivo, muitos fazem o chamado 'bico', que é um trabalho extra", acrescenta Vanessa Gomes.
O salário cheio do policial iniciante, de 2ª classe, é de R$ 2.400,00 para uma jornada de 12 por 36, plantões de 12 horas diretas de trabalho por 36 horas de folga – o que inclui um adicional de insalubridade, de cerca de R$ 690,00.
"Tendo em vista o que é proposto como solicitação profissional, não é um salário adequado, porque exige da pessoa que ela tenha exclusividade. No esquema 12 por 36, você precisa descansar, para que naquelas 12 horas você esteja 100%. O que não ocorre porque a pessoa não descansa e tem que trabalhar para completar a renda", afirma um policial militar, há cinco anos na corporação, que pediu para não ser identificado por conta do regulamento disciplinar.
Fora da PM, os salários são maiores: um segurança de shopping center, com jornada de 40 horas semanais, recebe em torno de R$ 2.700,00, e um gerente de segurança privada, R$ 13.000,00.
Portas de entrada
Na Polícia Militar de São Paulo, entre as funções de soldado de 2ª classe (os chamados praças) e o 1º sargento, existem cinco cargos com remunerações mensais que variam entre R$ 2.400,00 e R$ 3.890,00, respectivamente. Nessa etapa da vida profissional, o policial "sobe na carreira" por meio de cursos e concursos internos. O treinamento para soldado da PM, na academia, tem duração de um ano e formas praças, que têm um limite de "crescimento" na corporação.
A outra porta de entrada é pelo curso de formação de oficiais, por meio de vestibular, na Academia de Barro Branco. Os aprovados fazem um curso de três anos e, ao concluírem, alcançam a patente de 2º tenente, com remuneração mensal de aproximadamente R$ 6.000,00. Na carreira de oficial, o militar pode chegar a 1º tenente, com salário de cerca de R$ 7.800,00.
"Aí, tem o curso de aperfeiçoamento de oficiais, capitão e major, que seria uma espécie de 'mestrado'. E tem o 'doutorado', para fazer de tenente-coronel a coronel. O oficial só vai a 'coronel full', com três estrelas douradas, com indicação do governador. É política, não é meritocracia", diz o policial militar.
Equipamentos
Além das disputas de relações de forças que envolvem o corporativismo e a diferenciação entre praças e oficiais, os policiais militares convivem com precariedade e falta de material adequado para o trabalho.
"Por medo de serem transferidos, muitos policiais acabam não reclamando das condições de trabalho e aceitando as imposições", explica Gomes.
A arma que o policial usa no patrulhamento das ruas é um dos motivos de preocupação. "A reclamação unânime é em relação à pistola Taurus. Qualquer pessoa com acesso à internet pode ver na página 'vítimas da Taurus' e conferir casos de pane da arma da polícia que resulta em fatalidade e demissão", lamenta.
De acordo com reportagem do El País, advogados que trabalham com a Associação de Policiais Militares Portadores de Deficiência do Estado de São Paulo afirmam que nos últimos anos ocorreram ao menos 500 casos de disparos de pistolas da marca Taurus sem o acionamento do gatilho.
A empresa Taurus, que tem contrato de fornecimento para a PM, informou em nota ao Brasil de Fato que está sob nova gestão desde 2015 e fez significativos investimentos para modernização e ampliação de sua linha de produção.
Ainda segundo a fabricante de armamentos, as perícias realizadas de acordo com as normas técnicas têm comprovado não haver falha ou defeito nos mecanismos de funcionamento e segurança das armas que compunham seu antigo portfólio.
Um levantamento feito pela empresa aponta que, neste ano, mais de 10 mil policiais do Estado de São Paulo adquiriram armas da Taurus para uso pessoal, com recursos próprios. Segundo a Taurus, isso demonstra a confiança que os policiais paulistas têm na companhia.
Uniformes e punições
A hierarquia e o rigor do código disciplinar da corporação são fontes de punições, estresse e adoecimento dos trabalhadores na área de segurança pública.
Os policiais estão sujeitos a repreensão, advertência e a permanência disciplinar – confinamento no quartel por determinado período.
"A punição injusta vai além da farda amassada e da bota não engraxada. Muitas vezes, o Estado não fornece um material adequado e eles são punidos pelo desgaste natural do dia a dia de uso. Às vezes, eles compram do próprio bolso para ficarem livres da punição", acrescenta Vanessa Gomes.
Segundo ela, as condições precárias de trabalho, a pressão das punições e a ameaça de transferência para postos de trabalho mais distantes de casa afetam até a saúde dos soldados.
"Isso favorece o adoecimento mental dos PM. Muitos reclamam de ansiedade, depressão, insônia e irritação. É como se o Estado colocasse uma âncora, impedindo eles de trabalharem na rua. É impossível. Os policiais conseguem porque têm raça e sangue na veia. Mas isso [a precarização] gera um desgaste físico grande, levando à depressão", lamenta.
Em 2017, foram 27 casos de suicídios de policiais militares no Estado de São Paulo. No mesmo período, 6 policiais foram mortos em confrontos.
Para manter a rotina de atividades, em diversos batalhões, de acordo com Vanessa, os polícias pedem colaboração financeira de moradores e comerciantes. Essa prática é chamada, entre os oficiais, de "bater caneco", em alusão ao modo como os presos utilizam copos de metal ou outros objetos para bater na grade das celas e chamar a atenção dos carcereiros.
"Isso virou moda entre os oficiais. Quando os policiais batem de porta em porta para pedir ajuda, para consertar uma viatura quando dá problema ou dar uma assistência, eles dizem que o policial foi 'bater lata', ou seja, comparam o policial com um presidiário. É humilhante", ressalta Gomes.
A precarização também se verifica nas falhas de gestão dos oficiais, por exemplo, em relação ao desvio de armas e ao cumprimento dos contratos de prestação de serviços. De acordo com reportagem da Ponte Jornalismo, mais de 600 armas da corporação foram roubadas ou extraviadas em oito anos.
Supostos esquemas de corrupção e improbidade administrativa também impactam a vida dos PM. Em uma das histórias mais inusitadas, que aconteceu em um batalhão da região central da capital, um soldado descobriu que a empresa contratada para fornecer rolos de 300 metros de papel higiênico entregava rolos de 110, causando constrangimento.
Direitos Humanos
Outra reclamação frequente é em relação ao conteúdo sobre Direitos Humanos durante o curso de formação e sua aplicação na prática.
Os soldados recebem treinamento de um ano, com 952 horas-aula, das quais 72 são sobre Direitos Humanos – o equivalente a 7,8% das horas-aula. Durante o curso de oficiais, que é de três anos, com 6.495 horas-aula ao todo, são também 72 horas-aula sobre Direitos Humanos – pouco mais de 1% do tempo.
"Não há o menor respeito, trato, zelo, apreço aos Direitos Humanos dos oficiais para com os praças no dia a dia. Isso é raro. É tão raro quanto você achar uma lâmpada e alguém aparecer para realizar três desejos", ironiza o soldado que pediu para não ser identificado. "Por exemplo, em quatro anos, apareceu uma pessoa para falar de Direitos Humanos: era um capitão que era especialista na área".