La traviata, hoje uma das peças mais populares do repertório operístico, estreou como um fiasco. O público que compareceu ao Teatro La Fenice, em Veneza (Itália), naquele 6 de março de 1853, vaiou a criação do italiano Giuseppe Verdi (1813-1901). Até a soprano Fanny Salvini-Donatelli, que interpretou a protagonista, a cortesã Violetta Valéry, foi duramente criticada. Embora ela já fosse então uma cantora aclamada, boa parte dos espectadores zombaram de sua atuação e a consideraram muito velha (aos 38 anos) e muito acima do peso para interpretar uma jovem que morre de tuberculose.
“Por incrível que pareça, foi um fracasso, um escândalo. A sociedade veneziana, tão machista, não gostou de se ver retratada daquela maneira. Foi uma ousadia de Verdi levar ao palco uma história contemporânea. Isso causou um choque”, comenta o tenor carioca Fernando Portari, que faz Alfredo Germont, o grande amor de Violetta, na montagem que a Fundação Clóvis Salgado volta a apresentar a partir desta sexta (18).
O libreto é de Francesco Maria Piave, a partir de A dama das camélias (1848), de Alexandre Dumas Filho. A história, portanto, se passa em Paris, num ambiente que entrelaça os universos da aristocracia, da burguesia e o mundo particular das cortesãs.
Esta é a sexta vez que a Fundação Clóvis Salgado (FCS) promove uma temporada da ópera de Verdi, a primeira que a instituição montou, em 1971. A atual encenação estreou em abril do ano passado. “É uma segunda chance para quem não conseguiu assistir naquela ocasião”, afirma Silvio Viegas, maestro da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e diretor musical da produção. Segundo ele, a decisão de voltar ao cartaz com La traviata se deve à força da ópera e a admiração que o público tem por ela. “Quando a gente tem uma produção tão benfeita, tão bem cuidada, com figurinos e cenários lindos, elenco primoroso, é importante dar essa nova oportunidade. Quanto mais a gente repete, mais maduro, azeitado e natural fica o espetáculo”, diz.
Com quatro récitas, a montagem desta vez tem Ronaldo Zero assinando a reposição cênica, a partir da concepção e da direção que Jorge Takla fez para a encenação original de 2018. “Ronaldo remontou com as mesmas orientações e diretrizes utilizadas por Takla, daí a reposição. Por mais que exista uma abordagem diferenciada, isso não interfere na direção cênica. São os mesmos cenários, figurinos, equipe”, afirma o maestro.
A única novidade é a entrada do solista Fabian Veloz no lugar de Paulo Szot, no papel de Giorgio Germont, pai do protagonista Alfredo. Viegas comenta o impacto dessa mudança na parte dramática e musical da ópera. “São cantores muito diferentes e que têm um tratamento distinto também do personagem, que é extremamente rico, diverso e pode ser interpretado de várias maneiras. Paulo optou por uma forma mais doce e paternal, enquanto Fabian faz um pai mais severo, que se preocupa muito com a opinião da sociedade com relação a essa união do filho com Violetta. É muito interessante ver como essa construção deles se dá de forma distinta. O bacana é que, na arte, nada se encerra em si”, observa.
CARINHO
Coube à soprano argentina Jaquelina Livieri o papel de Violetta Valéry. É a terceira vez que ela atua numa produção da FCS – incluindo as duas montagens de La traviata. Sua estreia nos palcos brasileiros se deu no Palácio das Artes, com a ópera Lucia di Lammermoor, de Gaetano Donizetti, em 2015. “Tenho um carinho muito grande pela Fundação e pelo Palácio das Artes, porque foi um espaço que me abriu as portas. A equipe, o público, a orquestra, o coral, tudo me comoveu e estou muito feliz de estar de volta, ainda mais com La traviata”, afirma.
A cantora diz que Violetta é a personagem que mais interpretou ao longo de sua carreira (foram sete vezes até agora) e, mesmo assim, consegue se encantar a cada vez que se transforma na cortesã. “Não é uma personagem chata; é extremamente rica e cheia de nuances, cores, situações. A variedade musical é outro aspecto que me encanta, porque envolve muito sentimento e muitas possibilidades. Nenhuma palavra é igual à outra”, diz.
