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O povo Kayapó Mekrãgnotire prepara-se com pinturas corporais para a guerra. Ocuparão, nesta segunda-feira, a BR-163. É um dos episódios em que a pressão exercida pelas rodovias que cortam ou margeiam terras indígenas se tornou insustentável. A mesma rota que escoa os grãos vindos do Mato Grosso nos portos de Miritituba, pelo Rio Tapajós, rumo a outros países, leva para as terras demarcadas garimpeiros, madeireiros e, com eles, o coronavírus. As lideranças de 297 famílias e 12 aldeias reclamam da falta de atendimento em saúde, do descumprimento de compromissos relacionados à rota por parte do governo e de um consequentemente sufocamento sistemático do território.
Em 10 de agosto, o Correio denunciou, com a reportagem O perigo que vem da estrada, como rodovias brasileiras que cortam terras indígenas se tornaram as vias por onde a Covid-19 infecciona os sistemas respiratórios de integrantes de diversas etnias, matando os mais velhos e, com isso, apagando parte considerável da história e da cultura desses povos. O caso dos Kayapó Mekrãgnotire é um em que os membros das comunidades decidiram “chamar a atenção do mundo”, como afirmam as lideranças. E escolheram fazer isso com protestos, apesar do risco da doença e, embora temam a reação — em março, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, chamou a Força Nacional para receber uma delegação indígena com agenda na Fundação Nacional do Índio (Funai).
Chama a atenção o fato de a rodovia não cortar diretamente as terras, como ocorre em outras situações e, ainda assim, atingir diretamente a vida dos aldeados. Vice-presidente do Instituto Kabu, criado para gerir as aldeias e fiscalizar as matas da região, Mudjere Kayapó conta que a rodovia levou o vírus que matou três anciãos em apenas uma semana. “A primeira coisa da BR é por causa da Covid-19. O governo não está nem aí para nós, indígenas. E estamos morrendo dessa doença. Em uma semana perdemos três anciãos, que são nossas bibliotecas. A Funai prometeu mandar cestas básicas, mandou duas vezes, mas faltando muita coisa. E a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não está nem aí para nós. Estão sem motorista há mais de um ano. Não tem carro. Não tem profissionais. Nossa saúde está precária”, desabafa.
Risco de contaminação
Mudjere explica que os garimpeiros que invadem a região chegam pela rodovia. O mesmo ocorreu com madeireiros. Para garantir a permanência da BR que envia grãos brasileiros para o exterior, foi criado o Componente Indígena do Plano Básico Ambiental (PBA-CI), uma condicionante para a estrada margear o território, com o governo federal financiando a vigilância ambiental feita pelos próprios kayapós, e a Funai fiscalizando o uso da verba. Mas, em janeiro, o governo suspendeu os pagamentos, limitando a ação dos povos originários, e as invasões começaram a aumentar. “A Amazônia está pegando fogo. A invasão está grande nas nossas reservas. Os brancos estão aproveitando o coronavírus; os garimpeiros. E é graças a nós, indígenas, que a Amazônia ainda existe. A floresta precisa de nós, e nós, da floresta. Ela nos alimenta, e nós a alimentamos”, afirma.
Uma das lideranças locais, Doto Takak admite que as manifestações e o fechamento da BR podem expô-los ainda mais ao vírus. “Mesmo sabendo que estamos correndo risco, estamos muito bravos. Mesmo sabendo do perigo e da doença, estamos lutando pela defesa do nosso povo, da floresta, do meio ambiente, que o mundo está assistindo à derrubada e à exploração de minérios. A Funai e o DNIT (Departamento Nacional de Estradas de Rodagem) estão dificultando a situação. Para privatizar, não nos chamaram para fazer a consulta”, lembra. O governo estuda repassar a via para uma concessionária. O levantamento está com o Tribunal de Contas da União (TCU) sem o PBA-CI. Os kayapó também se queixam da Ferrogrão, ferrovia que passará pelo território.
