A praça estava absolutamente deserta. Recebidos na casa do prefeito, o anfitrião também não apareceu. Mesa posta, camarim, passagem de som, tudo transcorria conforme o combinado, exceto pelo vazio retumbante que insistia em se instaurar no município de São Luiz do Anauá, em Roraima, Norte do Brasil.

Achando tudo aquilo estranho, os músicos chegaram a cogitar terem ido parar no lugar errado. O mistério só se desfez quando uma informação chegou-lhes ao pé do ouvido, revelando uma espécie de sigilo. A população, 100% evangélica, assustou-se e escondeu-se em casa para orar ao ouvir anunciarem, nos alto-falantes, a presença dos “demônios” na cidade.

Para evitar o fracasso, a solução foi trocar de nome, mesmo que provisoriamente. Durante seis horas, um carro de som rodou pelas vielas e ruas retificando que os “Anjos da Garoa” fariam um show imperdível naquela noite.

Quando chegou a hora do espetáculo, “a praça ficou abarrotada”, relembra Ricardo Rosa, representante da terceira geração do grupo Demônios da Garoa, que, neste sábado (29), abre em Belo Horizonte a turnê que comemora seus 80 anos de estrada, feito que os levou para o Livro dos Recordes como o conjunto da América Latina há mais tempo em atividade.

Toda essa história não impediu que eles ficassem quase 15 anos sem aparecer em uma emissora de televisão, então recém-adquirida pelo líder de uma igreja evangélica.

Batismo
O ano era 1943. Nos corredores da Rádio Bandeirantes, os garotos de 13 e 14 anos aprontavam das suas, à espera de serem chamados pelo locutor. Vencedores do concurso de calouros “A Hora da Bomba”, coube ao radialista Vicente Leporace oferecer a oportunidade para rebatizá-los, ao abrir um canal para ouvir sugestões dos ouvintes.

De Grupo do Luar, alcunha pejorativa associada ao jogo do bicho, os “endiabrados” moleques, como eram anunciados pelo locutor, passaram a ser conhecidos como Demônios da Garoa, sendo o complemento uma referência à cidade de São Paulo, onde começaram a exibir suas habilidades musicais no bairro da Mooca.

Arnaldo Rosa, avô de Ricardo, foi um dos fundadores do grupo. Hoje, Ricardo tem o privilégio de correr o Brasil ao lado do pai, Sérgio Rosa, que, em maio, completa 70 anos como o veterano da atual formação. Em 2023, com Dedé Paraizo e Everson Pessoa, a trupe registrou a celebração de suas oito décadas de samba, com participações especiais de Ivan Lins, Fábio Jr., Seu Jorge, Pedro Mariano, Canhotinho do Cavaquinho e a “afilhada” Adriana Ribeiro.

No repertório, clássicos que se tornaram indissociáveis da própria memória nacional, como “Trem das Onze”, “Saudosa Maloca”, “Samba do Arnesto”, “Tiro ao Álvaro”, “As Mariposas”, “Iracema”, dentre muitos outros.

Casamento
Parando para engraxar os sapatos numa movimentada avenida da capital paulista, Arnaldo Rosa ouviu um “linguajar ‘italianado’” que resolveu levar para o samba “Saudosa Maloca”, lançado em 1955 pelos Demônios da Garoa, após uma primeira versão do autor, de 1951, que não obteve repercussão. Ao ouvi-la, Adoniran Barbosa não teve dúvidas e esbravejou: “Vocês estragaram a minha música!”.

O sucesso, porém, desmentiu o compositor, que, a partir daí, abandonou o “português correto” de outrora em favor de uma “autêntica linguagem do povo, gaiata”, que se tornou uma das marcas registradas dos Demônios, assim como o esmero com os arranjos vocais e a vestimenta uniformizada que eles se recusam a abandonar, feita de chapéu e gravatas.

“Samba do Arnesto”, naquele mesmo ano, repetiu a estratégia, com novo êxito. “A gente costuma dizer que foi um casamento perfeito. Não dá para falar de Adoniran sem citar o Demônios da Garoa e vice-versa”, sustenta Ricardo Rosa, ao destacar que as criações do compositor eram lapidadas pelo conjunto.

