Candidatos oferecem dinheiro para quem contribui com campanha em comunidade pobre em Recife; Pernambuco é o estado que mais registra denúncias de crimes eleitorais e propagandas irregulares
Colar o adesivo na porta de casa é R$ 30. Se for bandeira, é mais de R$ 100. Quem promete votar e entrega o número do título de eleitor recebe R$ 40. Balançar bandeira durante visita do candidato na comunidade, R$ 40 ou R$ 50. Para vigiar das 8h às 17h30 as bandeiras na rua é mais ou menos R$ 500 pelo mês inteiro. Esses exemplos de compra de votos e de cabos eleitorais foram relatados à Pública por moradores da comunidade dos Coelhos, na região central de Recife. “[Os candidatos] Pegam o título, o povo fica com medo e vota mesmo. Eles dizem que vão olhar quantos votos tiveram na área”, contou uma jovem de 22 anos.
A capital pernambucana tem em média 18 denúncias por dia relacionadas a campanhas, sendo 15% de crimes eleitorais e 74% de propagandas irregulares. Pernambuco é um dos que mais registram essas reclamações no país, conforme estatísticas do Sistema Pardal do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-PE). O estado foi campeão de denúncias nas eleições municipais de 2016 e caminha para ser novamente neste ano, com 1.780 registros até o último dia 27, disputando com São Paulo, que tinha 1.943 (no país todo eram 13.970 denúncias). Só em Recife foram 747 denúncias (74% de propaganda eleitoral, 14% de crimes eleitorais, 4% de uso da máquina pública, 7% de outras irregularidades, 1% de compra de votos, 1% de doações). Não dá para saber se o eleitor pernambucano é o que mais fiscaliza e denuncia ou se os candidatos do estado são o que mais infringem as regras – podem ser as duas coisas.
Uma certeza entre os moradores é que, depois da eleição, os políticos somem, não dão mais as caras na comunidade – são como Papai Noel, que só aparece no Natal. “A gente tem uma cidadania no Brasil focada no voto. Os candidatos compram o voto do cidadão e acham que já pagaram. Não se sentem obrigados a voltar”, afirmou a cientista política Ana Maria de Barros, professora do mestrado em direitos humanos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Maria José da Silva, 46 anos, mora em uma casa de palafita na favela Roque Santeiro, no bairro dos Coelhos. “Entra prefeito, sai prefeito e eu continuo aqui morando nessa imundície. Quando cheguei aqui, meu filho tinha 6 meses, ele fez 28 anos e eu já tive mais dois meninos”, calculou. Seu barraco de tábua fica suspenso sobre o rio Capibaribe, em meio a grande quantidade de lixo que surge quando a maré seca. Há mais de duas décadas ela espera receber um imóvel do governo para sair da área de risco.
Propaganda forçada
“Muitos vêm aqui agora nesse período de eleição, gente que nunca vimos, chega abraçando, mas não volta depois”, reclamou Maria José. “Aqui só vai melhorar quando Jesus vier buscar o seu povo, fia”, diz.
A descrença dos moradores com os políticos manifesta-se na mesma proporção da quantidade de adesivos espalhados na comunidade. A reportagem percorreu o bairro dos Coelhos e grande parte das residências tinha propagandas de políticos coladas nas portas e paredes, mesmo nas mais simples, feitas de tábuas. Ao menos 15 candidatos de diferentes partidos distribuíram as propagandas, que estão até em máquinas de lavar e geladeiras. As bandeiras, proibidas de serem afixadas em bens particulares, também estavam lá. Uma delas era do deputado estadual Beto Accioly, que tenta a reeleição pelo PP. “Minha tia que está apoiando e vai receber uma ajuda. Eu conheci ele agora”, afirmou o homem que estava na residência. Procuramos Accioly por telefone, por e-mail e em sua página de Facebook, mas não obtivemos retorno.
O Tribunal Regional Eleitoral (TRE-PE), em Recife, havia apreendido, até semana passada, mais de 400 bandeiras colocadas em locais não permitidos e lavrado 60 autos de apreensão. O adesivo é liberado, desde que autorizado pelo proprietário e de forma gratuita. Mas nos Coelhos a maioria tinha recebido uma “ajudinha” do candidato ou o material havia sido colado sem permissão do dono do imóvel. “Eu viajei e quando voltei [os adesivos] já estavam aí”, disse uma senhora que mora na comunidade há mais de 50 anos e não se identificou. Ela fala que nunca viu nenhum político fazer nada de bom para eles e por isso vai anular o voto. “Só vou [às urnas] porque sou obrigada, não confio em ninguém”, esbravejou sentada em frente a sua casa cheia de imagens de santos, onde o povo se reúne para rezar.
Quando os candidatos vão fazer comício, eles chegam com seu material de campanha, pagam os seguradores de bandeiras e deixam a cena combinada. “Eles trazem comida, cachaça, soltam fogos, mas vão embora rápido”, comentou o morador Cássio Conrado, de 40 anos. A maior evidência de que os políticos eleitos não costumam voltar ao bairro dos Coelhos é a condição precária da comunidade: casas de tábua, esgoto na rua, falta de água, demanda por vagas em creche e escola, dificuldades para atendimento médico e marcação de consultas. O que não falta é problema para solucionar e gente se queixando nas vielas.
