Gabriela Fujita
Do UOL, em São Paulo
Lucas* tem 18 anos e três passagens pela Fundação Casa, em São Paulo. A primeira foi aos 14 anos, por ter participado de um roubo a uma residência. A segunda por não comprovar que estava estudando, conforme determinava uma medida socioeducativa. A terceira foi a mais longa. Durou um ano e meio, após ser flagrado, menor de idade, dirigindo um carro roubado.
Ele considera que fez coisas erradas e pagou por isso. Agora do lado de fora, o jovem critica a forma como os internos são tratados na instituição.
"Eu quero que quem fizer o errado pague também. E isso se refere aos funcionários [da Fundação Casa]. Quando eu cheguei na unidade da Raposo Tavares, não teve conversa, foi surra", conta à reportagem do UOL. Ele voltou a morar com a família em junho de 2017. "Está na lei que eu tenho que pagar dessa forma? É desse jeito que vai conseguir ressocializar alguém?"
Não é só ele que denuncia os maus-tratos e a tortura psicológica. O Conselho Tutelar e a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) assinaram relatórios constatando violações no processo de ressocialização de adolescentes. A Fundação Casa nega qualquer irregularidade (veja o posicionamento completo ao fim da reportagem).
Em novembro de 2017, unidades foram visitadas por comissários da CIDH, órgão da OEA (Organização dos Estados Americanos) com sede nos EUA e encarregado da promoção e proteção dos direitos humanos. Foram coletados casos de práticas abusivas como a "recepção", violência física aplicada por vários agentes a adolescentes recém-chegados, e o "procedimento", quando internos são submetidos a longos períodos em posições dolorosas, às vezes nus.
Segundo a comissão, "algumas dessas práticas seriam justificadas pelos agentes como medidas contra o descumprimento das regras disciplinares internas da instituição". "Os internos também relataram que a direção seria omissa em casos de violência contra eles", aponta relatório de dezembro de 2017, que pede providências ao governo do Estado.
Até maio de 2017, segundo informações do MP-SP (Ministério Público de São Paulo), estavam em andamento 59 inquéritos policiais envolvendo irregularidades nas cinco unidades do complexo Raposo Tavares, referentes a casos de 2014 a 2016 apresentados no 75º DP.
Ao MP, a Polícia Civil apontou uma série de obstáculos para investigar os casos como entraves burocráticos provocados por funcionários da Fundação durante a apuração das suspeitas de violência praticada nas unidades.
"Tranca" sem roupas por uma semana
Segundo Lucas, o tratamento a reincidentes é pior. Ele afirma que passou por humilhações, espancamentos, ameaças e maus-tratos na unidade Nova Aroeira, na Raposo. "Quando eu cheguei, já me bateram para eu baixar a cabeça. Me deram um tapa na nuca, você não pode olhar para lugar nenhum quando você chega."
Como castigo, ele ficou o dia todo em pé, sem ter contato com ninguém e sem comer. Ao anoitecer, foi para um quarto, onde teve de ficar sentado até a troca de turno. Foi permitido no dia seguinte que ele recebesse a visita da mãe, mas por apenas meia hora.
Ele foi levado de volta ao quarto, segundo relata, e lá permaneceu por uma semana, só de cueca, isolado, em procedimento conhecido como "tranca". De tempos em tempos, funcionários diziam: "Se você não ficar tranquilo, a gente não tá nem aí, a gente quebra no pau", descreve.
Eu imaginava que aquilo era o inferno e só pensava em morrer
Lucas*, ex-interno da Fundação Casa
"Eu ficava sem ar, e eles continuavam batendo"
Quatro dias após entrar na unidade para infratores reincidentes, Lucas diz ter levado sua primeira surra na sala da coordenação. Ele tinha acabado de conhecer seus supervisores.
"Socos no estômago, na barriga, joelhada. Me derrubaram no chão, me chutaram. Eu ficava sem ar, e eles continuavam batendo. Quando pararam de me bater, pediram para eu tirar minha roupa, e eu estava todo vermelho."
Ele recebeu uma nova sessão de pancadas em menos de um mês. Conta que um funcionário disse que ele estava "de cara feia, fechada". "Nesse dia até pisaram na minha cabeça", diz.
Toda vez que me batiam, me jogavam no banho gelado para não ficar marca da agressão. Todo mundo que chega apanha
Lucas*, ex-interno da Fundação Casa
Para evitar continuar apanhando, Lucas apelou para um problema de saúde crônico nos rins, que está registrado em seu prontuário na Fundação Casa. Ele reclamava das dores para ser levado até a enfermaria.
"Toda semana eu tinha queixa, mesmo que eu não estivesse com dor nos rins. Porque aí eles não iam querer me bater [para as lesões não serem descobertas nos exames]. Foi a forma que eu achei de me esquivar."
