O homem mais honesto e mais respeitado pode ser vítima da Justiça. Pode considerar-se um bom pai, um bom marido, um bom cidadão. Anda de cabeça levantada. Pensa que jamais terá de prestar contas aos magistrados do seu país. Que fatalidade o poderia fazer passar por um homem indigno, por um criminoso?[1]

Essa fatalidade existe, tem um nome: erro judiciário[2] ou injustiça.

Alguém com mais de três décadas exercício da advocacia criminal - às vezes até com menos - certamente já se deparou com o cometimento de arbitrariedades e atos de autoritarismo perpetrados por algum magistrado durante o curso do processo. Com certeza, deve também ter se deparado com uma ou outra condenação injusta, contrária a prova e que afronta o direito.

A crônica judiciária está repleta de casos em que o erro judiciário tomou o lugar da pretendida justiça. Inúmeros inocentes foram e continuam sendo presos e condenados injustamente. Em alguns casos, os erros são revelados após anos ou décadas, em outros, os erros continuam acaçapados por algo que se convencionou chamar “justiça”.

Não há nada, absolutamente nada, mais revoltante e doloroso para o ser humano do que uma injustiça. A injustiça é a própria tirania, a iniquidade que desacredita as instituições e fere a alma.

Muitas das vezes a injustiça é escancarada, vista por todos, é clara e manifesta. Já em outras ocasiões, a injustiça veste o manto da legalidade e sai fazendo, sem ser vista ou percebida, vítimas inocentes.

A injustiça é como a morte, está em todos os lugares, ataca à luz do dia ou na escuridão da noite. Mesmo na bela primavera, a injustiça se faz presente. Assim como a morte, a injustiça ataca de repente ou morosamente, fazendo com que sua vítima sofra ainda mais.

O processo que culminou com a condenação de Luiz Inácio Lula da Silva é fruto do autoritarismo e do Estado de exceção que se instalou no Brasil.

Segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben,

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração por meio de estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, parecem não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.[3]

Ainda de acordo com Agamben, dialogando com Carl Schmitt, O estado de exceção “define um ‘estado de lei’ em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem ‘força’) e em que, de outro lado, atos que não têm valor de lei adquirem sua ‘força’”. [4] Para Agamben, o “estado de exceção” é um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei.

Grosso modo, pode-se dizer que o estado de exceção se opõe ao Estado de Direito. No estado de exceção, a democracia é substituída pelo autoritarismo, pela restrição de direitos e garantias fundamentais. As tais “medidas e remédios excepcionais” são frutos do autoritarismo e do estado de exceção.

Referindo-se ao processo penal de exceção, Fernando Lacerda salienta que:

o processo penal de exceção é a antítese do processo penal garantista, nasce da afronta ao Estado de direito ― dando ensejo à materialização de um Estado de exceção (...) ― e, tal qual a Hidra de Lerna com seu hálito venenoso, pode-se nele identificar as sete cabeças de serpente: (i) aplicação distorcida da teoria do domínio do fato e expansão da criminalização, (ii) flexibilização das garantias individuais, (iii) delação premiada, (iv) acordo de leniência, (v) seletividade dos investigados, processados e condenados, (vi) julgamentos de acordo com a opinião pública(da) e influência corrompida dos sistemas político e midiático no poder judiciário e (vii) o fantasma de uma legislação antiterrorismo.[5]

O processo penal não pode ser visto hoje como um simples instrumento a serviço do poder punitivo, mas, também, como aquele que cumpre o imprescindível papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Aury Lopes Júnior alerta que:

há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forme rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal). [6]

Necessário ressaltar que, por mais que a sociedade almeje o combate à criminalidade, notadamente, a corrupção, ainda assim, não é possível fazê-lo fora do Estado de Direito. Repita-se, o emprego de “métodos especiais de investigação” e dos “remédios excepcionais”, fora do devido processo legal e, portanto, do processo penal constitucional e democrático, é próprio do estado de exceção e de regimes fascistas. De igual modo, o conceito de inimigo jamais é compatível como um Estado de Direito e nem mesmo com os princípios do liberalismo político. [7]

Assim, condenações que atropelam o processo penal democrático próprio do Estado Constitucional, que afrontam direitos e garantias fundamentais e que tratam o acusado como inimigo somente pode levar à condenações despóticas e injustas.

Notas e Referências:

[1] FLORIOT, René. Erros judiciários. Trad. Orlando Neves. Porto: Livraria Civilização, 1970.

[2] Idem.

[3] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13.

[4] AGAMBEN, Giorgio. Op. cit. p. 61.

[5]Disponível em:<http://www.conjur.com.br/2015-dez-01/fernando-lacerda-combate-inimigo-processo-penal-excecao

[6] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[7] ZAFFARONI, Eugenio Raùl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.