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Em certas alturas do Equador, algumas sociedades desenvolveram ferramentas sofisticadas para ocultar e mesmo normalizar certos desastres. As classes médias brasileiras, por exemplo, sempre conviveram pacificamente com campos de concentração (neste país são chamados de penitenciárias) para negros e pobres, vitimados também fora deles pelo mesmo terrorismo de Estado.
No Brasil, há uma vasta (e, para muitos, invisível) malha ferroviária rumo ao abismo. E na raiz desta invisibilidade está a desumanização do outro – como em todo fascismo, toda escravidão, todo regime opressor.
Nosso tão caro Estado Democrático de Direito jamais foi democratizado nas favelas e quebradas após a Constituição Cidadã de 1988 – e só agora, sob um governo que também ameaça brancos ideológicos com vozes na imprensa, esse massacre parece (um pouco) mais visível.
A pandemia de covid-19 não interrompeu o apetite genocida do Estado. No Brasil, as ditaduras militares sempre só acabam para os brancos.
Na semana retrasada, veio a público o caso de João Pedro Martins, de 14 anos, assassinado pela polícia enquanto brincava com os primos – os agentes do Brasil jogaram duas granadas e atiraram 72 vezes com fuzis na casa da família em São Gonçalo. No dia seguinte, João Vitor da Rocha, 18 anos, foi baleado pela PM enquanto voluntários entregavam cestas básicas a famílias na Cidade de Deus.
Há um vídeo de um desses líderes comunitários dizendo, logo depois do assassinato: “A gente nasceu alvo. João Pedro foi ontem! Eles são genocidas, e nós somos alvo do Estado, mano! Nós é preto, mano.”
Ainda que frágeis e recentes políticas identitárias tenham tentado mitigar a exclusão social dos negros no Brasil, o último país do Ocidente a abolir a escravidão manteve o racismo estrutural desde sua Lei Áurea.
Os traços dessa desigualdade não se encontram apenas em diferenças na renda e acesso à educação e saúde, mas em índices ainda mais trágicos. As mulheres negras têm 71% mais chances de morrer assassinadas que as mulheres brancas. Seus filhos também correm mais risco: dos 30 mil jovens assassinados por ano no país onde mais se mata no mundo, 77% são negros.
O genocídio era o mesmo, mas pouco causava comoção durante a social-democracia demofóbica de FHC e o ciclo de esquerda reformista dos anos PT. O cotidiano extermínio do jovem negro e a ausência de direitos civis básicos para essas populações, indígenas e povos ribeirinhos inclusos, jamais foram tratados com a urgência necessária. Por todos os governos da Nova República. Sem exceção.
Como o tal bolo do Delfim, que precisava crescer para depois ser dividido, os direitos básicos de milhões de brasileiros criminalizados por uma política genocida de guerra às drogas ou expulsos de suas terras pelo avanço criminoso de aberrações como a usina hidrelétrica de Belo Monte também puderam ser deixados para depois.
Nas mesas do Rio de Janeiro pré-olímpico, surfando na mui virtuosa aliança entre governo federal, estadual, prefeitura, PT, PMDB e TV Globo, levantar esses assuntos, como qualquer coisa que ameaçasse a boquinha dos muitos envolvidos, era profundamente antipático.
Sei porque escrevo sobre isso em jornais desde 2004, e ataquei as contradições desse projeto ao vivo na televisão por anos, com reações quase sempre estapafúrdias.
Minhas primeiras ameaças de morte? Em 2007, quando publiquei no jornal O Globo uma coluna sobre Tropa de Elite, aquela antologia de memes necrofílicos em formato de longa-metragem. Vírus cultural que pavimentou caminho para o bolsonarismo, o filme logrou normalizar um discurso neofascista pela primeira vez desde a redemocratização.
Poucos meses depois da sua estreia, o deputado Flávio Bolsonaro propôs que o símbolo da força de operações da PM retratada no filme, o Bope, uma caveira atravessada por pistolas, se tornasse patrimônio cultural do Rio de Janeiro. Na campanha presidencial uma década depois, seu pai discursaria em quartéis gritando o slogan do batalhão: caveira.
Na época, eu escrevi que o longa parecia (e servia como) um nauseabundo institucional do Bope, caso exemplar de obra travestida de denúncia, feita à revelia do discurso de seu diretor. Na coluna, eu relacionava a aderência do filme na sociedade brasileira à bronzeada aposentadoria de milicos torturadores da última ditadura, que após pilhar o Estado e assassinar opositores, foram agraciados com a dura rotina de jogar peteca na praia de Copacabana.
Alguns desses fascistas me escreveram dizendo saber meu endereço, que tinham armas e iriam me procurar. Publiquei algumas das ameaças, com seus nomes completos, na coluna da semana seguinte.