Também encontrou um refúgio nos livros: leu cerca de 30 em 18 meses. "Dessa forma, eu tive mais traumas. Dessa forma, eu criei mais ódio dentro de mim. Se não fosse por força de vontade minha mesmo, de eu querer dar um basta, eu ia estar pior do que entrei, pela tal ajuda que eles dizem dar lá dentro."
"Fundação Casa deveria ser transparente, mas não é"
Dos 52 Conselhos Tutelares na cidade de São Paulo, o do Rio Pequeno é o que responde às queixas advindas do complexo Raposo Tavares. "Tivemos 43 denúncias anônimas e pelo Disque 100 de 2016 até agora", afirma Gledson Silva Deziatto, um dos conselheiros no local, há seis anos nessa região.
Segundo ele, o complexo da Raposo está entre os que mais têm reclamações de violência e tortura. Houve um aumento de 38% entre 2016 (16 denúncias) e 2017 (22 denúncias). Somente em 2018, já são cinco casos denunciados.
"As denúncias que recebemos são sobre a agressão cometida pelos agentes quando os adolescentes chegam, para os funcionários deixarem bem claro: 'quem manda aqui somos nós'. Além de torturas físicas e psicológicas", diz Deziatto.
Em janeiro deste ano, uma ligação anônima denunciou que um adolescente de 17 anos, internado há poucos meses, havia sido espancado por um funcionário no dia anterior e estava muito machucado. "Ele foi dar um 'oi' para outro menino, o funcionário não gostou e foi para cima dele, bateu nele", afirma o conselheiro.
O jovem foi levado ao pronto-socorro. "Ele estava com hematomas no peito, nas costas, no pescoço e na perna, e uma das pernas estava enfaixada. Era bem nítido que aquilo foi agressão física", aponta Deziatto. "Para a médica, porém, ele disse que caiu."
O conselheiro ressalta que muitos adolescentes têm medo de denunciar que apanham por conta de represálias. "Tudo é feito para maquiar o que acontece lá dentro."
Quando a fundação é confrontada, a justificativa é que o funcionário está sendo "perseguido por não se submeter aos internos". "A fundação deveria ser mais transparente naquilo que ela faz, e hoje ela não é."
"É uma violência que acontece onde não há testemunha"
Fernando Henrique de Freitas Simões, promotor da Infância e da Juventude, diz que a fonte de disputa entre adolescentes e funcionários é o que ele chama de códigos informais de controle, que não estão previstos no regulamento, mas existem na prática e podem mudar conforme a unidade de internação.
"Tem uma gestão informal do controle. Por exemplo: andar com as mãos para trás, olhar para o chão, falar 'sim, senhor', 'não, senhor'. Se há cinco pessoas em uma sala, pedir licença para todas, para cada uma. São vários códigos de domínio e de subserviência que têm que ser observados. São os dois tentando sobreviver naquele ambiente", ele afirma.
De acordo com Simões, o Fórum das Varas Especiais da Infância e da Juventude tem cerca de 10 mil processos em andamento referentes à Fundação Casa, incluindo os de medidas socioeducativas em regime meio-aberto, de liberdade assistida e de prestação de serviços.
"Se a gente recebe um número grande de denúncia de violência? Sim. A nossa dúvida é: como investigar um caso individual? Porque é uma violência que acontece num ambiente em que você não tem testemunha."
O que diz a Fundação Casa
Em nota enviada ao UOL, a Fundação Casa afirma que "a instituição pauta a prestação do atendimento socioeducativo no Estado de São Paulo pelos pressupostos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Não há registro da suposta disputa de poderes entre adolescentes e funcionários, menos ainda a prática indiscriminada de violação de direitos".
"Sobre as denúncias de supostos maus-tratos no complexo Raposo Tavares, a Fundação Casa reitera que respeita os direitos dos adolescentes e dos funcionários e não tolera qualquer tipo de prática de agressões em seus 145 centros socioeducativos. Quando são constatados eventuais abusos, os funcionários são investigados e punidos, com demissão por justa causa, suspensão ou advertência."
A entidade afirma que age com "total transparência" e que "conta uma Ouvidoria aberta à sociedade e aos adolescentes atendidos". A Fundação Casa reforça que tem uma Corregedoria Geral "com poder e independência para apurar os casos em que há suspeitas de má conduta de funcionários".
"Se encontradas provas da materialidade de má conduta, os funcionários passam por processo administrativo disciplinar, com direito ao contraditório e à ampla defesa. Entre 2006 e fevereiro de 2018, a Fundação Casa demitiu 133 funcionários acusados de violação de direitos dessa natureza."
Quanto às irregularidades apresentadas pela CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), a fundação afirma que "tem colaborado com o órgão internacional".
* O nome do ex-interno foi trocado para preservar sua identidade