Sem tocar nenhum instrumento de harmonia e munido apenas de uma caixinha de fósforos, Adoniran solfejava notas que depois recebiam arranjos e introduções dos integrantes do grupo, como os irresistíveis “quaisquaisquais” e “quaiscalingudum” que passaram a definir a essência de “Trem das Onze”, eleita hino informal de São Paulo. “Podemos dizer que é a cereja do nosso bolo”, caracteriza Ricardo. A canção foi gravada aos “45 do segundo tempo”.

Estrada
Com o disco praticamente pronto, os músicos foram obrigados pela gravadora a conseguir uma derradeira faixa para chegar às doze exigidas. Ao abrirem gavetas e mais gavetas de repertório, localizaram uma extensa letra.

“Cortaram, sintetizaram, até torná-la compacta”, e, apenas para completar o álbum, gravaram “Trem das Onze”, em 1965, inesperadamente alçada a carro-chefe de uma carreira octogenária, regravada em mais de 20 idiomas ao redor do mundo e escolhida “o maior samba de todos os tempos” no antigo programa comandado por Faustão, na Globo. “A gente se orgulha muito da nossa trajetória”, conta Ricardo. A dificuldade é “na hora de montar os shows”.

Afora hits incontornáveis e lados B que os fãs pedem incessantemente da plateia, o grupo teve a ideia de homenagear artistas que se encontraram com os Demônios da Garoa ao longo do tempo. Nelson Gonçalves, representado por “Naquela Mesa” (de Sérgio Bittencourt), e Elis Regina com “Arrastão” (de Edu Lobo e Vinicius de Moraes), serão contemplados em Belo Horizonte.

Para completar, entre os 29 números musicais, eles guardam a sete chaves uma “surpresa para saudar Minas Gerais”. “Temos lembranças maravilhosas em BH, participamos de uma noite da seresta nas imediações da Lagoa da Pampulha e o público foi muito afetuoso…”, relembra Ricardo.

Berço
Uma brincadeira recorrente, provavelmente com fundo de verdade, na família de Ricardo Rosa é que, no berçário, “ao invés de chorar” ele já mandou logo “uns quaisquaisquais”, diverte-se o músico. Com esse contato desde muito cedo, ele se recorda de, ainda criança, com 6 para 7 anos, ganhar um pandeiro que aprendeu a tocar com o avô, um dos fundadores do Demônios da Garoa, Arnaldo Rosa, que morreu no ano 2000, aos 72 anos.

“Infelizmente não o acompanhei profissionalmente”, lamenta Ricardo, que, no entanto, guarda com muito carinho a lembrança de “com o pandeirinho desligado” ser convidado pelo avô e o pai a “tomar a frente do palco na maior cara de pau” durante um número instrumental de chorinho, outra marca da trupe.

“Vivo tudo o que sonhei um dia”, afirma Ricardo. Para ele, segue valendo a máxima de que “o samba agoniza, mas não morre”, cunhada por Nelson Sargento (1924-2021). “É sempre um dos ritmos principais do Brasil, se não for o principal. O cenário atual está muito bem, com companheiros de estrada, da nova geração, cheios de força”, exalta, citando nominalmente o grupo Sorriso Maroto e “os amigos” Ferrugem, Diogo Nogueira e Xande de Pilares.

“Tudo é samba, tem gente que fala ‘pagode’ para diferenciar, mas o importante é que mantemos uma relação muito harmoniosa, solidária, e todos eles nos ajudam a seguir em frente com esse legado vivo do samba”, finaliza Ricardo Rosa.

História
*Adoniran Barbosa e Demônios da Garoa se conheceram em 1949;

*O encontro aconteceu durante as gravações do filme “O Cangaceiro”, de Lima Barreto;

*Enquanto Adoniran atuava, a trilha com “Mulher Rendeira” era tocada pelo conjunto;

*A parceria seguiu, em 1951, com a gravação do samba “Malvina”; 

*Em 1958, os Demônios gravaram “Joga a Chave”, que foi campeã do Carnaval. 

Serviço
O quê. Show de 80 anos de carreira do grupo Demônios da Garoa

Quando. Neste sábado (29), às 21h

Onde. Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, Centro)

Quanto. A partir de R$115 (meia) na bilheteria ou pelo site www.eventim.com.br