Apesar das críticas em relação aos 'discretos' avanços do decreto de Bolsonaro para a compra de revólveres e pistolas pelo cidadão brasileiro, empresas nacionais e estrangeiras refazem as contas de lucros a partir das mudanças no mercado de armamentos
Como no jogo de guerra de tabuleiro, o lobby da indústria das armas venceu uma das mais importantes batalhas. Depois de longos 15 anos, os “mercadores da morte”, como são conhecidos na Esplanada os representantes das empresas de revólveres e pistolas, recuperaram um território perdido: o comércio de produtos de calibres leves para o cidadão. O decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro na terça-feira, porém, favorece apenas poucos jogadores nacionais. O maior lance de um mercado avaliado em cifras iniciais em R$ 12 bilhões está por vir: a autorização para que companhias estrangeiras vendam os armamentos em terras brasileiras.
119.484 armas
foram apreendidas em 2017, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública
A partir de entrevistas com representantes da indústria de armas nacionais e estrangeiras e cruzamentos de dados de pesquisas acadêmicas, o Correio revela o jogo dos bastidores de políticos e de lobistas que voltaram ao centro do tabuleiro depois da implantação do Estatuto do Desarmamento de 2003. A lei proibiu o porte de armas por civis, deixando apenas algumas brechas para necessidade comprovada. Há poucos dados confiáveis sobre o mercado de armas no Brasil, mas, com o estatuto, o país definitivamente deixou de ser atrativo, pois, além das regras mais rígidas, havia a proibição de importação, um monopólio que favorecia apenas duas empresas nacionais: a Taurus e a Imbel, uma estatal brasileira de baixo alcance em relação aos jogadores estrangeiros.
13.782 armas legais
foram perdidas, extraviadas ou roubadas em 2017, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública
Números levantados pelo Correio na Pesquisa Industrial Anual (PIA), do IBGE, mostram que entre 2010 e 2014 os lucros das empresas de armas e munições brasileiras mantiveram um patamar de R$ 350 milhões em vendas, incluindo na conta a Taurus, a Imbel e a CBC, uma empresa de cartuchos. O último levantamento da PIA, de 2015, não apresenta números, por causa do risco de exposição estratégica da indústria nacional. A CBC comprou a Taurus em 2014 — em um negócio avaliado na época em R$ 121 milhões — formando uma única empresa e deixando o país com apenas duas indústrias, incluindo a Imbel. Se a Taurus chegou a ter desempenhos positivos até o início dos anos 2000, inclusive com exportações para outros países, hoje passa por uma crise de imagem entre consumidores civis e agentes de segurança por causa de defeitos detectados em determinados tipo de pistola.
Temer
Engana-se quem pensa que as mudanças e a animação do mercado iniciaram no momento que Bolsonaro e os aliados simularam arminhas com as mãos durante a campanha presidencial do ano passado. Uma movimentação silenciosa ante o forte monopólio da Taurus/CBC começou ainda em 2017, no governo Michel Temer. Primeiro pelas licitações abertas pelas forças de segurança no Brasil, que abriram o mercado a empresas estrangeiras. Depois, pela autorização para que uma fábrica de munições, a suíça Ruag Indústria e Comércio Ltda. se instalasse no Brasil, quebrando um monopólio de quase 90 anos da indústria brasileira — voltamos a essa história em instantes. No primeiro caso, a austríaca Glock conseguiu as principais vendas naquele período com a Polícia Rodoviária Federal (PRF) que comprou 10 mil pistolas para serem usadas pelos agentes da corporação ao custo de R$ 18 milhões.
O edital da PRF, que chegou a ser questionado, revelou os bastidores da disputa bilionária pelo mercado de armas no Brasil. A audiência realizada pela corporação no dia 18 de outubro de 2017, em Brasília, que contou com a participação de oito empresas, duas nacionais e seis estrangeiras, em busca de um nicho comercial com números iniciais na casa dos R$ 2,5 bilhões, referentes ao universo de integrantes das forças de segurança no Brasil. Durante uma das reuniões, em que o Correio teve acesso à ata, compareceram representantes da Taurus, Imbel, Glock, Israel Weapon Industries (Israel), Beretta (Itália), Smith & Wesson (EUA), Sig Sauer (Alemanha) e CZ (Checa) — leia quadro na página 3. Os prepostos das companhias multinacionais eram, na maioria, militares da reserva das Forças Armadas ou policiais brasileiros, que, habitués do universo do lobby de armas, se movimentam com facilidade entre os chefes da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC), ligada ao Exército, e que funciona como uma agência reguladora de armamentos leves e pesados.
