RELATÓRIO ONU


A pandemia provocou uma intensificação da fome em todo o mundo. Um relatório divulgado ontem pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO/ONU) indica que 811 milhões de pessoas estavam subalimentadas no mundo em 2020. Entre elas, estão milhões de brasileiros impactados pelo índice recorde de 14,7% de desemprego e pela inflação acachapante de alimentos, combustíveis e energia elétrica.

O levantamento da FAO estima que cerca de 9,9% entre todas as pessoas do mundo tenham sofrido de desnutrição no ano passado, ante 8,4% em 2019. Uma proporção próxima à observada no Brasil. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, conduzido pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), indicou que 19 milhões de pessoas passam fome no país – ou seja, 9% dos 211 milhões de habitantes.

De acordo com Jorge Alexandre Neves, professor do Departamento de Sociologia da UFMG, a pandemia vem piorar um processo de regressão que já havia se iniciado em 2017. “A fome, a pobreza e a desigualdade vinham crescendo nos últimos anos, fazendo com que o Brasil passe pelo processo mais rápido de aumento da desigualdade de sua história”, afirma.

Ele relata que o início da pandemia, em março do ano passado, significou uma degradação social muito rápida e intensa no país, mas a situação foi revertida nos cinco meses em que o auxílio emergencial de R$ 600 chegou às famílias brasileiras. “Mas foi um processo efêmero. No início do ano, a situação não parecia tão ruim, porque algumas famílias fizeram uma poupança com o que receberam do auxílio, mas agora a situação está muito ruim, especialmente porque o novo auxílio é insuficiente”, diz Neves.

O professor explica que, além do desemprego e da falta de políticas de transferência de renda,  a inflação de alimentos é responsável pela insegurança alimentar de pessoas empregadas e seus familiares. Quanto menor é a renda de uma família, maior é a proporção de gastos com comida e itens básicos – como energia elétrica e gás de cozinha, que também estão em alta.

“Por causa da explosão nos preços dos alimentos, houve uma queda de 10% no poder de compra do trabalhador no primeiro trimestre de 2021, e 7,5% no segundo trimestre. Tem gente que conseguia ter uma vida razoável no passado, com carteira assinada, mas agora está passando fome”, explica.

Além do preço alto do dólar e da demanda internacional por produtos brasileiros, Neves aponta a extinção dos estoques regulatórios de alimentos como um dos principais motivos para a inflação de produtos básicos nas refeições dos brasileiros, como arroz, feijão e milho. Anteriormente, como em muitos países no mundo, o governo fazia estoques de grãos para controlar os preços nas gôndolas.

30% sofre insegurança alimentar

O relatório da FAO também alerta para o grande número de pessoas em insegurança alimentar no mundo, ou seja, quem precisou deixar de realizar algumas refeições na semana porque não havia comida em casa. De acordo com o levantamento, 30% da população mundial tinha algum grau de insegurança alimentar em 2020 – 2,3 bilhões de pessoas, 320 milhões a mais do que no ano anterior.

Já havia uma tendência de aumento do problema no mundo, mas a pandemia acelerou o processo. A FAO indica que o número de pessoas em situação de insegurança alimentar saltou em um ano tanto quanto nos cinco anteriores combinados. A situação é crítica em países da Ásia, Américas e África. 

O relatório diz ainda que a meta mundial de erradicar a fome até 2030 provavelmente não será alcançada. Estima-se que nessa data o mundo tenha 660 milhões de famintos, sendo cerca de 30 milhões com alguma relação aos efeitos duradouros da pandemia.

Entre as ações que podem ser feitas pelos governos, a principal delas é investir em políticas de transferência de renda, de acordo com Jorge Alexandre Neves. Isso faz o dinheiro circular na sociedade e ter retorno em forma de impostos, algo que foi bem-sucedido no Brasil em 2020. “Graças ao auxílio emergencial, nós não tivemos uma retração tão grande no PIB quanto outros países latino-americanos. Nosso PIB caiu 4,1%, enquanto no México, que não teve política de transferência de renda na pandemia, teve um recuo de 8,5%”.