Na mente do agressor

ADRIANA GUARDA
adrianaguarda@jc.com.br


Paulo matou Josefa com golpes de enxada. Cícero não teve ereção no momento do estupro e violentou Ozenir com as mãos: tortura e dor que levaram à morte. Marcelo tirou a vida de Maria Jaqueline e pendurou o corpo numa árvore. Alefy decapitou Maria Aparecida e deixou a cabeça sobre o muro da casa dela. Albertino assassinou e esquartejou Ana Maria para se livrar do corpo.

O que se passa na cabeça de homens agressores? Por que são capazes de atos tão cruéis contra mulheres que, um dia, fizeram parte de suas vidas? Criada há 12 anos, a Lei Maria da Penha cumpriu seu papel de punir a violência contra a mulher, mas ainda precisa avançar na atenção ao homem. O artigo 35 determina a criação e promoção de centros de educação e de reabilitação para agressores, acreditando que esses homens podem refletir, mudar e não reincidir.

Em Pernambuco foram criados dez Grupos Reflexivos voltados para homens que cometeram agressão, nas Varas da Mulher do Recife, Olinda, Jaboatão dos Guararapes, Igarassu, Camaragibe, Caruaru e Petrolina. “Acompanhando os processos percebemos que apenas punir não era suficiente. Por conta da banalização da violência contra a mulher, observamos que muitos homens com sentença de condenação não entendiam o crime praticado. Ficavam revoltados, transferiam a responsabilidade para a vítima. Nos preocupamos com isso porque poderia gerar uma violência contra a mesma companheira ou em uma nova relação”, diz a juíza da Vara da Mulher de Igarassu, Rúbia Celeste. A vara foi pioneira na criação dos Grupos Reflexivos por meio do programa “Transformando Nós”.

Criado em 2014, o projeto oferece dois grupos para homens e um para mulheres. Agressores que ainda não foram julgados, mas que precisam cumprir medida protetiva participam de cinco encontros dos Grupos Reflexivos, uma vez por semana. Os que já têm sentença, mas receberam o benefício do Sursis (suspensão condicional da pena) participam de uma reunião mensal por um ano. “No caso das mulheres, os grupos são de acolhimento. Procuramos empoderá-las para que conheçam seus direitos e consigam romper o ciclo de violência”, explica Rubia. Os homens que participam da iniciativa, em geral, ameaçaram e cometeram lesões corporais leves contra companheiras e ex-companheiras.

"O QUE EU FIZ DE ERRADO?"

Na última quarta-feira, teve início uma nova turma dos Grupos Reflexivos, no Fórum de Igarassu. “O primeiro encontro costuma ser mais tenso, mas ao longo das semanas eles vão mudando”, conta a pedagoga do Transformando Nós, Juliana Simões. Os homens chegam desconfiados: “O que eu vim fazer aqui?”. “Isso tudo é por culpa dela”. “O que eu fiz de errado?” “Se ela tivesse se comportado como uma mulher nada disso teria acontecido”. “Por que não existe uma Lei Maria da Penha para proteger os homens também?” A reportagem do JC esteve no local para tentar conversar sobre a experiência do programa, mas eles não quiseram se pronunciar.

“A proposta do Transformando Nós é construir um conhecimento junto com os homens, a partir das vivências e experiências deles. Trazemos os temas e esperamos que eles reflitam e depois possam mudar de atitude. Desde que iniciamos o programa já foram atendidos 448 homens e 123 mulheres. E o mais interessante é que depois de participar dos encontros não aparecem mais casos de reincidência”, comemora a juíza.

REVENDO CONCEITOS

Os temas dos encontros são conceitos de masculinidade e feminilidade; círculo vicioso da violência doméstica, consciência emocional, influência das redes sociais nos relacionamentos; álcool e drogas; história da Lei Maria da Penha e outros. “Na temática sobre masculinidade e feminilidade, refletimos com eles o que é ser homem e o que é ser mulher na sociedade atual. Questionamos se hoje esse conceito é diferente do tempo dos avós e dos pais deles. Também falamos da história do patriarcado para explicar de onde vem a ideia de que as mulheres devem ser submissas ao homem. Outra questão importante é o relacionamento de pais e filhos para evitar que eles reproduzam o comportamento violento do pai ou a atitude oprimida da mãe”, observa Juliana.

