No Rio, prática de cobrar "pedágio" de lotados em gabinete é segredo de polichinelo. Ex-assessor de Flávio Bolsonaro diz que transferia dinheiro a Queiroz para investiment

Rio de Janeiro

Murais com paisagens campestres pintados em 1926 pelo mineiro Genesco Lages Murta dão cores às paredes da agência bancária 6171, no térreo da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Lá só se chega vencendo uma barreira de seguranças que vetam o acesso a quem não trabalha na Casa, localizada no Palácio Tiradentes, no centro do Rio. Seria mais uma unidade qualquer do Itaú em um edifício público, mas a rotina foi modificada desde que a agência se transformou num foco de interesse nacional. O motivo é o escândalo envolvendo as movimentações financeiras suspeitas de dezenas de deputados e servidores da Alerj, entre elas as do senador Flávio Bolsonaro e de seu ex-assessor Fabrício Queiroz.

Na semana que passou, um primeiro envolvido nas transferências atípicas registradas em nome de Queiroz finalmente depôs ao Ministério Público do Rio - tanto o ex-assessor como o filho primogênito do presidente da República têm faltado às convocatórias das autoridades. Agostinho Moraes da Silva admitiu que destinava, mês a mês, cerca de dois terços de seu salário na Alerj para Queiroz, segundo revelou o G1. De acordo com Silva, o ex-assessor de Flávio investia a soma na venda de carros e o devolvia em espécie o valor corrigido. Queiroz diz o mesmo, que investia na compra e venda de automóveis, para explicar a movimentação de 1,2 milhão de reais entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, considerada incompatível com seus rendimentos.

Para os investigadores, as explicações até agora não são suficientes e, aliadas às informações de que parte dos servidores do gabinete não batiam ponto, alimenta a hipótese de que haveria a chamada "caixinha", "cota", "rachadinha" ou "Rachid". Estes são os nomes que circulam nos corredores do Palácio Tiradentes para nomear uma prática que é um segredo de polichinelo no local: a devolução de parte dos salários dos servidores comissionados da Alerj aos seus contratadores.

No caso de Queiroz, que também foi policial militar enquanto assessorava os Bolsonaro, mais da metade dos depósitos feitos em espécie em sua conta era feito até três dias após o dia de pagamento da Alerj, o que reforça suspeita da partilha dos salários. As movimentações eram quase sempre nos dois caixas eletrônicos do Itaú do Palácio Tiradentes. Também foi num desses caixas que a conta de Flávio Bolsonaro recebeu 96.000 em 48 depósitos no valor de 2.000 cada. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) rastreou as operações como suspeitas por julgar que a prática de aportes fracionados pode ser uma tentativa de ocultar a origem do dinheiro. O senador Flávio nega que o recurso venha do "Rachid". Segundo ele, os depósitos são fruto de uma venda de imóvel e foram feitos na própria agência da Alerj para economizar tempo.

"A gente escuta falar"

O gabinete de Flávio é um dos 27 pertencentes a deputados e ex-deputados da Alerj na mira do MP, que investiga também 75 assessores sobre o mesmo tema: acredita que os funcionários possam ter devolvido parte dos salários. Um servidor de um dos parlamentares suspeitos confirmou que repassa cerca de 1.000 por mês desde que ele começou a trabalhar no gabinete do parlamentar em questão, com quem diz ter uma relação muito próxima. “Não sei o que é feito com o dinheiro. Não vai para o deputado. Isso posso garantir. A justificativa é que nosso salário atende às necessidades do mandato. É raro recusarem o trabalho por causa disso”, afirmou ao EL PAÍS.

Outra ex-funcionária da Alerj, que também falou sob anonimato, disse que a prática do "Rachid" era indiscriminada há alguns anos. Tanto que ela se acostumou a ver até mesmo deputados e funcionários, em dia de pagamento, indo à agência dos fundos do palácio com dezenas de cartões bancários dos servidores obrigados a devolver parte do salário. Ela afirma que eles faziam os saques e depósitos na boca do caixa, até que o então gerente da agência decidiu mudar as normas. "Os deputados iam sem constrangimento com cartões dos seus funcionários e ficava aquela fila enorme."

