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Era novembro de 1997, o cenário? A Escola Estadual Elísio Carvalho de Brito localizada no bairro General Carneiro na histórica cidade de Sabará. Eu tinha exatamente 13 anos e cursava a sétima série do até então primeiro grau. Nesse dia específico o Lindomar, nosso professor de história, começou a aula com a seguinte pergunta: Quem libertou os escravos? Vários colegas levantaram a mão para responder. Eu imediatamente pensei: ah de novo não, essa história de dor, violência, humilhação de novo não. Afinal, desde os primeiros anos escolares eu já tinha aprendido que foi a princesa Isabel que assinou a lei Áurea e que se não fosse ela nós, negros e negras, ainda seríamos escravizados.

Enquanto isso, a aula continuava e um colega respondeu a pergunta com toda propriedade: "Quem libertou os escravos foi a princesa Isabel". Mas para total surpresa da turma, o professor Lindomar respondeu com a seguinte pergunta: "Quem foi que contou essa mentira pra vocês?" O tema da aula nesse dia foi as histórias dos quilombos e dos heróis negros da história brasileira dentre eles Zumbi dos Palmares. Isso muitos anos antes da lei 10.639 ser promulgada, a legislação que obriga o ensino da história dos negros e da África nas escolas.

Aquela aula marcou a minha vida, a minha autoestima e ainda hoje faz parte das minhas melhores memórias na trajetória escolar. Lindomar me mostrou ainda menina que somos protagonista das nossas histórias, que não assistimos o horror da escravidão passivamente esperando um dia uma heroína vir nos salvar. Foi naquele momento que me dei conta que a história é contada de forma parcial porque ele contou em uma escola na periferia a história que a história não conta. Eu acredito que aquele dia foi o primeiro de muitos que senti orgulho de ser uma pessoa preta, com ascendentes pretos. No final da aula ele disse assim: "a princesa Isabel só assinou a lei pra ficar bonita na foto porque a abolição já havia sido conquistada".

Compartilho aqui essa memória de menina porque hoje começa o mês da Consciência Negra, só que este ano tem um diferencial importantíssimo. O dia 20 de novembro é feriado nacional pela primeira vez na história do Brasil. No último dia 21 de dezembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 14.759/2023, que declara o dia 20 de novembro como feriado nacional para celebrar o Dia da Consciência Negra. A legislação aprovada na Câmara dos Deputados teve origem em um projeto no Senado Federal de 2017, proposto pelo senador Randolfe Rodrigues (PT-AP). A proposta só chegou na Câmara em 2021 e teve como relatora a deputada Reginete Bispo (PT-RS).

O feriado remete ao dia da morte de Zumbi, o líder do Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, hoje Estado de Alagoas. Palmares foi o maior quilombo brasileiro, chegando a ter simultaneamente 20 mil habitantes, maior do que a maioria das cidades brasileiras daquela época. Um dos principais símbolos de resistência e revolta contra a crueldade da escravidão no Brasil foram as comunidades quilombolas. Como diz a canção do talentosíssimo Jorge Ben Jor: “Eu quero ver quando Zumbi chegar, o que vai acontecer. Zumbi é o senhor das guerras, é o senhor das demandas, quando zumbi chega, é zumbi é quem manda."

Por ser uma liderança que ameaçava o poder dos escravocratas, Zumbi foi capturado, preso e assassinado pelas tropas do bandeirante em 20 de novembro de 1695. Como se não bastasse o assassinato, Zumbi teve sua cabeça cortada e exposta em praça pública para intimidar outros negros que ousasse querer ser livre se aquilombando em outras comunidades.

Ainda hoje há diversas pessoas que do alto da ignorância histórica talvez por não ter tido um Lindomar como professor ou motivadas pelo racismo questionam as celebrações do dia da consciência negra com afirmações do tipo: "deveria ser dia da consciência humana". Tem também quem sem ter estudado o mínimo da história dos negros brasileiros com o intuito de deslegitimar as lutas contra o processo cruel da escravidão rotulam e argumentam que Zumbi dos Palmares era escravocrata. Pois é, naquela época humano era considerado somente quem era descendente de europeu. Descendentes de africanos eram tratados somente uma mercadoria como outra qualquer. Partindo dessa realidade, se nós pessoas negras dependêssemos exclusivamente da tal "consciência humana" seríamos legalmente escravizados até os dias atuais. Esses comentários fazem com que lideranças de movimento sociais negros brinquem que novembro é o mês da "paciência negra" por terem sempre que estarem explicando o óbvio todos os anos.

 Essa data é o gancho que motiva várias instituições educacionais, empresas, imprensa, dentre outros trabalharem a pauta antirracista, a diversidade, as relações raciais e o protagonismo negro. A conquista desse feriado é um marco fundamental para a reflexão desse crime histórico da escravidão e que permanece vivo com as sequelas chamadas racismos. Há muitos anos os movimentos negros celebram a memória de Zumbi, um exemplo foi a marcha realizada em 1995 em Brasília fazendo menção aos 300 anos de morte desse grande herói, outros exemplos são as dezenas de estátuas dele nas cidades Brasileiras dentre elas São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro, Niterói e Recife. Em Belo Horizonte mesmo há 15 anos anualmente é realizado o prêmio Zumbi de Cultura que homenageia personalidades negras que contribuem para a coletividade negra. O feriado faz com quê a reflexão sobre essa data extrapole o meio restrito da militância, cultura e intelectualidade negra e seja acessível a população brasileira como um todo. Afinal de contas um herói tão importante e significativo merece essa visibilidade e respeito.

Valeu Zumbi!