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“O mais marcante desse almoço é que o Tancredo nos recebeu lá onde ele morava e escutou mais de 20 mulheres falarem, mulheres do Brasil inteiro. E, durante esse período em que a gente falava e ele teve a paciência de escutar, ele cochilava. Dava alguns cochilos e balançava a cabeça, nitidamente muito cansado. Mas, ao final da nossa fala, quando ele foi usar da palavra, parecia que tinha registrado ou anotado todos os aspectos centrais da nossa fala. Ele fez um discurso muito bonito e, praticamente assumindo o compromisso central que era levar a política pública para as mulheres, que ele tinha iniciado aqui (em Minas Gerais) com a criação do Conselho Estadual da Mulher”.
É assim que a ex-deputada Jô Moraes (PCdoB) descreve um almoço de mulheres com o então governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, ocorrido há exatamente 36 anos. Em 9 de agosto de 1984,cerca de 40 mulheres de todo o país foram recebidas no Palácio das Mangabeiras, em Belo Horizonte, para apresentarem suas reivindicações ao então pré-candidato à Presidência da República, na primeira eleição, ainda que indireta, desde o início da ditadura militar no Brasil. O encontro foi o “embrião” da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, entregue três anos depois e que garantiu vários direitos às mulheres na Carta Magna.
O encontro das mulheres foi noticiado no dia seguinte pelo "Jornal do Brasil" que trazia uma matéria com o título “Governador promete a feminista criar o Ministério da Mulher” e também pelo jornal "O Globo": “Tancredo promete Ministério para a defesa da mulher”. Conforme as reportagens, Tancredo Neves agradeceu o apoio das mulheres e, em troca, prometeu que, se eleito fosse, criaria o Ministério para Assuntos da Mulher ou Ministério dos Assuntos Femininos, "porque a luta das mulheres pela sua emancipação ainda tem muitas etapas a serem vencidas". Na ocasião, além de Jô Moraes, também participaram do encontro figuras conhecidas nacionalmente como as deputadas Júnia Marise, Ruth Escobar e Vera Coutinho, todas do PMDB, a atriz Tônia Carrero e a advogada Sônia Pimentel.
Empresária e uma das líderes do setor de mulheres empreendedoras na capital mineira, a ex-deputada Maria Elvira Salles Ferreira também esteve no almoço com Tancredo e conta que essa experiência rendeu, posteriormente, a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e também foi o que a levou definitivamente para a política. “Eu me considero, desculpe a pretensão, um pouco fundadora porque já tinha participado do esforço para criar o Conselho Estadual da Mulher”. Maria Elvira se candidatou pela primeira vez em 1986 e foi eleita deputada estadual, atuando como constituinte mineira.
A ex-vereadora de Belo Horizonte, Luzia Ferreira (Cidadania), também participou do encontro e se lembra que aquele foi o pontapé inicial de uma luta que foi consagrada com a inclusão de direitos da mulheres na Constituição de 1988. “Foi na campanha dele para presidente que nós nos organizamos nacionalmente”, lembra.
Compromisso com as mulheres começou na campanha ao governo de Minas
Luzia conta que Tancredo Neves era uma grande aposta das mulheres porque, no ano anterior, criou o Conselho Estadual da Mulher em Minas Gerais, o primeiro do país. “Esse foi um compromisso do Tancredo durante sua campanha para governador, e essa foi a primeira vez que teve uma campanha teve um comitê feminino organizado e que tinha suas reivindicações próprias para uma programa de governo”, relembra.
Jô também se recorda da campanha de Tancredo a governador onde, segundo ela, tudo teve início. “O comitê feminino da campanha contava com a presença das principais lideranças de mulheres da época, e o panfleto no qual a gente colocou nossas propostas, eu nunca esqueço, se chamava ‘A Mulher Que Eu Amo é Um Povo Em Liberdade’. Essa era a marca da nossa organização na campanha de governo dele”, conta.
Tanto Luzia quanto Jô e Maria Elvira participaram da criação do Conselho Estadual da Mulher, oficialmente instituído pelo Decreto 22.971 de 24 de agosto de 1983, conforme registrado no livro “Mulheres de Minas: Lutas e Conquistas - Conselho Estadual da Mulher - 25 Anos”, escrito por Constância Lima Duarte, Dinorah Carmo e Jalmelice Luz em 2008 e produzido pela Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais.