Em uma carta aberta enviada a embaixadas, os indígenas denunciaram as dificuldades geradas pela rodovia, incluindo, claro, os efeitos da pandemia. “Nesses mais de 10 anos, temos visto a permanência dos impactos e o agravamento das pressões sobre nossos territórios indígenas. É clara a escalada da degradação da floresta em escala regional. Para onde quer que se olhe, tudo aponta para a aceleração do processo de destruição: desmatamento, ocorrência de focos de calor, proliferação de garimpos ilegais, invasões e cooptação de lideranças indígenas configuram uma situação que torna necessária a adoção de medidas urgentes para evitar uma catástrofe que se anuncia, impulsionada pelo ingresso explosivo da pandemia de Covid-19 nas aldeias”, afirma o texto.
“É nesse cenário que o governo estabelece o trecho da BR-163/230 (Sinop/MT — Miritituba/PA) como prioritário para o programa de privatização, alardeado como solução para diminuição do tamanho do Estado em uma região de muitas carências”, alertam os povos originários da região.
Um dos integrantes da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Kleber Karipuna alerta para os fluxos nas rodovias como forma de transporte do coronavírus para as aldeias. “A gente está mapeando como grandes vetores do vírus para dentro de terras indígenas o tráfego de pessoas por estradas. As BRs têm um tráfego intenso, e não temos muito controle sobre quem para ali. Em alguns casos, indígenas estão fazendo barreiras. As estradas vão ser sempre um problema nessa circulação de pessoas. Principalmente em rodovias que passam próximo a terras indígenas. Tanto pela falta de fiscalização do poder público, quanto pela falta de orientação a motoristas, principalmente caminhoneiros, em relação ao contato com os povos”, destaca.
Cabo de guerra de informações
O Componente Indígena do Plano Básico Ambiental (PBA-CI) é o que permite que os Kayapós dos territórios Mekrãgnotire e Baú mantenham carros, barcos e combustível para fiscalizar e trabalhar na preservação da floresta. O serviço é inglório. Um dos municípios mais próximos é Novo Progresso (PA). Foram fazendeiros da região que promoveram, em 13 de março de 2019, o dia do fogo, por exemplo. Há um cabo de guerra de narrativas entre indígenas e o governo, agravado por várias declarações do presidente Jair Bolsonaro. Entre elas, que seriam os povos originários os responsáveis pelas queimadas na Amazônia e, durante a campanha, a promessa de que não demarcaria terras indígenas em sua gestão.
O Correio procurou a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNIT) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) para repercutir os pleitos dos Kayapós. A Funai informou que repassou, este ano, para o Instituto Kabu, R$ 675 mil. E que, no âmbito do PBA-CI, a previsão de repasse é de R$ 1,925 milhão. “Com relação à renovação do PBA-CI, faz-se necessária cautela para averiguar se as medidas propostas e realizadas tiveram efetividade, bem como se as medidas propostas para serem incrementadas ou renovadas possuem o devido nexo causal, razoabilidade e proporcionalidade, princípios que pautam toda a Administração Pública”, explicou o órgão.
“Nesse sentido, desde março de 2020, estão ocorrendo tratativas para definição das medidas de mitigação pertinentes aos impactos que a BR-163/PA exerce nas terras indígenas. Ressalta-se que a rodovia não intercepta nenhuma das TIs, sendo que o ponto mais próximo fica a aproximadamente 30 quilômetros da BR-163/PA”, segue a nota. Desde 2008, os o governo repassou cerca de R$ 39 milhões. Os indígenas reclamam que repassaram o balanço detalhado de gastos e atividades, e que os valores deveriam ter sido recebidos em janeiro.
