Nascidas em Belo Horizonte, Júlia Dias, Laís Lacôrte e Janamô estreiam musical sobre a intérprete no dia 19 de julho
Elza Soares já foi tema de filme e documentário, mas, como ela mesma diz, “o seu tempo é hoje”, tradução literal para a frase que a cantora prefere repetir em inglês: “My Name Is Now”. Sendo assim, Elza continua inspirando. Desde o ano passado, o jornalista Zeca Camargo prepara uma biografia sobre a trajetória daquela que foi eleita pela BBC de Londres como a voz do milênio. Já o violonista mineiro Thiago Delegado ainda guarda na manga a música “Deusa Soares”, feita em parceria com Flávio Henrique (falecido no início do ano, vítima de febre amarela), e que logo deve conhecer o mundo. Para completar, faltava para a vida da artista ganhar os palcos de teatro.
Não falta mais. No próximo dia 19 de julho o espetáculo “Elza” estreia no teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro. Ainda sem previsão de chegar a Belo Horizonte, o musical conta com três mineiras no elenco, todas nascidas na capital. Ao lado de outras quatro cantoras e atrizes selecionadas, Júlia Dias, Laís Lacôrte e Janamô vão encarar o desafio de emprestar a própria pele para reavivar de maneira lúdica as mais diferentes faces e fases da homenageada.
“Passa um filme pela minha cabeça, parece que começou tudo agora, o passado me assusta, porque foi tudo tão de repente”, afiança Elza. “Quero mandar um recado para essas sete mulheres negras maravilhosas, que estão me representando, e todas as outras que, às vezes, buscam espaço e não encontram; diga que estou com elas, que são atrizes negras, pretas, inteligentes, lindas; que nunca desistam de buscar o seu espaço ou mostrar a sua arte”, declara a cantora, sem esconder a emoção presente em seu tom de voz.
É justamente essa característica que leva Laís Lacôrte a se identificar com a homenageada. “Mesmo com muitos altos e baixos na carreira, a Elza continuou batalhand1o, cantando, inclusive em meio a inúmeras dificuldades. Mais do que me identificar, eu me sinto representada pela Elza. Não é fácil ser uma artista, uma mulher negra nessa sociedade, as oportunidades são poucas”, lamenta. Por isso mesmo ela considera que o atual espetáculo supera a representação da vida da intérprete.
“Ter um elenco cuja maioria são mulheres negras me faz acreditar que, pouco a pouco, a gente vai conseguir modificar esse cenário. É aí que eu mais me conecto com a Elza, nessa força de nunca desistir e continuar acreditando nos sonhos, de ter fé no amanhã”, completa Laís.
Júlia Dias, que chegou a se apresentar com Elza em 2016, ressalta essa característica. “A Elza é uma escola não só artística, mas também de vida, por tudo que ela passou como mulher negra, assim como nós”, garante a filha de Maurício Tizumba. Musicado por Zé Miguel Wisnik em 2000, o poema “Flores Horizontais” é o preferido de Laís na voz de Elza. “Fala com singeleza dessa vida dura das mulheres do mangue”, justifica Laís.
“Deus É Mulher” traz Elza no atual tempo de batalhas
Elza Soares sempre causou espanto. Quando ela cantou pela primeira vez no programa de Ary Barroso, na década de 50, o dono do gongo estava pronto para despejar a menina, mas ela afirmou que “vinha do planeta fome”, e deixou o autor de “Aquarela do Brasil” de queixo caído, mesmo antes de soltar a voz. Em “Deus É Mulher”, Elza segue cantando esse planeta, no atual tempo de batalhas em que o Brasil se transformou nos últimos anos.
O discurso da cantora permanece afiado, o que o dançante samba “O Que Se Cala”, de Douglas Germano, deixa claro logo na abertura. Além da modernidade contida nos arranjos, o que garante força às canções é, justamente, o vigor da voz da intérprete, que segue lançando mão dos habituais sons extraídos do fundo de sua garganta, que Elza descobriu quando carregava uma lata d’água na cabeça nos morros cariocas.
A sequência com “Exu nas Escolas” traz a participação do rapper Edgar e funciona como uma espécie de rock mântrico. “Banho”, de Tulipa Ruiz, abre com letra inspirada e enfática o bloco dedicado a saudar a liberdade sexual feminina. “Eu Quero Comer Você” praticamente coloca a artista numa pista carnavalesca. Sem abandonar o acento eletrônico, a canção chega a flertar com o funk, graças ao refrão mais do que explicativo: “Eu quero dar pra você”.
“Língua Solta” e “Hienas na TV” denunciam violência e mídia, sugerindo alguma participação de uma sobre a outra. O rock, em sua matiz obscura, volta a tomar conta. “Clareza” dispersa um pouco essa desesperança. E a espirituosa “Um Olho Aberto” mantém certa pegada alto-astral, com uma sagaz resposta aos dogmáticos e absolutistas: “Cada um inventa a natureza que melhor lhe caia”, sublinha a música de Mariá Portugal.
“Credo” segue a linha, com menor impacto. “Dentro de Cada Um” e “Deus Há de Ser” retomam o bom nível do disco que, é certo, pouco fôlego tem para legar clássicos, mas fala com veemência sobre o agora.