Foi a partir do Conselho Estadual e do compromisso público de Tancredo Neves em almoço com mais de 40 lideranças femininas em 1984, que as mulheres conquistaram no ano seguinte o Conselho Nacional de Direitos da Mulher. No entanto, ele foi criado pelas mãos do então presidente José Sarney, uma vez que Tancredo morreu antes da posse como presidente do Brasil. “Assim (com a criação do Conselho Nacional), a gente poderia dar visibilidade e materializar um instrumento de construção de políticas públicas”, explica Jô.
Foto: Reprodução do livro "Tancredo Neves - Um Homem para o Brasil", editado pela Fundação Presidente Tancredo Neves em 2010
E também esse foi um passo fundamental para garantir a participação das mulheres na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 quando, já organizadas nacionalmente, produziram a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes. Esse documento, entregue a cada um dos constituintes, continha propostas redigidas durante o Encontro Nacional do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que ocorreu em 26 de agosto de 1986. As reivindicações iam desde "a plena igualdade entre os cônjuges no que diz respeito aos direitos e deveres quanto à direção da sociedade conjugal" ou a "criminalização de quaisquer atos que envolvam agressões físicas, psicológicas ou sexuais à mulher, fora e dentro do lar" até direitos que ainda hoje são objeto da luta feminina, como "salário igual para trabalho igual", "igualdade no acesso ao mercado profissional" e "licença ao pai no período natal e pós-natal".
“Éramos mulheres destemidas e que não aceitávamos esse papel secundário”
Se hoje as mulheres ainda enfrentam grandes desafios para se inserir na política - só 15% estão na Câmara ou Senado -, na década de 1980, a pauta era a garantia de direitos básicos. Luzia Ferreira era militante partidária do MDB e se recorda que, naquela época, havia uma grande euforia em razão do momento histórico do país, que havia eleito o primeiro governador civil em 20 anos e teria no ano seguinte a primeira eleição indireta para a Presidência. Nesse contexto é que as mulheres reivindicavam seus direitos e também a inclusão em políticas públicas.
“A gente queria ser uma cidadã plena porque, na época, ou seja, até a Constituição de 1988, a mulher na lei brasileira era considerada formalmente uma cidadã de segunda categoria. A gente tinha o pátrio poder que dava ao pai e ao marido de decidir sobre os filhos e sobre a esposa sem que a mulher, inclusive, fosse ouvida. Então, era uma tentativa de nos considerar como cidadãs plenas e que deviam ser incluídas nas decisões das políticas públicas no país, queríamos participar de todos os espaços de decisão”, disse Luzia. E emendou: “Éramos mulheres destemidas e que não aceitávamos esse papel secundário e que ia à luta para mudar essa situação e acho que conquistamos muitos, principalmente para as novas gerações que já nasceram em uma sociedade de mais direitos e respeito”.
Ainda segundo Luzia, o mercado de trabalho era muito hostil às mulheres na época e, o preconceito, grande. “Era muito difícil para uma mulher casada e com filho arrumar um emprego porque as pessoas consideravam que, se a mulher tinha filhos, poderia faltar mais ao trabalho, não tinha compromisso. A inserção da mulher no mercado de trabalho é algo muito recente, a gente era 12% naquela época”, conta Luzia.
Além disso, a ex-deputada relembra que também a capacidade da mulher para o trabalho e também para a política era questionada. “Profissionalmente ninguém acreditava que a mulher era capaz de exercer as mais diversas funções, e também na política ninguém acreditava que uma mulher pudesse ser uma deputada, uma senadora, uma governadora ou uma prefeita”.
Jô Moraes, que militava às escondidas no PCdoB à época - pois o partido ficou na clandestinidade durante a ditadura no Brasil - e atuava legalmente no MDB, lembra de pelo menos três temas que mobilizaram as mulheres à época. “Primeiro, a criação de políticas públicas voltadas para a mulher. Também a criação dos equipamentos de enfrentamento à violência, que vinha da própria delegacia [de mulheres] que ele tinha criado aqui. E uma política de atenção integral à saúde da mulher, que era uma discussão que a gente enfrentava no período, de uma ofensiva externa de tentativa de implantar um controle de natalidade e nós fazíamos contraposição a isso. Era preciso uma política pública, mas uma assistência integral à saúde da mulher. Era muito isso”, conta.