O próprio Exército passa a ser agora o centro das atenções por causa da pressão das empresas estrangeiras para que o mercado brasileiro se abra às importações, pois um ponto no regulamento em vigor as proíbem, caso existam produtos similares fabricados em território nacional. Em postagem no Twitter na última quinta-feira, Bolsonaro escreveu: “Após voltarmos de Davos, continuaremos conversando com os ministros, para que juntos, evoluamos nos anseios dos CACs (colecionadores, atiradores e caçadores), porte, monopólio e variações sobre o assunto, além de modificações pertinentes ao Congresso, como redução da idade mínima! O trabalho não pode parar!” Ao se referir ao monopólio, as empresas estrangeiras entenderam como abertura para importação. O presidente volta de Davos na próxima sexta-feira.
Espera
“As empresas estão em compasso de espera, pois o decreto não fala de importação ou mesmo instalação de fábricas no Brasil”, afirma Maria Vasconcelos, CEO da Ruag do Brasil e protagonista da novela que, no final, autoriza a quebra do monopólio das munições do país. A chancela para que a empresa instalasse uma fábrica no país em Pernambuco veio depois de nove anos. O processo está interrompido desde da autorização, mas a Ruag chegou a anunciar investimentos R$ 75 milhões. A depender da sofisticação, modelos e calibres, a instalação de uma fábrica de armamentos pode quadruplicar esse valor. A questão é avaliar se vale a pena o investimento caso a política para a abertura da importação seja atraente para as estrangeiras, que por ora, como se viu, brigam pelas licitações nas forças públicas de segurança.
A própria Glock, por exemplo, atua no mercado brasileiro por meio de licitação desde 2005, quando vendeu um lote de cinco mil armas para a Polícia Federal por R$ 5,1 milhões na época. Desde então, passou a angariar contratos e quebrar o monopólio da Taurus em negócios com órgãos do setor público. Além da PF e da PRF, vendeu para as PMs do Paraná (R$ 1.3 milhão), do Distrito Federal (R$ 410 mil) e do Rio (R$ 715 mil). A transação mais recente da Glock com o poder público ocorreu em maio do ano passado. Na ocasião, o Senado dispensou licitação para a compra de 100 pistolas calibre .40, modelos G-23 e G-4, para uso pelos policiais legislativos da Secretaria de Polícia do órgão. Apesar do avanço da Glock, ela não tem exclusividade entre as corporações brasileiras. No fim do ano passado, a PM de Goiás fez a aquisição de 2,1 mil pistolas da empresa norte-americana Sig Sauer no valor de R$ 3,4 milhões.
Com Bolsonaro no poder, a expectativa dos “mercadores da morte” é de ganhos com a venda de armas depois de um longo período de seca, quando a Taurus e empresas estrangeiras usaram todos os tipos de estratégias de relações governamentais para conseguir a derrubada do Estatuto do Desarmamento, como financiamento de campanhas até patrocínios de viagens para países estrangeiros. O acesso a partir de agora, esperam, será mais fácil e corrente.
Entenda os valores
Para chegar ao potencial do mercado brasileiro, o Correio fez uma análise de dados disponíveis sobre a produção de armas (nacionais e importadas) e clientes em potencial identificados no cadastro de motoristas habilitados — que passam por teste psicotécnico — e estão livres de condenações ou processos criminais, verificados em levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Além disso, foram consideradas pesquisas de opinião feitas nos últimos cinco anos. A reportagem chegou, assim, a uma conta conservadora de 6 milhões de pessoas (algo em torno de 5% da população com mais de 25 anos) dispostas a ter uma arma em casa. A conta seguinte foi multiplicar eventuais consumidores com o preço médio de um revólver calibre .38, cerca de R$ 2 mil. Os valores podem ser maiores, considerando o fato de que cada cidadão poderá adquirir até quatro armas, e uma pistola calibre .380 custa no mínimo R$ 4 mil. Os números são uma expectativa a partir das regras definidas pelo decreto que flexibiliza a posse de armas, e foram confrontados junto a representantes de empresas nacionais e estrangeiras de armas. Nos Estados Unidos, para efeito de comparação, 30% da população adulta possuem armas, segundo pesquisa do Pew Research Center, de 2017.