E digo algumas porque todas não caberiam.
Dois anos depois desses eventos, aterrissei numa festa da Adidas numa mansão da Gávea, no Rio de Janeiro, a menos de um quilômetro dos muros que separam o alto do bairro da favela da Rocinha.
A primeira coisa que vi quando cheguei à boca-livre übercool foram balões da Adidas flutuando sobre uma piscina adornada com suásticas nazistas nos ladrilhos. No bar, os copos de cerveja estavam empilhados ao lado de um retrato do Almirante Karl Dönitz, que Hitler nomeou em seu testamento ao fim da guerra como chefe de Estado do Reich alemão e comandante-chefe da Wehrmacht.
O que já seria ultrajante virou um caso internacional: a Adidas, como tantas corporações alemãs, foi fundada por engajados membros do partido nazista e chegou a produzir para a mesma Wehrmacht o “Panzerschreck”, um lançador de foguetes antitanque. Ainda que a empresa tenha gastado bilhões de dólares nas últimas décadas num esforço de relações públicas para ocultar seu passado, os produtores brasileiros da festa pareceram não se importar com os símbolos presentes na casa que alugaram de um suposto colecionador.
Quando denunciei a história no jornal e na televisão, e comecei a responder entrevistas para a mídia alemã, promoters da cena carioca me escreveram dizendo que não me chamariam nunca mais para nenhuma festa.
Em 1998, em discurso proferido na Câmara dos Deputados em Brasília, Jair Bolsonaro defendeu estudantes de uma turma do Colégio Militar de Porto Alegre por terem eleito Adolf Hitler como personalidade histórica mais admirada: “Eles têm que eleger aqueles que souberam, de uma forma ou de outra, impor ordem e disciplina.” Quatro anos depois, em entrevista a um dos programas que o normalizaram durante décadas, afirmou que “profissionalmente Hitler foi um grande estrategista”.
O slogan de campanha de Bolsonaro em 2018 foi “Brasil acima de tudo”, ecoando o “Deutschland über alles” (Alemanha acima de tudo) hitlerista. Já no governo, segue apropriando-se de lemas nazistas. Sua Secretaria de Comunicação divulgou neste mês a campanha “O trabalho, a união e a verdade vos libertará” – o “Arbeit macht frei” (O trabalho liberta) bolsonarista em tempos de covid-19.
Se o secretário da Cultura Ricardo Alvim emulou Joseph Goebbels em janeiro de 2020, menos de um mês antes, com menor repercussão, o assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, um tal Filipe Martins, cumprimentou um dos filhotes do presidente no Twitter com um “Ya hemos pasao!”, saudação histórica do franquismo.
Trata-se de uma equipe afinada. Recentemente, fomos presenteados com o vídeo de uma reunião ministerial na qual o ministro Paulo Guedes citou nominalmente Hjalmar Schacht, ministro da Economia nazista, como um exemplo ao se referir a um plano de reconstrução econômica que inclui mão de obra servil e militarizada.
Pinochet? Ustra? Para o bolsonarismo não basta resgatar nomes do fascismo latino-americano, é preciso ir às suas origens. E nada disso deveria ser surpresa: Bolsonaro nunca enganou ninguém. Se há algo a ser admirado nesse espécime infra-humano é sua coerência e sinceridade. Ao longo dos anos ele e sua família de milicianos nunca esconderam quem eram.
E boa parte dos seus 57 milhões de eleitores sabia exatamente em quem estava votando.
Hoje, passados mais de dez anos desses primeiros contatos com o escancarado fascismo brasileiro, não consigo ver muita diferença entre os sujeitos que, protegendo seu conforto, editais e contracheques, se calaram por tanto tempo sobre as injustiças, as remoções, a criminalização e o massacre contínuo de negros e indígenas no Brasil; os políticos que tiveram a chance histórica de enfrentar esses problemas e escolheram não fazê-lo; os editores que ajudaram a normalizar o candidato fascista (nem sequer de “extrema direita” ele foi chamado no Brasil); os articulistas do chefinho que insistiram numa falsa equivalência entre um candidato democrata e o candidato fascista; os eleitores do candidato fascista; os que seguem defendendo o presidente fascista; e, finalmente, os que conviveram com aquelas suásticas e ficaram na festa bebendo de graça – as únicas pessoas que se negaram a continuar ali foram eu e os dois amigos que me levaram, uma mulher negra e um homem judeu.
E talvez seja por isso que agora esteja tudo bem. Muito melhor do que jamais esteve. Porque, pela primeira vez em sua história, o Brasil exibe, sem recalque, eleito por ampla maioria de votos, seu coraçãozinho fascista, etnocida, racista, misógino. Um reflexo fiel da nação, finalmente. É feio? É real.