Jaquelina comenta que mesmo quem não é expert em produções operísticas certamente já ouviu algum trecho de La traviata, sobretudo, Brindisi (Libiamo, libiamo ne'lieti calici/Che la belleza infiora) cantada no primeiro dos três atos. “La traviata não se destaca apenas por seu lado musical, mas por seu enredo, que fala de uma situação injusta, de uma mulher que é julgada pelo que faz e não por quem é. E, por conta disso, não pode ser feliz, não pode ser amada e formar uma família. É uma situação totalmente atemporal e que pode ocorrer com qualquer pessoa. Esses julgamentos e preconceitos estão aí”, opina.
Silvio Viegas também enaltece a qualidade da música de Verdi e lembra que La traviata se sobressai não só pela beleza de suas melodias – sejam as árias, duetos, finales e prelúdios – como por sua dramaticidade. “A trilha retrata bem o drama de cada um dos personagens. É difícil eleger qual o maior compositor de ópera de todos os tempos, mas nenhum constrói tão bem um personagem como Giuseppe Verdi. Ele realmente pensa o personagem com uma palheta de cores que você pode escolher de que maneira vai pintá-lo. Verdi não deixa nenhuma de suas criações sem personalidade. Em termos de teatralidade, ele e Shakespeare são imbatíveis, na minha opinião.”
De acordo com o regente, La traviata é sobre o próprio Verdi. Viúvo, ele se uniu à cantora Giuseppina Strepponi, que era mãe solteira, e foi uma pessoa que sofreu muito preconceito na época, assim como Violetta. “Artista e ainda com filhos e sem se casar era considerada praticamente uma prostituta. Eles sofreram muito com o desprezo da sociedade por causa desse relacionamento. O próprio nome La traviata significa 'a transviada', 'aquela que não encontrou o caminho certo, que mudou de rumo”, esclarece.
O tenor Fernando Portari, que neste ano completa 30 anos de carreira, afirma que em pelo menos 15 ocasiões já interpretou o mesmo personagem nessa ópera. “Já fiz o Alfredo em montagens não só no Brasil, como na Itália, nos Estados Unidos, no Japão e na Alemanha. Cada sociedade, cada teatro tem uma abordagem e uma estética diferentes. Mas é um personagem tão vivo que você vai perdendo todos os estereótipos e vai construindo uma coisa sua, muito própria. E, claro, sem perder os quase 150 anos que esta história tem.”
A superprodução conta ainda com os solistas Juliana Taino (Flora Bervoix), Fabíola Protzner (Annina); Thiago Soares (Gastone), Pedro Vianna (Barão Douphol), Cristiano Rocha (Marquês d’Obigny), Mauro Chantal (Dottore Grenvil), Lucas Damasceno (Giuseppe) e Thiago Roussin (Mordomo de Flora e Mensageiro). Além da Orquestra Sinfônica, La Traviata reúne o Coral Lírico de Minas Gerais e a Cia. de Dança do Palácio das Artes. São aproximadamente 200 profissionais envolvidos, trabalhando no palco e nos bastidores.
Inclusão
Na récita da próxima terça (22), a Fundação Clóvis Salgado vai estrear uma novidade em suas produções. Deficientes visuais poderão contar com o recurso da audiodescrição. Estão reservados 45 ingressos com essa ferramenta. Eles estão à venda somente na bilheteria do Palácio das Artes. A audiodescritora Anita Resende e sua equipe serão os responsáveis pelo desafio e pretendem fazer uma descrição bem detalhada do cenário e dos figurinos, além da movimentação dos artistas em cena para que os usuários do serviço possam apreciar a riqueza da montagem.
La traviata
Ópera de Giuseppe Verdi. Nesta sexta (18), na terça (22) e na quinta (24), às 20h. Domingo (20), às 19h, no Grande Teatro do Palácio das Artes –
Av. Afonso Pena, 1.537, Centro. (31) 3236-7400. Restam ingressos apenas para o dia 24. Ingressos: R$ 60 e R$ 30 (meia), à venda na bilheteria e pelo site Ingresso Rápido.