Reconhecidos como uma experiência que contribui para transformar o comportamento de homens agressores, os Grupos Reflexivos deverão se aperfeiçoar no Estado. A Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça, comandada pela desembargadora Daisy Andrade, quer expandir e criar uma unidade para o programa, que hoje tem características próprias em cada Vara da Mulher nos municípios. “Também é importante não desistir dos homens que praticaram crimes mais graves e cumprem penas maiores. Um dia eles vão sair da prisão e precisam ser reabilitados”, defende Rúbia.

Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Adriano Beiras defende que os Grupos Reflexivos deveriam ter uma política pública nacional específica. “Muitos desses grupos surgem pela boa vontade de um gestor público municipal, de um Tribunal de Justiça ou de uma universidade, mas se tornam frágeis e acabam”, diz. Ele também destaca que por algum tempo trazer o foco para o agressor era tratado como fazer concorrência às políticas públicas para as mulheres. “Na verdade não é concorrente, ela é para a mulher. Quando trabalhamos com os agressores estamos tratando com a fonte direta do problema. Não estamos passando a mão na cabeça dos homens, estamos pensando em uma reflexão ampla”, afirma.

Uma das maiores autoridades nas discussões sobre igualdade de gênero no Brasil, a professora Lourdes Bandeira, do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), passou três anos estudando 1,7 mil casos de mortes de mulheres no País para sua tese de pós-doutorado sobre feminicídio. O trabalho aponta três principais motivações para a violência: as mulheres querem se separar e os homens não aceitam; os homens suspeitam que estão sendo traídos pelas mulheres ou os homens têm dificuldade em aceitar que a mulher possa seguir a vida de solteira.

A socióloga também destaca no estudo a crueldade dos crimes, que costumam trazer brutalidade excessiva, desfiguração e destruição do corpo feminino, como fizeram Paulo, Cícero, Alefy e Albertino com as mulheres que assassinaram e calaram.

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CIARA CARVALHO
ciaracalves@gmail.com

- “Sidraque saiu para comprar gasolina, disse que ia tocar fogo em mim.”

Na conversa na casa da irmã, o apelo desesperado de Carmem não lhe livrou da morte. Ela tinha acabado de ouvir do companheiro a sentença. Buscou ajuda de parentes. Mas ninguém acreditou que o marido seria capaz de tamanha brutalidade. Decidiu voltar para casa. Minutos depois a promessa virou realidade. Moradora do Recife, Carmem Rejane de Almeida, 48 anos, teve 40% do corpo queimado. Ainda lutou por 17 dias no hospital. Mas não resistiu e veio a óbito. Uma tragédia que, com enredos, nomes e lugares distintos, se repetiu de forma assustadora em Pernambuco no mês passado. Outubro bateu recorde de feminicídios. Foram dez casos. Até então, o mês com maior número de crimes desse tipo havia sido janeiro, quando foram contabilizadas nove vítimas. No somatório dos dez primeiros meses do ano, a conta é alarmante. Sessenta e sete mulheres foram sentenciadas à morte pela sua condição de gênero.

De tão violento para as mulheres, o mês passado teve um registro inédito no Estado: um duplo feminicídio. Mãe e filha executadas barbaramente com tiros na cabeça. A cena é chocante. Difícil de esquecer. Jaqueline Santos de Santana, 26, caída, e a mãe, Ednalva Santos de Santana, 48, ainda sentada no sofá. Jaqueline tinha dois tiros na cabeça. O corpo estava parcialmente sobre a cama. O rosto no chão, num claro sinal de que agonizou antes da morte. O filho de apenas quatro anos dormia ao seu lado no momento do crime e viu a mãe e a avó serem executadas. Foi a criança, inclusive, quem primeiro denunciou o suspeito do crime, o ex-companheiro de Jaqueline, um mototaxista que a matou por não aceitar o fim do relacionamento, terminado 15 dias antes das mortes. Era a madrugada do dia 31 de outubro. Jaqueline foi assassinada porque rejeitou o namorado, com quem teve um relacionamento de apenas seis meses. Uma relação, segundo familiares, de assédio e ameaças, apesar do pouco tempo.