Maria Elvira, já como deputada constituinte por Minas, também se recorda das discussões que permeavam o país durante a redemocratização e que mobilizavam as mulheres na Assembleia de Minas. “As bandeiras eram muito semelhantes às bandeiras de hoje, que eu chamaria de ideológicas-culturais, que é a questão da valorização da mulher na sociedade e maior participação da mulher em todos os foros de decisão, a participação da mulher no Judiciário, Legislativo e Executivo. A gente já falava naquela época em cotas nos partidos e no Legislativo”, relembra.
Maria Elvira foi a relatora do capítulo da Constituição Mineira que trata da educação e foi quem propôs o ensino integral às crianças, o que também beneficiava as mulheres na medida em que permitia que elas trabalhassem fora. Mas, essas causas eram minimizadas pelos deputados homens da Casa. “A indiferença deles era muito grande. Olhavam para esses temas como de menor importância”, recorda-se.
Apesar das dificuldades do período, Jô Moraes acredita que luta travada pelas mulheres na década de 80 foi muito significativa para a garantia de direitos assegurados na Constituição e para o avanço de políticas públicas para o gênero. “A mulher só conquista direitos e visibilidade na política se houver dois fatores: um ambiente democrático e uma intensa mobilização. Como a candidatura do Tancredo era uma expressão da resistência democrática houve um espaço intenso de participação e debate das mulheres e nós fomos muito para as ruas. Houve muita mobilização e foi decisivo para avançarmos”, disse.
No entanto, todas elas são unânimes na análise de que ainda há muito para ser conquistado para que as mulheres estejam em pé de igualdade com os homens. “Ainda estamos muito longe do ideal. Hoje a gente percebe uma preocupação com a violência da mulher e há um debate maior sobre a participação feminina nos ambientes decisórios, mas ainda temos muito a avançar”, afirmou Maria Elvira.
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“O mais marcante desse almoço é que o Tancredo nos recebeu lá onde ele morava e escutou mais de 20 mulheres falarem, mulheres do Brasil inteiro. E, durante esse período em que a gente falava e ele teve a paciência de escutar, ele cochilava. Dava alguns cochilos e balançava a cabeça, nitidamente muito cansado. Mas, ao final da nossa fala, quando ele foi usar da palavra, parecia que tinha registrado ou anotado todos os aspectos centrais da nossa fala. Ele fez um discurso muito bonito e, praticamente assumindo o compromisso central que era levar a política pública para as mulheres, que ele tinha iniciado aqui (em Minas Gerais) com a criação do Conselho Estadual da Mulher”.
É assim que a ex-deputada Jô Moraes (PCdoB) descreve um almoço de mulheres com o então governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, ocorrido há exatamente 36 anos. Em 9 de agosto de 1984,cerca de 40 mulheres de todo o país foram recebidas no Palácio das Mangabeiras, em Belo Horizonte, para apresentarem suas reivindicações ao então pré-candidato à Presidência da República, na primeira eleição, ainda que indireta, desde o início da ditadura militar no Brasil. O encontro foi o “embrião” da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, entregue três anos depois e que garantiu vários direitos às mulheres na Carta Magna.
O encontro das mulheres foi noticiado no dia seguinte pelo "Jornal do Brasil" que trazia uma matéria com o título “Governador promete a feminista criar o Ministério da Mulher” e também pelo jornal "O Globo": “Tancredo promete Ministério para a defesa da mulher”. Conforme as reportagens, Tancredo Neves agradeceu o apoio das mulheres e, em troca, prometeu que, se eleito fosse, criaria o Ministério para Assuntos da Mulher ou Ministério dos Assuntos Femininos, "porque a luta das mulheres pela sua emancipação ainda tem muitas etapas a serem vencidas". Na ocasião, além de Jô Moraes, também participaram do encontro figuras conhecidas nacionalmente como as deputadas Júnia Marise, Ruth Escobar e Vera Coutinho, todas do PMDB, a atriz Tônia Carrero e a advogada Sônia Pimentel.
