Ao longo da campanha — incluindo aí eventos de rua e o período que passou no hospital —, o então candidato Jair Bolsonaro (PSL) mimetizava, com as mãos, o uso de uma arma de fogo. O gesto foi repetido por eleitores e políticos do partido à exaustão, como um símbolo contrário ao Estatuto do Desarmamento. O que parecia óbvio que ocorresse acabou confirmado pelo agora presidente. Mas de maneira ainda mais radical. O Decreto nº 9.785, que regulamenta a posse, o porte e o comércio de armamentos, é mais amplo do que imaginavam até mesmo os apoiadores do capitão reformado. As regras publicadas no texto amplificam de maneira exponencial o mercado de revólveres, pistolas e munições, confirmando autorizações para 20 milhões de brasileiros. O resultado, caso a medida não seja derrubada pelo Judiciário, mostra que o lobby da indústria da morte venceu e ganhou um filão de R$ 20 bilhões, em números conservadores. Para se ter uma ideia da euforia da indústria, as ações da fabricante brasileira Taurus dispararam e, às 15h15, os papéis apontavam para uma alta de 19,19%.
Os números do tamanho do mercado identificado pelo Correio têm como base a quantidade de integrantes das categorias incluídas no decreto de Bolsonaro e o preço médio de um revólver .38: cerca de R$ 2 mil. A medida do governo federal inclui entre as pessoas autorizadas a comprar arma políticos, agentes penitenciários e de trânsito, advogados, jornalistas (que trabalhem na cobertura policial), caminhoneiros e residentes em áreas rurais. Esse último contingente, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), chega a quase 15 milhões de pessoas maiores de 25 anos — uma das exigências para o porte. Segundo a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o número de profissionais em atuação chega a 1,1 milhão. Atualmente, levando em conta o contingente das Forças Armadas, da Polícia Militar dos estados, da Polícia Civil, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, de vigilantes de empresas privadas e guardas-civis estaduais, o Brasil possui um mercado aberto para a aquisição de 1,4 milhão de armas. Somente a Polícia Militar conta com 421 mil homens — 220 mil militares compõem as fileiras do Exército, e 118 mil, as polícias civis. Com as demais categorias, o número de pessoas aptas a comprar uma arma ultrapassaria 20 milhões.
Ontem, entidades de defesa de direitos humanos e especialistas em segurança se pronunciaram contra a medida, inclusive com a promessa de recorrer ao Supremo Tribunal Federal. O detalhe é que até quem é a favor da liberação se assustou com o teor do texto. Nos grupos de WhatsApp, delegados da Polícia Federal se disseram indignados com a medida. Na terça-feira, interlocutores do Planalto tentaram restringir o decreto. O lobby do setor de armamentos, porém, venceu de maneira inquestionável. “Abriram geral. Agora, pistolas, antes de uso restrito, passaram a ser permitidos (.9mm, .40), algumas carabinas de uso restrito poderão se enquadrar em uso permitido, e só vão segurar as armas automáticas e mais potentes”, escreveu um delegado da PF.
A questão é que o texto, segundo especialistas, invade a área do Legislativo e deve ser questionado em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). “O decreto tem enorme potencial de piorar a já grave situação da segurança pública no país. Por meio de um ato ilegal, que invade competências do Poder Legislativo, o presidente alterou muitos pontos das atuais regras de controle de armas”, reclamou, em nota, o Instituto Sou da Paz.
Lobistas
O decreto também multiplica por 100 o número de munições para civis, que hoje é de 50. Antes, a Polícia Federal avaliava a necessidade de liberação do porte — a partir do texto, a corporação só poderá negar o porte se provar que as informações do consumidor não são verdadeiras. Na prática, a tendência é de um aumento inevitável no mercado. Lobistas de empresas de armas estrangeiras que já atuam no Brasil se preparam agora para quebrar de vez o monopólio da Taurus, já capenga com licitações de corporações policiais.
O ex-secretário de Segurança do DF Arthur Trindade avalia que o decreto piora a situação da segurança pública no Brasil. “Essa lista amplia bastante o número de pessoas e tem dois grandes problemas. Primeiro: ao fazer isso, há uma alteração radical no Estatuto do Desarmamento. Eu tenho dúvidas de que esse nível de alteração possa ser feito por meio de decreto. E o segundo: faltam estudos que embasem a decisão”, diz. Ele aponta carência de fundamentos jurídicos e de uma avaliação de impacto. “Aumentam as chances de o cidadão sofrer uma morte violenta e alguns grupos são mais ameaçados: mulheres, com a violência doméstica; é suscetível a acidentes com crianças; suicídios; conflitos de trânsito.”
Trindade aponta consequências a médio prazo. “O número de armas extraviadas deve aumentar. Há uma grande ilusão de que as armas que existem na mão de criminosos são ilegais, mas quase todas foram adquiridas de forma lícita e, mais adiante, foram extraídas, passando para a mão de grupos criminosos”, ressalta.