EXECUTIVO X LEGISLATIVO

Os confrontos cada vez mais acirrados entre vereadores da capital mineira e o prefeito Alexandre Kalil (PSD) alcançaram marcas inéditas na relação entre os dois Poderes em Belo Horizonte.

Levantamento de O TEMPO sobre os últimos 30 anos aponta que os conflitos entre Legislativo e Executivo foram menores nas gestões dos ex-prefeitos Eduardo Azeredo (PSDB), Patrus Ananias (PT), Célio de Castro (PSB), Fernando Pimentel (PT) e Marcio Lacerda (PSB).

A reportagem ouviu ex-vereadores e parlamentares atuais para analisar os motivos da escalada na tensão. Opositores citam o “estilo agressivo” de Kalil como obstáculo para uma boa relação. Já aliados dizem que o “jogo político de 2022” é o principal fator que influencia a crise atual. 

CPIs


Na semana passada, Kalil foi alvo de dois pedidos de indiciamento em relatórios aprovados pelas CPIs da BHTrans e da Covid-19, sendo apontado como autor de crimes como prevaricação, peculato (desvio de verbas públicas) e improbidade administrativa. 

O principal tema que gerou questionamentos das duas comissões foi um contrato da Prefeitura BH que antecipou R$ 220 milhões às empresas de ônibus na compra de vale-transporte e repasses. A prefeitura nega que houve irregularidades e diz que o dinheiro será devolvido aos cofres públicos. 

“Nunca vi algo assim. Nunca houve uma relação perto disso que está acontecendo agora”, reclamou o líder do governo na Câmara, vereador Léo Burguês (PSL), horas após o relatório da segunda CPI ser votado. “A Casa tinha tido apenas duas CPIs nas últimas três ou quatro décadas, agora são quatro CPIs em menos de um ano. Na CPI da Covid tivemos um relatório que foi votado sem que os membros tivessem tempo de ler o texto”, afirma Burguês, que foi presidente da Câmara entre 2011 e 2014. 

Os vereadores que participaram das CPIs rebatem a análise do líder de governo e apontam várias irregularidades que vieram à tona durante os trabalhos das comissões.

“Houve uma ilegalidade clara no repasse às empresas de ônibus. Deveria ter sido feito mediante lei, o que não aconteceu. Não se dá dinheiro público assim para empresas privadas”, afirma Nikolas Ferreira (PRTB).

Escalada


No início do ano, após ter um projeto de empréstimo de R$ 900 milhões para obras contra enchentes na região de Venda Nova derrubado em votação na Câmara, o prefeito enviou um e-mail a seus secretários vetando que a equipe do primeiro escalão da prefeitura recebesse 13 parlamentares que votaram contra a prefeitura.

Os vereadores contrários cobravam mais detalhes sobre o empréstimo e consideravam o montante um “cheque em branco” para a prefeitura. O e-mail de Kalil aos secretários vazou para os vereadores e causou grande insatisfação. 

Em maio deste ano, durante uma reunião da Casa, Kalil e Ferreira trocaram ataques e alfinetadas, com o prefeito dizendo que “braveza de garoto se responde é com palmada”, ironizando o vereador.

A relação com parte dos parlamentares se deteriorou cada vez mais desde então. No mês passado, o prefeito cobrou “postura e compostura” dos vereadores após a CPI da Covid tornar públicos áudios de Alberto Lage, ex-chefe de gabinete do Kalil, em conversas com ele.

Ex-aliado de Kalil na campanha de 2016, o vereador Gabriel Azevedo (sem partido) presidiu a CPI da BHTrans e se tornou um dos principais opositores da PBH.

“Ele não quer cuidar da cidade. Ele vai abandonar a cidade. Ao se eleger, disse que iria abrir a caixa-preta da BHTrans. Não abriu. Ao se eleger, disse que iria acabar com os penduricalhos. Utiliza-se deles. Ao se eleger, disse que BH passaria a ter prefeito. Ele não será mais em apenas cerca de um quadrimestre. Quem ele pretende enganar?”, questiona.

O vereador Pedro Patrus (PT) avalia que houve uma “antecipação das disputas eleitorais”, mas considera legítimo o trabalho das CPIs.

“São instrumentos importantes, faz parte da nossa função fiscalizar. A questão da BHTrans, por exemplo, era mais do que necessária a CPI para apurar e revisar os contratos das empresas de ônibus. Já a CPI da Covid, percebo como uma comissão mais política”. 

Comparação com gestões anteriores 


Ex-vereadores da capital mineira consideram inédito o nível da crise atual e das recorrentes trocas de ofensas entre prefeito e parlamentares, o que é preocupante para a cidade. Há pouco menos de três décadas, o então prefeito Patrus Ananias e o então vereador Ronaldo Gontijo ocupavam lados opostos na política da capital mineira. Ao relembrar as disputas políticas dos anos 1990, porém, eles concordam que a relação era “bem mais respeitosa”.

“Fui vereador por seis mandatos e entrei, em 1993, como oposição. Era oposição ferrenha ao PT, e tivemos embates sobre alguns projetos, como, por exemplo, o do da escola plural. Mas nossa postura era mais voltada para o embate de ideias, não eram disputas que iriam para o pessoal”, conta Gontijo. 

Ex-prefeito de BH e hoje deputado federal, Patrus relembra as conversas com os adversários políticos e também considera os embates do passado mais saudáveis. “Tive uma relação muito boa com a Câmara, claro que com seus espaços de conflitos, mas sempre em busca do diálogo e uma relação respeitosa de escuta. Eu tinha um dia da semana só para receber os vereadores e as vereadoras. Sabia que era necessário ouvir suas demandas, tanto da base quanto de outros partidos”. 

Perfil


Para a ex-vereadora Luzia Ferreira, que presidiu a Câmara de BH entre 2009 e 2010, a relação entre Executivo e Legislativo depende da capacidade de diálogo e também do perfil do prefeito. 

“Acho que o perfil do prefeito acabou ajudando a criar conflitos com a atual Câmara. Temos um Parlamento fragmentado, o que dificulta a busca por consensos e a formação de bases sólidas, mas esse cenário já existe há bastante tempo. Além do estilo pessoal, Kalil foi eleito desdenhando da política, apontando como algo negativo, e acho que, após sua reeleição, passou a ter a sensação de que não precisaria dialogar com a Câmara”, analisa Luzia.

A reportagem procurou os ex-prefeitos Marcio Lacerda, Eduardo Azeredo e Fernando Pimentel para comentar as relações com a Câmara, mas não teve retorno.