Realidade de favores
Segundo o Censo de 2010, o bairro dos Coelhos tinha uma população de 7.633 habitantes morando em 2.232 casas. Esse número, agora, deve ser maior, já que as palafitas aumentaram nos últimos anos – segundo os moradores são cerca de 2 mil barracos sobre o rio, fora as mais de 900 casas de alvenaria e tábua. As mulheres são responsáveis por 53,6% dos domicílios. Há oito anos, de acordo com o IBGE, a média era de 3,6 moradores por habitação e um rendimento mensal de R$ 900 por família. Quase 70% da população é negra (preta e parda).
O funcionário público Jorge Gerônimo foi eleito líder comunitário com pouco mais de mil votos. Ele é referência nos Coelhos para quem precisa de ajuda para marcar consultas médicas na rede pública estadual sem enfrentar filas, entre outros favores. Segundo Gerônimo, a população dos Coelhos aumentou muito, já passa de 10 mil pessoas. “Meninas que eram crianças já estão com filhos.” Mas não há creches em número suficiente e as crianças de 4 anos não conseguem vaga na escola. “Não tem nada fácil para o pobre”, disse. Enquanto a reportagem conversava com Gerônimo, uma jovem se aproximou para perguntar se ele tinha conseguido a consulta com a fonoaudióloga para o seu filho autista. “Está demorando muito”, comentou a moça. A criança já consulta com neurologista há um ano, através do apoio do líder comunitário. “Eu vou ligar pra doutora e te dou uma posição amanhã de manhã”, respondeu ele.
Nas ruas do bairro, veem-se cartazes com uma montagem da foto de Gerônimo ao lado do deputado federal André de Paula, candidato à reeleição pelo PSD. “Ele me procurou porque sabe que assim o voto aparece, e eu estou apoiando, temos que acreditar… ou vai dessa vez ou não vai mais”, falou Gerônimo, admitindo, em seguida, que os políticos somem e só quem fica atendendo as demandas da comunidade é ele. O candidato que ele apoiou nas últimas eleições não ganhou.
“Estou há mais de 30 anos ajudando esse povo. Nenhum deputado ou vereador fez nada pra gente. Eles vivem no gabinete deles, só vêm aqui em época de eleição.” Gerônimo almeja disputar para vereador de Recife no próximo pleito, não entrou ainda por não ter “capital de giro”, nas palavras dele. André de Paula foi procurado pela reportagem, por e-mail, telefone e canais que ele disponibiliza nas redes sociais ao eleitor, mas não respondeu.
Direito é privilégio político
O acesso à educação, saúde, água potável, saneamento básico e calçamento é um direito, mas acaba tornando-se um privilégio nas comunidades pobres, quando concedido por meio de benefício político de um vereador. É o chamado sistema de favor e tutela, como explica a cientista política Ana Maria: “Uma rede de poder é exercida nas favelas, que vai do cabo eleitoral ao deputado. Os moradores não têm informação e acreditam que o acesso aos direitos passa pelo político”. Ela avalia que a maioria dos vereadores é eleita pelo “voto de permuta”. Não é mais o voto de cabresto, “esse novo eleitor não está trocando o voto dele por dentadura, mas por uma vaga de emprego, por coisas que melhoram a vida dele”, considera a cientista política.
Graças a esse “benefício” que o eleitor recebeu, ele se sente preso e amarra toda a família ao candidato. O vereador Marco Aurélio conseguiu um emprego para o filho de Manoel Monteiro, que, por isso, sempre faz campanha para o político na comunidade dos Coelhos. Este ano, o candidato concorre à vaga de deputado estadual pelo PRTB. “Marco Aurélio arruma emprego, paga enterro, compra as coisas do dinheiro dele para ajudar até quem não vota nele”, disse Monteiro, e logo chamou um morador para exemplificar que os canos novos para a rua dele foram comprados pelo candidato e a obra iria começar em breve. O encanamento atual não aguenta chuva e alaga todas as casas. “Aquela família ali votava com Jorge [Gerônimo], agora vota em Marco Aurélio”, apontou Monteiro, mas os dois candidatos citados não são concorrentes diretos. A Pública tentou contato com Marco Aurélio por telefone, mas não teve sucesso. Assim como no caso de André de Paula, a reportagem perguntou sobre as propostas deles para a comunidade dos Coelhos e ficou sem resposta.
Rede de poder
Em Pernambuco, famílias tradicionais comandam as prefeituras do interior. Filhos, esposas e parentes vão herdando, eternizando-se na política e formando a rede de poder cuja moeda principal é o voto. A política, que é pública, passa a ser privada. “No Nordeste, o coronelismo é mais forte. De Recife a Petrolina, os grupos de famílias se revezam no poder há mais de cem anos”, afirmou Ana Maria, citando alguns exemplos de sobrenomes que dominam no estado: em Pesqueira, os Mendonças; em Caruaru, os Lyras; em Petrolina, os Coelhos.