E isso é uma coisa boa. Uma coisa mesmo muito boa. Afinal, temos diante de nós uma chance única para que os brancos ideológicos desta geração – e, vá lá, das anteriores – entendam que o produto da sua brutal indiferença ao racismo nosso de cada dia, ao fascismo nosso de cada dia, ao genocídio normalizado de cada dia, ao terrorismo de Estado brasileiro de cada dia, só pode resultar em mais fascismo, cada vez mais fascismo – dessa vez escancarado, sem pudor.
Está tudo bem, tudo ótimo. Muito melhor do que jamais esteve: ainda falta, mas nunca estivemos tão acordados.
Por:João Paulo Cuenca é um escritor e cineasta brasileiro.
As opiniões dos nossos colaboradores ou de autores reproduzidos não expõem necessariamente a posição do site. O nosso veículo é democrático e defende a diversidade de ideias e pensamento, publicando artigos com os mais diversos pontos de vista.
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Em certas alturas do Equador, algumas sociedades desenvolveram ferramentas sofisticadas para ocultar e mesmo normalizar certos desastres. As classes médias brasileiras, por exemplo, sempre conviveram pacificamente com campos de concentração (neste país são chamados de penitenciárias) para negros e pobres, vitimados também fora deles pelo mesmo terrorismo de Estado.
No Brasil, há uma vasta (e, para muitos, invisível) malha ferroviária rumo ao abismo. E na raiz desta invisibilidade está a desumanização do outro – como em todo fascismo, toda escravidão, todo regime opressor.
Nosso tão caro Estado Democrático de Direito jamais foi democratizado nas favelas e quebradas após a Constituição Cidadã de 1988 – e só agora, sob um governo que também ameaça brancos ideológicos com vozes na imprensa, esse massacre parece (um pouco) mais visível.
A pandemia de covid-19 não interrompeu o apetite genocida do Estado. No Brasil, as ditaduras militares sempre só acabam para os brancos.
Na semana retrasada, veio a público o caso de João Pedro Martins, de 14 anos, assassinado pela polícia enquanto brincava com os primos – os agentes do Brasil jogaram duas granadas e atiraram 72 vezes com fuzis na casa da família em São Gonçalo. No dia seguinte, João Vitor da Rocha, 18 anos, foi baleado pela PM enquanto voluntários entregavam cestas básicas a famílias na Cidade de Deus.
Há um vídeo de um desses líderes comunitários dizendo, logo depois do assassinato: “A gente nasceu alvo. João Pedro foi ontem! Eles são genocidas, e nós somos alvo do Estado, mano! Nós é preto, mano.”
Ainda que frágeis e recentes políticas identitárias tenham tentado mitigar a exclusão social dos negros no Brasil, o último país do Ocidente a abolir a escravidão manteve o racismo estrutural desde sua Lei Áurea.
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O genocídio era o mesmo, mas pouco causava comoção durante a social-democracia demofóbica de FHC e o ciclo de esquerda reformista dos anos PT. O cotidiano extermínio do jovem negro e a ausência de direitos civis básicos para essas populações, indígenas e povos ribeirinhos inclusos, jamais foram tratados com a urgência necessária. Por todos os governos da Nova República. Sem exceção.
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Minhas primeiras ameaças de morte? Em 2007, quando publiquei no jornal O Globo uma coluna sobre Tropa de Elite, aquela antologia de memes necrofílicos em formato de longa-metragem. Vírus cultural que pavimentou caminho para o bolsonarismo, o filme logrou normalizar um discurso neofascista pela primeira vez desde a redemocratização.
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Em 1998, em discurso proferido na Câmara dos Deputados em Brasília, Jair Bolsonaro defendeu estudantes de uma turma do Colégio Militar de Porto Alegre por terem eleito Adolf Hitler como personalidade histórica mais admirada: “Eles têm que eleger aqueles que souberam, de uma forma ou de outra, impor ordem e disciplina.” Quatro anos depois, em entrevista a um dos programas que o normalizaram durante décadas, afirmou que “profissionalmente Hitler foi um grande estrategista”.
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Pinochet? Ustra? Para o bolsonarismo não basta resgatar nomes do fascismo latino-americano, é preciso ir às suas origens. E nada disso deveria ser surpresa: Bolsonaro nunca enganou ninguém. Se há algo a ser admirado nesse espécime infra-humano é sua coerência e sinceridade. Ao longo dos anos ele e sua família de milicianos nunca esconderam quem eram.
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Por:João Paulo Cuenca é um escritor e cineasta brasileiro.
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