“No meu gabinete não existe, não tem possibilidade de ter, mas a gente escuta falar”, disse ao EL PAÍS em janeiro o petista André Ceciliano, ratificado presidente da Alerj. De todos os 27 gabinetes de 13 partidos que constam na lista do Coaf (Avante, DEM, MDB, PDT, PHS, PRB, PSB, PSC, PSDB, PSL, PSOL, PT e SD) que gerou as investigações, o de André Ceciliano foi o que movimentou as transações suspeitas mais altas: 49,31 milhões de reais. “Falaram em quatro nomes no meu gabinete, mas são duas servidoras. Falar de 40 milhões de reais... Eu até brinquei que ia desmoralizar o gabinete do Flávio”, diverte-se. O presidente da Alerj afirma ter solicitado explicações das servidoras e ofereceu aos promotores a quebra de seus sigilos fiscal, bancário e telefônico. Também diz ter remetido ao MP cinco anos de declarações de imposto de renda das servidoras.

O "orçamento" nas mãos dos deputados

Apesar de todos os comentários, não há nenhum caso de “caixinha” ou "Rachid" sendo investigado pela Corregedoria da Casa. Segundo a assessoria da Alerj, “houve, em 2014, uma investigação da sobre denúncias de apropriação de parte dos salários de funcionários da então deputada Janira Rocha (PSOL), mas a legislatura terminou antes da conclusão do processo, que perdeu o objeto”.

Para Daniel Sarmento, professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), trata-se de uma “evidente violação de princípios constitucionais como a moralidade administrativa, impessoalidade e o próprio princípio republicano. Permite-se com isso a apropriação pelos ‘donos do poder’ de recursos públicos. É hipótese de improbidade administrativa”. Já o advogado Glauco André Fonseca Wamburg diz que era comum que servidores em gabinetes políticos contribuíssem regularmente para os partidos, numa “praxe histórica relacionada ao próprio custeio partidário, para que houvesse recursos para os gastos dos partidos políticos”. Mas o formato que está sendo investigado na Alerj, continua, é diferente. “São parlamentares sendo beneficiados de forma direta por cotas direcionadas àqueles sobre os quais eles têm autoridade de nomear e desnomear. Para além de uma questão moral, mora um problema legal."

Os valores milionários investigados agora não chegam a causar espanto porque cada um dos 70 deputados estaduais do Rio recebe de salário bruto 25.300 reais, que equivalem a um líquido de 18.000 reais mensais. Todos têm direito a um batalhão de 63 assessores, sendo três concursados e 60 comissionados. Antes, eram apenas 20 possíveis contratados no total, mas a Alerj decidiu desmembrar os salários mais altos para aumentar o efetivo, o que acabou triplicando o número de servidores.

Os defensores da mudança argumentam que o teto a que tem direito cada gabinete para pagamento dos salários – 170.000 reais mensais – continua igual, mas uma análise mais detalhada aponta aumento no total de gastos, porque há mais pagamento de benefícios, como a bolsa reforço escolar, no valor de 1.193,36 reais para cada dependente de servidor (dois no máximo), e a bolsa alimentação, no valor de 60 reais por dia para cada funcionário, a que todos têm direito. Apenas de bolsa escolar, com 3.224 benefícios custeados segundo o portal da transparência da Casa, o custo é de quase 3,9 milhões por mês. A Alerj tem, no total, 5.500 servidores, sendo 1274 concursados e 4226 comissionados.

Para aplacar as críticas, Ceciliano informa que a mesa diretora decidiu que, para a nova legislatura, cada deputado poderá ter 40 assessores no máximo, em vez dos 63 atuais – deputados reeleitos terão até abril para se ajustar.