A prática da propaganda irregular e de crime eleitoral é grande em Pernambuco, justamente por causa do acirramento político entre esses grupos tradicionais, sendo nas eleições municipais o jogo mais sujo. Para quem está nos movimentos sociais e na luta cotidiana, enfrentar essas oligarquias, que também concentram o poder econômico, é muito difícil, avalia Ana Maria. “As famílias se perpetuam através do assistencialismo nas periferias e favelas e mantêm os currais eleitorais”, completou a professora da UFPE.
O vereador Ivan Moraes Filho é militante de movimentos sociais em Pernambuco há 15 anos e disputa uma vaga para deputado federal pelo Psol. Em entrevista à Pública, ele disse que, nas visitas às comunidades, gosta de explicar o que é um mandato parlamentar e falar sobre os recursos usados na campanha. “Levo algumas questões que dificilmente chegam para eles: ‘Tu imagina de onde vem o dinheiro da compra do voto? O gás subiu quanto? Quando um político compra teu voto, ele te deve mais o quê?’”. Moraes Filho ressalta que não são apenas os pobres que veem o voto com descaso e enxergam o período eleitoral como oportunidade de ganhar dinheiro. “A elite também está desinteressada pelo voto e bem preocupada com seus próprios interesses. Só que nesses casos as negociações acontecem de outra forma.”
Voto de opinião
Nem cabresto nem permuta. Há que se garantir o voto de opinião, defende a cientista política Ana Maria. “Como um filho ou um sobrinho de um prefeito, que caiu na política, vai representar sua pauta?”, questiona. As pessoas que vivem nas áreas mais pobres necessitam resolver seus problemas de sobrevivência, mas também precisam se livrar da política assistencialista, que sacia a fome imediata do cidadão e o torna dependente. “Temos a obrigação de recuperar a boa política, ao invés de pedir ditadura e lutar contra a democracia”, aponta Ana Maria. Isso significa votar em pessoas comprometidas com os reais interesses da comunidade, que reconheçam os direitos, tragam, além de polícia, lazer e cultura para a favela.
No bairro dos Coelhos, em Recife, Janete Batista Sobrinho, de 46 anos, é a “Fia do Posto”, a única candidata a deputada federal que mora na comunidade. Ela é agente de saúde e sanitarista. Tem um ou outro cartaz dela espalhado nas ruas, que é candidata pela Rede. A reportagem da Pública não conseguiu falar com ela na comunidade nem pelos seus canais de contato. Na sua página de Facebook, só tem uma postagem em referência a sua candidatura com o lema: “A mudança é você quem faz”.
Raio X dos Coelhos
Em 2016, o sociólogo Aciole Neto, da organização filantrópica Gestos, publicou um relatório sociodemográfico sobre o bairro dos Coelhos. Em relação à saúde, a comunidade tem dois postos de saúde, um deles existe há 20 anos e é fruto da mobilização da comunidade junto a prefeitura. Esse cobre cerca de 900 famílias e o outro atende cerca de 1.200. Mas o bairro possui o Instituto de Medicina Infantil de Pernambuco, o Imip, hospital de referência para todo o estado, que fica sobrecarregado. E, a poucos metros da favela, está o bairro da Ilha do Leite, com o maior polo médico privado do Norte e Nordeste do país, pela concentração de clínicas luxuosas e hospitais particulares.
Quando a demanda é educação, a situação nos Coelhos não é melhor. O relatório mostra que há apenas uma escola municipal e a indisponibilidade de creches é ainda mais grave. A Creche Municipal Vovô Artur é a única da comunidade, atendendo 95 crianças. Não existem outras unidades nos bairros próximos.
Denúncias, fiscalização e punição
Em casos de descumprimento da legislação federal, o responsável é alertado pelo fiscal a adequar a propaganda. “As apreensões [do material] só ocorrem se não houver uma pessoa para retirar ou se estiver atrapalhando algum local público e de uso comum, que não pode ter propaganda”, explicou Flávio Melo, presidente da comissão de propaganda eleitoral do TRE em Recife. Ele acredita que muitas das irregularidades ocorrem devido ao desconhecimento da população.
A compra de votos é crime eleitoral. De acordo com a Lei das Eleições, o candidato que doar, oferecer, prometer ou entregar ao eleitor algum bem para obter o voto, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, está sujeito a pena de multa, cassação e pode tornar-se inelegível por oito anos. O eleitor que receber, solicitar dinheiro ou qualquer outra vantagem, para si ou para outra pessoa, também está sujeito a crime. Mas o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) entende que deve haver provas robustas contra o acusado para condená-lo.
A fiscalização depende de o cidadão apresentar denúncia e comprovação. Até o dia 27, foram contabilizadas em todo o país cerca de 14 mil denúncias. O sistema Pardal aceita arquivos fotográficos, áudios e vídeos, enviados via web ou aplicativo de celular. A identificação do denunciante pode ser preservada. “O candidato é notificado para apresentar defesa e tudo é encaminhado ao Ministério Público Eleitoral”, esclareceu Melo.