Empresária e uma das líderes do setor de mulheres empreendedoras na capital mineira, a ex-deputada Maria Elvira Salles Ferreira também esteve no almoço com Tancredo e conta que essa experiência rendeu, posteriormente, a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e também foi o que a levou definitivamente para a política. “Eu me considero, desculpe a pretensão, um pouco fundadora porque já tinha participado do esforço para criar o Conselho Estadual da Mulher”. Maria Elvira se candidatou pela primeira vez em 1986 e foi eleita deputada estadual, atuando como constituinte mineira.
A ex-vereadora de Belo Horizonte, Luzia Ferreira (Cidadania), também participou do encontro e se lembra que aquele foi o pontapé inicial de uma luta que foi consagrada com a inclusão de direitos da mulheres na Constituição de 1988. “Foi na campanha dele para presidente que nós nos organizamos nacionalmente”, lembra.
Compromisso com as mulheres começou na campanha ao governo de Minas
Luzia conta que Tancredo Neves era uma grande aposta das mulheres porque, no ano anterior, criou o Conselho Estadual da Mulher em Minas Gerais, o primeiro do país. “Esse foi um compromisso do Tancredo durante sua campanha para governador, e essa foi a primeira vez que teve uma campanha teve um comitê feminino organizado e que tinha suas reivindicações próprias para uma programa de governo”, relembra.
Jô também se recorda da campanha de Tancredo a governador onde, segundo ela, tudo teve início. “O comitê feminino da campanha contava com a presença das principais lideranças de mulheres da época, e o panfleto no qual a gente colocou nossas propostas, eu nunca esqueço, se chamava ‘A Mulher Que Eu Amo é Um Povo Em Liberdade’. Essa era a marca da nossa organização na campanha de governo dele”, conta.
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Foi a partir do Conselho Estadual e do compromisso público de Tancredo Neves em almoço com mais de 40 lideranças femininas em 1984, que as mulheres conquistaram no ano seguinte o Conselho Nacional de Direitos da Mulher. No entanto, ele foi criado pelas mãos do então presidente José Sarney, uma vez que Tancredo morreu antes da posse como presidente do Brasil. “Assim (com a criação do Conselho Nacional), a gente poderia dar visibilidade e materializar um instrumento de construção de políticas públicas”, explica Jô.
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E também esse foi um passo fundamental para garantir a participação das mulheres na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 quando, já organizadas nacionalmente, produziram a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes. Esse documento, entregue a cada um dos constituintes, continha propostas redigidas durante o Encontro Nacional do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que ocorreu em 26 de agosto de 1986. As reivindicações iam desde "a plena igualdade entre os cônjuges no que diz respeito aos direitos e deveres quanto à direção da sociedade conjugal" ou a "criminalização de quaisquer atos que envolvam agressões físicas, psicológicas ou sexuais à mulher, fora e dentro do lar" até direitos que ainda hoje são objeto da luta feminina, como "salário igual para trabalho igual", "igualdade no acesso ao mercado profissional" e "licença ao pai no período natal e pós-natal".
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Ainda segundo Luzia, o mercado de trabalho era muito hostil às mulheres na época e, o preconceito, grande. “Era muito difícil para uma mulher casada e com filho arrumar um emprego porque as pessoas consideravam que, se a mulher tinha filhos, poderia faltar mais ao trabalho, não tinha compromisso. A inserção da mulher no mercado de trabalho é algo muito recente, a gente era 12% naquela época”, conta Luzia.
Além disso, a ex-deputada relembra que também a capacidade da mulher para o trabalho e também para a política era questionada. “Profissionalmente ninguém acreditava que a mulher era capaz de exercer as mais diversas funções, e também na política ninguém acreditava que uma mulher pudesse ser uma deputada, uma senadora, uma governadora ou uma prefeita”.
Jô Moraes, que militava às escondidas no PCdoB à época - pois o partido ficou na clandestinidade durante a ditadura no Brasil - e atuava legalmente no MDB, lembra de pelo menos três temas que mobilizaram as mulheres à época. “Primeiro, a criação de políticas públicas voltadas para a mulher. Também a criação dos equipamentos de enfrentamento à violência, que vinha da própria delegacia [de mulheres] que ele tinha criado aqui. E uma política de atenção integral à saúde da mulher, que era uma discussão que a gente enfrentava no período, de uma ofensiva externa de tentativa de implantar um controle de natalidade e nós fazíamos contraposição a isso. Era preciso uma política pública, mas uma assistência integral à saúde da mulher. Era muito isso”, conta.
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