Rock? “É som de preto, de favelado” como já diria aquele funk carioca. A licença poética e abusada nos cabe aqui para usar algo mais em falta atualmente do que loja de CDs: a memória. Lembrar da história e de como (por mais que o mundo apresente seu “dark side”) estas coisas seguem adesivadas como comprovantes de procedência, são fundamentais para entender como a(s) banda(s) tocam.
Roger Waters, que desembarca com sua “polêmica” turnê “Us and Them”no Mineirão amanhã, sempre soube disso. Ele foi mais um numa longa lista de moleques branquelos britânicos que encontrou no rock e no blues feitos pelos negros norte-americanos a forma de expressão ideal para suas frustrações. Uma em específico modelou sua vida, como era esperado: perdeu o pai que lutava na Segunda Guerra Mundial contra os fascistas italianos quando tinha apenas cinco meses de idade.
Muito (e talvez o melhor) da obra de Waters é, portanto, resultado desta fantasmagoria, tanto da não-presença paterna, quanto da sombria força que o autoritarismo e a ilógica ditatorial fazem sobre si e sobre o mundo. A título de ilustração, “Animals” e “The Wall”, duas de suas obras-primas, sonorizam o anti-totalitarismo em cada sulco gravado.
E ele o faz de forma elaborada: o Pink Floyd, veículo principal de suas ideias, é música para “iniciados” (nunca se propôs apenas ‘rock and roll’) desde seu início, em raves alucinantes na Londres dos anos 1960, até seu suspiro (quase) final com o grupo, quando instalou um muro nos shows da banda, basicamente se colocando na linha de tiro ao aproximar perigosamente o rock das questões que o gênero inicialmente tanto criticava: o poder que define opressores e oprimidos, o palco que define as diferenças entre os “maiores” e a minoria, a música pop e sua dúbia capacidade de inspirar gênios e idiotas.
Em original e até corajosa auto-crítica, já no início dos anos 80, Waters performava o rock como mais um dos muros que nos separam.
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
Quase quatro décadas depois, o Brasil que recebeu Waters esta semana é um lugar ideal para reencenar estas questões tão cruciais para o artista. Coincidência ou não, ele desembarcou por aqui um dia após o primeiro turno das eleições, e nos deixa dois dias após a decisão final.
Pôde ver, como espectador privilegiado, a ascensão daquilo que ele cantou em “Pigs” como “quase uma piada, mas na verdade é um lamento”. Afinal, está no país onde o porco inflável, símbolo de sua ojeriza aos políticos e presença certa em suas apresentações, é confundido com ofensa a um time de futebol paulista. Está no país onde o >tweetde um fã atestava que “o próprio Roger Waters não entende ‘Another Brick in The Wall’”, que diz o admirador, seria uma “crítica à doutrinação comunista”. Está no país onde (parte) da plateia se revolta quando ele associa o candidato Jair Bolsonaro a uma lista global de políticos neo-fascistas – quando até uma de suas colegas citadas no telão (a francesa Marine Le Pen) confirma, assustada, a filiação.
E aí, o que deveria (para alguns) ser apenas “um show de rock”, se transforma em um acontecimento, com direito a explicações sobre o óbvio em rede nacional. E assim, Waters vem fazendo de seu show um ensaio sobre a cegueira na terra da pós-verdade, onde as fake news são caso de justiça e (parte) de seu público parece querer ensinar o Papa a rezar a missa, ou mostrar ao próprio músico inglês o que ele quis dizer com “Nós não precisamos de educação/ Nós não precisamos de controle mental”.
Precisamos deste show mais do que nunca, certo?
SERVIÇO
Roger Waters
Data: Domingo, 21 de outubro de 2018
Local: Estádio do Mineirão - Av. Antônio Abrahão Caram, 1001 – Pampulha, Belo Horizonte
Abertura dos Portões:17h
Horário do show:21h
Capacidade: 51.000 pessoas
Ingressos:de R$ 150 a R$ 720 (ver tabela completa)
Classificação etária: De 10 a 15 anos permitida a entrada acompanhado de responsável. A partir dos 16 anos é permitida a entrada desacompanhada.