Com apenas 13 anos, Estefany Eduarda Nere de Oliveira foi morta porque se recusou a fazer sexo. Foi traída por gente de seu convívio, sangue do próprio sangue. A adolescente foi estuprada e depois assassinada a pedradas e facadas. Desapareceu quando retornava de uma festa na periferia de Petrolina, no Sertão pernambucano. Segundo familiares e a Polícia Civil, foi morta pelos seus acompanhantes – o tio Flaviano Bernardino de Sena, conhecido como “Índio”, que está foragido; José Henrique Castro dos Santos, casado com uma das primas da adolescente e genro de Flaviano; além de Luiz Antônio Moura, conhecido como “Pretinho”, um conhecido da família. Os dois últimos foram presos no início deste mês.

Estefany Eduarda desapareceu no dia 12 de outubro deste ano. Três dias depois foi localizada. O corpo pequeno e jovem, já em avançado estado de decomposição, principalmente pela exposição ao sol, estava seminu. Os assassinos deixaram a adolescente apenas de camisa. A calcinha e a saia que usava foram arrancadas. Ao lado do corpo, uma pedra, que segundo a polícia foi a primeira arma a ser utilizada para matá-la. Com o golpe, Estefany apagou. Na sequência, vieram as facadas. Quatro no total.

Foi a golpes de faca que Damião Wilson Martins de Santana, 36, pôs fim a um histórico de agressões e violência doméstica vívido em 15 anos de relacionamento com Gleiciane Kassia da Silva, 31. Ela caminhou, no meio da madrugada, tentando pedir socorro. Do barraco onde morava, em meio aos viveiros de camarão da Ilha de Deus, na Imbiribeira, Zona Sul do Recife, até o local onde caiu, no meio da rua, quase sem vida, foram alguns quilômetros. O rastro de sangue ficou pelo caminho. Os vizinhos ouviram os gritos. Ouviam sempre. Damião era acostumado a bater em Gleiciane. As brigas, constantes. Ela chegou a registrar um boletim de ocorrência contra ele na polícia. Tentou também se separar algumas vezes. Após cada tentativa, a mesma história. Ele a cercava, a perseguia, ela terminava voltando. Entre idas, vindas, agressões e pedidos de perdão, tiveram três filhos. Um deles, o mais novo, presenciou o pai esfaquear a mãe.

Entre os casos com motivação previamente definida, o feminicídio já é a principal causa de assassinatos de mulheres em Pernambuco. O crime de gênero é responsável por um terço dos homicídios cujas vítimas são do sexo feminino. Os números contabilizados pelo projeto #UmaPorUma são o somatório dos indiciamentos feitos pela Polícia Civil (após a conclusão do inquérito) mais as denúncias oferecidas à Justiça pelo Ministério Público de Pernambuco.

No mês passado, o MPPE fez essa estatística aumentar. Ao oferecer denúncia contra o assassino de Ozenir Maria de Jezuá, 42 anos, estuprada e morta em um matagal pelo próprio genro, considerou o caso como um crime de gênero. Era a segunda vez que o acusado tentava estuprar a sogra. Na hora, não teve ereção. Furioso, bateu com uma pedra na cabeça da mulher. A violência não cessou. Tirou a calcinha da vítima e violentou Ozenir com as mãos na vagina e no ânus. O caso ocorreu no mês de setembro, em Moreilândia, no Sertão do Estado. A polícia civil concluiu o inquérito como estupro seguido de morte. O Ministério Público denunciou o crime pelo nome: feminicídio.

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