Preocupado com a disparada de mortes por Covid19 no Brasil e o colapso hospitalar em vários estados, apontando para uma tragédia de grandes proporções, o ex-presidente Lula diz que está na hora de adoção do “isolamento social obrigatório”, antes que seja tarde. Ele não gosta do anglicismo “lock down” mas tem defendido a adoção da medida mais rigorosa, que impõe multa aos transgressores,  junto aos governadores com quem dialoga. Segue em linha diametralmente oposta à de Bolsonaro , que nesta quinta-feira levou empresários ao STF para advogarem a reabertura das atividades econômicas no momento crítico da pandemia.   Pará e Maranhão já adotaram parcialmente o isolamento radical.

Mas Lula está refletindo, em seu isolamento, principalmente sobre o mundo pós-pandemia,  o tipo de capitalismo que haverá e como deverá a esquerda reagir a uma realidade onde faltarão cada vez mais empregos, por força da automatização tecnológica. Ele começou a falar disso na entrevista de quarta-feira, a mim e a Helena Chagas, no programa Observatório da Coronacrise, da Fundação Perseu Abramo. Ontem voltamos a conversar e ele avançou em reflexões que, por questão de tempo, não chegou a concluir.

- A primeira evidência é a de que não sairemos da crise, nem da sanitária nem da econômica, sem um papel ativo do Estado. Acabou a conversa de que o mercado resolve tudo. O vírus acabou com ela. Mas continuaremos vivendo num mundo em que as tecnologias continuarão acabando com os empregos.  Você já viu uma modernização tecnológica que não acabe com emprego?  Ninguém é contra a tecnologia, é muito bom pagar contas pelo aplicativo, é muito bom fazer compras pela Internet,  mas tudo isso acaba com empregos. E como existirão cada vez mais pessoas sempre emprego,  devemos abraçar a proposta do Suplicy e lutar pela criação da uma renda mínima universal. Teremos que lutar pela garantia de um mínimo para as pessoas sobreviverem. E podemos começar tornando permanente o socorro emergencial para o período da pandemia.  Que pelo governo, lembro de novo, queria que fosse de R$ 200, a oposição propôs R$ 500 e o Bolsonaro, para não ficar para trás, entrou com R$ 600.

Lula diz estar lendo muito, principalmente sobre a escravidão no Brasil.

- E com isso estou constatando o quanto a herança da escravidão está viva no Brasil, estou entendendo porque temos uma elite tão perversa. Durante esta pandemia, estamos vendo isso. Empresários querem abertura de empresas porque não serão eles, mas seus empregados, que de algum modo consideram escravos, que irão se expor à doença e morrer.


Ele acha que a esquerda terá de rever muitas posições do passado.

- O “estado de bem estar social” em países capitalistas, principalmente na Europa, foi uma conquista dos trabalhadores mas foi também uma concessão do capitalismo para conter o avanço do socialismo depois da revolução russa e da revolução chinesa. Mas para a esquerda dita revolucionária, era uma ofensa chamara alguém de social-democrata.  Depois veio este capitalismo financeirizado que está acabando com os direitos trabalhistas e com o “estado de bem estar social”, liquidando com todas as conquistas e,  o que é pior, liquidando com os empregos.  Para que outro mundo seja possível, e há de ser, teremos que inventar novas formas de luta. Teremos inclusive que brigar muito com o Estado, para garantir novas formas de bem estar social, e podemos começar pela renda básica universal.

O Brasil viverá uma profunda depressão econômica, num cenário adverso para todos os países.  Estudo da UFRJ apontou esta semana um tombo de 11% no PIB e a perda de quase 15 mil empregos, foram os 13 milhões de desempregados. Para Lula, ou o governo atual entenderá que sua agenda neoliberal não tem mais lugar, nem levará a  qualquer recuperação, e coloca o Estado na linha de frente, fazendo investimentos e parcerias,  e socorrendo os mais vulneráveis, ou serão tempos muito difíceis e socialmente imprevisíveis.


Independentemente da pandemia, o problema da automação que suprime empregos incomoda particularmente Lula como um desafio que a esquerda precisa enfrentar.

- Quando eu fui trabalhar na Villares, com 20 anos de idade, eu sonhava que um dia deixaria de ser empregado, com carteira assinada, para ter um negócio próprio. Achava que ficaria livre de patrão.  Mas eram outros tempos. Hoje chamam de empreendorismo o sub-emprego,  o trabalho precário, a vida de motorista de uber,  de entregador de comida, de vendedor ambulante.  Pensávamos que a Internet seria livre mas agora vemos que quatro grandes corporações, controladas por quatro dos homens mais ricos do mundo, comandam a Internet. Muita gente, inclusive muitos jornalistas, achavam que iam ganhar dinheiro na Internet, mas quem ganha de fato são os quatro grandes controladores da rede.  Para que outro mundo seja possível, e há de ser, teremos que enfrentar este problema da liquidação crescente dos empregos. Como vão viver os que forem descartados, os inempregáveis? Vão morrer de fome? Vão ser párias? Se as empresas não empregam, o Estado terá que lidar com isso.

Este é Lula, pensando em um novo mundo enquanto vive a quarentena de forma rigorosa em um apartamento, logo depois de ser libertado após 580 dias de prisão.  Neste momento ele está lendo “1822”, de Laurentino Gomes,  mas tem livros na fila, para manter a forma mental. E a forma física ele mantém fazendo exercícios no apartamento mesmo, de onde faz lives e fala com os filhos e com os interlocutores políticos.

Na entrevista de quarta, ele disse pela segunda vez que não pretende ser candidato as presidente, terá 77 anos em 2022, que se contentará em ser um cabo eleitoral.  Este anúncio pode reduzir a obsessão das elites e da direita por Lula. Seja como for, seja qual for o seu papel, ele com clareza, lucidez e disposição.

*Colunista/comentarista do Brasil247, fundadora e ex-presidente da EBC/TV Brasil, ex-colunista de O Globo, JB, Correio Braziliense, RedeTV e outros veículos.