Entrevista Cármen Lúcia

Em desdobramento ao ataque às urnas eletrônicas, característico das campanhas de desinformação para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro, a “promessa” do voto impresso segue mobilizando bolhas de WhatsApp e alguns parlamentares no Congresso Nacional, como suposta solução para eleições mais seguras. Mas, na prática, o que ocorre é exatamente o contrário: o voto impresso quebra o sigilo do voto. No contexto das organizações criminosas, que dominam territórios, indicam candidaturas e financiam com dinheiro ilícito campanhas, se tornaria fonte de insegurança ao eleitor.

A avaliação é da presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Cármen Lúcia, em entrevista ao Estado de Minas. Reiterando que, independentemente de impressão do voto, o sistema eleitoral brasileiro é integro e as urnas eletrônicas são auditáveis e auditadas para a segurança do sistema e da manifestação da vontade do eleitor, Cármen Lúcia assinala: “O voto impresso pode ser instrumento de cobrança até mesmo de organizações criminosas, que injetam dinheiro ilícito em campanhas e exigem, pelo medo e pela pressão criminosa, comportamentos eleitorais específicos daqueles em suas áreas de atuação. A impressão do voto não traz segurança ao eleitor, mas insegurança ao eleitor e à sociedade”, declara.

O voto impresso traria também constrangimento a eleitores que, em alguns locais de trabalho, podem ser estimulados a votar nas candidaturas indicadas pelas empresas ou empresários. “Para se ter uma ideia, apenas em Minas Gerais, em 2024, foram abertos mais de 500 inquéritos contra empresas e empresários que exigiram dos seus empregados voto dirigido a alguém. Se esse eleitor ou essa eleitora tiver de mostrar a impressão, perde-se o sigilo do voto”, declara.

Assim como em 2022, para 2026, a Justiça Eleitoral se prepara para enfrentar mais campanhas de desinformação contra o sistema eleitoral brasileiro. “É problema central que não está resolvido. O combate à desinformação é uma questão prioritária do mundo contemporâneo, ao lado das questões climáticas e meio ambiente e das organizações criminosas. Esses são três temas de maior preocupação do Poder Judiciário brasileiro e de outros tribunais constitucionais de outros países”, declara.

Em sua avaliação, as campanhas de desinformação contra as urnas eletrônicas de 2022 vão se repetir em 2026 ou o problema está resolvido?

É problema central que não está resolvido. O combate à desinformação é uma questão prioritária do mundo contemporâneo, ao lado das questões climáticas e meio ambiente e das organizações criminosas. Esses são três temas de maior preocupação do Poder Judiciário brasileiro e de outros tribunais constitucionais de outros países.

A desinformação, conhecida como fake news, pelo abuso das tecnologias, é atualmente um dos maiores gravames da humanidade e o problema persiste no Brasil. A pessoa se deixa escravizar por telas, cujos algoritmos não são transparentes, não são gratuitos, alguém manipula e ganha vultosas somas com isso e com interesse de domínio. Se as pessoas votam com dados falsos, perdem um direito fundamental, que está em nossa Constituição e é uma conquista, que não é só de nossa Constituição, mas no mundo: o direito à informação verificada.

Pela rapidez com que circulam e se disseminam as informações falsas, com frequência não há tempo suficiente para se desmentir antes do pleito. Então, nas eleições de 2024 lutei contra cinco “vs” que as telas nos induzem: o volume e a velocidade com que chegam os dados impedem que a pessoa pense sobre cada mensagem que recebe ao longo do dia. O terceiro “v” é a variedade de informações e, o quarto, a viralidade. E o quinto v, que é inédito para a humanidade, é a verossimilhança.

Em desdobramento dessas campanhas de desinformação das urnas, a defesa do voto impresso retorna, inclusive, no Congresso Nacional, com argumentos disseminados em grupos de WhatsApp de certas bolhas políticas. Por que o voto impresso não torna a eleição mais segura do ponto de vista da vontade do eleitor?

Em primeiro lugar porque as urnas são auditáveis e auditadas para a segurança do sistema e tranquilidade do eleitor, independentemente da impressão. O processo eleitoral brasileiro é auditável, íntegro, perfeitamente seguro, como se comprova amplamente. Em segundo lugar, o voto impresso facilita a cobrança daqueles que, com alguma influência sobre o eleitor, queiram exigir o voto em alguém.

Especificamente, para se ter uma ideia, apenas em Minas Gerais, em 2024, foram abertos mais de 500 inquéritos contra empresas e empresários que exigiram dos seus empregados voto dirigido a alguém. Se esse eleitor ou essa eleitora tiver de mostrar a impressão, perde-se o sigilo do voto. Sem esse segredo, a eleitora ou o eleitor perde a sua liberdade de votar em quem quiser sem temer pelo seu emprego e sem ter de dar satisfação do seu voto.

Em terceiro lugar, o voto impresso pode ser instrumento de cobrança até mesmo de organizações criminosas, que injetam dinheiro ilícito em campanhas e exigem, pelo medo e pela pressão criminosa, comportamentos eleitorais específicos daqueles em suas áreas de atuação. A impressão do voto não traz segurança ao eleitor, mas insegurança ao eleitor e à sociedade. Quebra a liberdade e tranquilidade do eleitor. O medo é inimigo da liberdade. Liberdade só se tem quando se vive sem medo de outrem.