O Ministério da Infraestrutura, responsável pelo DNIT, admitiu que, junto à Funai, segue em tratativa para renovar o plano ambiental. “É necessário esclarecer que o departamento não parou de financiar o Plano Básico Ambiental. No momento, somente estão em discussão quais ações deverão ser continuadas no plano. Ocorre que, após mais de 10 anos de execução das ações de mitigação, a autarquia está fazendo um balanço para aprimoramento e maior efetividade das mesmas. Nesses 10 anos já foram investidos pelo DNIT mais de R$ 106 milhões em ações que beneficiam os indígenas naquela região. Além dos R$ 39 milhões repassados à Funai, mais R$ 67 milhões foram alocados em programas de melhorias de ramais solicitados pelos indígenas”, argumentou a pasta por e-mail.
“É importante destacar, também, que a renovação proposta pelos indígenas foi orçada em mais R$ 68 milhões, para o período de 5 anos, especificamente voltados à execução do PBA-CI. Como já informado, nos últimos 10 anos esse valor foi de R$ 39 milhões repassados a Funai. Por fim, os canais de diálogo com os povos indígenas estão sempre abertos no Ministério da Infraestrutura, inclusive no que se trata do acesso das comunidades aos técnicos da área de gestão ambiental do DNIT”, segue o texto. Já a Sesai, do Ministério da Saúde, disse que não teve tempo hábil para levantar os dados da região.
Ainda assim, a secretaria afirmou que “tem garantido assistência aos mais de 750 mil indígenas brasileiros aldeados durante a pandemia da covid-19”. “A pasta reforçou o atendimento desde antes mesmo do decreto de pandemia feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Dessa forma, foram realizadas ações de informação, prevenção e combate ao coronavírus, orientando comunidades indígenas, gestores e colaboradores em todo o Brasil. “O Ministério da Saúde mantém 14 mil profissionais de saúde para o atendimento a essa população, além de ter realizado em conjunto com o Ministério da Defesa ações de atendimento local”, afirma o texto.
“O Ministério da Saúde já investiu cerca de R$ 70 milhões em ações específicas para o enfrentamento da covid-19, incluindo compras realizadas por cada um dos 34 distritos sanitários especiais indígenas (DSEIS). Até agora, já foram enviados 789.273 itens. Todos esses insumos complementam os estoques próprios dos 34 DSEIs, que também mantêm processos permanentes de aquisição de Equipamentos. Todas as curas, casos e óbitos de indígenas aldeados são devidamente registrados no Boletim Epidemiológico da Sesai”, encerra a nota da Sesai.
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Em 10 de agosto, o Correio denunciou, com a reportagem O perigo que vem da estrada, como rodovias brasileiras que cortam terras indígenas se tornaram as vias por onde a Covid-19 infecciona os sistemas respiratórios de integrantes de diversas etnias, matando os mais velhos e, com isso, apagando parte considerável da história e da cultura desses povos. O caso dos Kayapó Mekrãgnotire é um em que os membros das comunidades decidiram “chamar a atenção do mundo”, como afirmam as lideranças. E escolheram fazer isso com protestos, apesar do risco da doença e, embora temam a reação — em março, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, chamou a Força Nacional para receber uma delegação indígena com agenda na Fundação Nacional do Índio (Funai).
Chama a atenção o fato de a rodovia não cortar diretamente as terras, como ocorre em outras situações e, ainda assim, atingir diretamente a vida dos aldeados. Vice-presidente do Instituto Kabu, criado para gerir as aldeias e fiscalizar as matas da região, Mudjere Kayapó conta que a rodovia levou o vírus que matou três anciãos em apenas uma semana. “A primeira coisa da BR é por causa da Covid-19. O governo não está nem aí para nós, indígenas. E estamos morrendo dessa doença. Em uma semana perdemos três anciãos, que são nossas bibliotecas. A Funai prometeu mandar cestas básicas, mandou duas vezes, mas faltando muita coisa. E a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não está nem aí para nós. Estão sem motorista há mais de um ano. Não tem carro. Não tem profissionais. Nossa saúde está precária”, desabafa.
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