Que consequências os ataques às urnas em 2022 trouxeram para a democracia brasileira?

A confiança é o princípio da democracia. Em 2022 houve uma campanha enorme contra as urnas voltada à erosão democrática. Isso não parou e não vai parar nem aqui nem nas eleições de outros países. Em todas essas eleições houve campanhas de desinformação para desacreditar os comitês eleitorais, o Poder Judiciário, que é o alvo preferencial. No Brasil foi campanha dirigida, teve um efeito, mas que não foi suficiente para ter a ruptura do estado democrático.

A democracia permaneceu inabalável por atuação das instituições e dos democratas que temos neste país. Mas a cada período as tecnologias avançam e as campanhas de desestabilização continuam com novos recursos tecnológicos.

A infiltração do crime organizado em instituições de estado, inclusive parlamento, não é nova: em setembro de 1999, o então deputado federal Hildebrando Pascoal, do Acre, foi cassado pelas suas ligações com o crime organizado. O que a Justiça Eleitoral tem feito para combater a presença do crime organizado no processo de indicação de candidaturas e financiamento de candidaturas?

Quando a ligação da candidatura com o crime organizado é direta, há o indeferimento de registro pela condenação. Mas há as candidaturas que têm alguma ligação indireta com organizações criminosas. Iniciamos nas eleições de 2022, mas muito mais fortemente nas eleições de 2024, a exigir que o pedido de registro das candidaturas venha com a garantia da idoneidade, que é o que a Constituição estabelece.

É um acompanhamento complexo: numa eleição geral, como é a de 2026, teremos uma média de 30 mil candidaturas. Na eleição municipal de 2024, tivemos mais de meio milhão de candidaturas. E nessas eleições municipais é maior o interesse de certas facções criminosas que atuam com domínio territorial naquelas cidades. Por isso constituí em 2024 um grupo para atuar especificamente no acompanhamento de candidaturas que poderiam ser decorrentes de vínculos com organizações criminosas.

O grupo foi constituído por membros do Grupo de Atuação Especializada de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) dos Ministérios Públicos, da Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (Ficco), que é da Polícia Federal, de especialistas da sociedade civil em segurança pública que acompanhavam e verificavam se pedidos de registro de candidatura haviam sido feitos por pessoas envolvidas em processos ligados a organizações criminosas.

Além da indicação dessas candidaturas pelo crime, tem também o financiamento subalterno, ilícito com dinheiro de crime organizado. A integração da atuação dessas diferentes instituições é essencial, para mim é o mais importante. É dessa conjugação de dados que se alcança um quadro completo. Esse grupo vai continuar a atuar em 2026, acredito que mesmo quando assumir o ministro Kássio Nunes Marques quem vai me suceder na presidência. Essa é uma preocupação institucional.

Em todos os processos eleitorais recentes, as fraudes às cotas de gênero ressurgem após os pleitos, com várias cassações. Após ser firmada a jurisprudência no TSE, pelo que observa, essa prática tem reduzido?

A legislação brasileira impôs cota para candidaturas desde 1996, mas não se conseguiu atingir os 30% em nenhuma circunstância. Entretanto, é essencial aquela disposição legal, sem a qual não haveria sequer o esforço para se qualificar e legitimar a representação política com igualdade. Somos, mulheres, 53% do eleitorado brasileiro e, no Congresso Nacional menos de 20% das deputadas e senadoras.

Mesmo assim, o número de propostas de leis por elas apresentado representa mais da metade dos projetos encaminhados. Isso mostra a atuação das deputadas e das senadoras. Independentemente da posição política e da representação partidária, elas se unem no que é de interesse do país, em exemplo de que política se faz para o benefício público. Parece óbvio, mas nem sempre isso é observado e praticado.

A jurisprudência da justiça eleitoral caminhou para impor que os partidos são obrigados a cumprir a cota de gênero indicando o mínimo de trinta por cento de mulheres nas listas de candidatos, sob pena de nulidade da lista e até mesmo de nulidade dos votos dados à legenda, se já tiver ocorrido a eleição. Isso levou os partidos a inscreverem mulheres, mas então emergiu a questão da fraude à cota.

Significa dizer que os partidos incluem mulheres (algumas afirmam que nem sequer sabiam que seus nomes tinham sido utilizadas) e depois comprovamos que elas tiveram votação zerada e nenhum gasto de campanha, ou até mesmo que estavam fazendo campanha para outra pessoa. De tudo ficou provado que a fraude afasta as verdadeiras candidatas, que querem se eleger e contribuir na vida política.

Já houve mudança no comportamento dos partidos nos últimos pleitos, muito longe ainda de ser normal e desejável, como está na lei, a igualdade de representação de mulheres e homens na política brasileira. Nas eleições de 2024 houve um pequeno aumento do número de prefeitas eleitas, mas ainda temos câmaras municipais, inclusive em Minas, sem uma única mulher. E quando se faz o recorte de raça, esses números pioram muito.

Não apenas na política, mas também em outros poderes, inclusive no Poder Judiciário, há um grande desequilíbrio de gênero.

Sim, a mesma dificuldade se tem nos outros poderes. No judiciário nós somos pouco menos de 40% do total de juízes. Nos tribunais superiores esse número é muito menor. O que me parece é que a sociedade brasileira precisa assumir a igualdade como um tema central de dignificação humana e legitimação democrática. Trabalhamos permanentemente para esse resultado.