Escute o áudio da matériaMarisa Monte adora uma música que Carlinhos Brown mantém guardada em seu baú. Na década de 1990, durante passagem por Belo Horizonte, o músico se hospedou no antigo hotel Othon Palace, onde uma fauna dos mais diversificados artistas costumava se reunir, e lá compôs “O Horizonte dos Talheres Proibidos”, observando passantes e transeuntes que contrastavam com o luxo da acomodação.

Se jamais gravou a canção por motivos que permanecem confidenciais, “Savassi” ganhou as ruas e avenidas da Bahia com Bell Marques, vocalista do Chiclete com Banana, no período áureo da axé music. A parceria com Durval Caldas presta homenagem a uma das mais lendárias regiões da capital mineira, pela qual Brown acabou de se apresentar no fim de semana.

O projeto com a Orquestra Ouro Preto, iniciado em 2024, promete segurar Brown no Estado. “Vamos lançar um audiovisual com a Orquestra. Estou indo até Ouro Preto gerar novas tomadas para finalizarmos este trabalho. Essa é apenas uma das coisas que vai acontecer”, revela, dando um aperitivo de suas produções em constante ebulição, no ritmo frenético do percussionista de formação, que, mesmo parado, não deixa os dedos descansarem, batucando o primeiro objeto que se oferece a seu contato.

Ainda para 2025, Brown estrela um documentário em fase de finalização pela HBO e assina a trilha sonora do primeiro musical brasileiro da Broadway, adaptado do célebre filme “Orfeu Negro”, cuja inspiração foi uma peça teatral de Vinicius de Moraes. “São muitas as possibilidades esse ano de me apresentar, fazer música e dar o melhor de mim!”, celebra Brown, que, ao unir-se à Orquestra Ouro Preto, encontrou um espaço privilegiado para seguir ambições que o perseguem desde os tempos da Timbalada.

“Com esse barroquismo preciso que a Ouro Preto apresenta, posso garantir que o meu clube encontrou a esquina”, brinca, sem dispensar o trocadilho e mandando um salve “à força atemporal de Milton Nascimento”. “O melhor de tudo é que a Orquestra Ouro Preto não me estaciona, ao contrário, me traz um direcionamento preciso do que busco com a música popular brasileira. Este ouro fomenta muito mais a possibilidade do meu sonho de construir uma obra sinfônica”, destaca ele, fugindo à “imagem folclorizada de ser apenas um compositor de música de Carnaval, ligado exclusivamente à axé music”.

‘Afrosinfonicidade’
Ao analisar o repertório selecionado para ser eternizado em vídeo com a Orquestra Ouro Preto, Brown não esconde o orgulho de uma parte menos conhecida de sua obra, que agora vem à luz com a devida força. “Sei que, em muitos momentos, até em materiais de divulgação, aparecem as músicas já conhecidas, os summer hits,  mas o mais importante, nesse trabalho, é o lado B.  O mais importante é ter canções como ‘Frases Ventias’, ‘Argila’, ‘Dois Grudados’. Canções que verdadeiramente têm melódicas potentes e condizem muito com essa fronteira livre e musical entre Bahia e Minas”, exalta.

Ele conta que priorizou todos os aspectos de sua fatura composicional. “Busquei um repertório para orquestra muito sobre o olhar do maestro Rodrigo Toffolo. Os ritmos são importantes, e, como melodista, pedi que nós também fizéssemos canções que se aproximassem dessa ‘afrosinfonicidade’”, conceitua o músico e cantor. O resultado, segundo Brown, foi a descoberta de um material lírico e sonoro “extremamente agradável, que emociona as pessoas”. “O público tem respondido com muita intensidade às apresentações”, comemora ele, abordando outro ponto fulcral para sua perspectiva: a abolição de barreiras e preconceitos.

“Toda música é virtuosa. Nós não estamos falando em erudição, mas sim em sinfonismo. Estamos falando do que soa bem com uma instrumentação clássica. A música brasileira tem, por herança, uma cadeia harmônica potente. E as harmonias do Brasil, diga-se de passagem, são uma música dentro da música”, elabora, antes de pedir passagem aos “mestres locais”. “Estou na terra de Toninho Horta, um grande compositor e harmonizador. Se você o chamar, ele vai compor uma harmonia para sua ‘música inesperada’. Você não imaginava que sua música poderia ter tantas paisagens e tantas memórias que uma harmonização como a de Toninho Horta pode trazer. Isso é cultural, isso é Minas”, diz.

Brown associa esse movimento à própria essência de sua “mais recente parceira”. “A Orquestra Ouro Preto traz, em sua tradição, uma rigorosa e potente harmonização, através de grandes arranjadores que a cercam. Isso é importante. Agora, mais do que erudito, nós somos sinfônicos”, reforça, estabelecendo diferenças que para ele soam bastante nítidas. “Talvez a chamada ‘erudição’ afaste um pouco o desejo de aproximação social. E popular é tudo aquilo que perdura no inconsciente coletivo. A ‘5ª Sinfonia’ de Beethoven, ou ‘Tristesse,’ de Chopin, caíram no extremo gosto da memória e do inconsciente coletivo. Então, assim serão todas as oportunidades de ouvir música no mundo! Que elas encontrem seu lugar no inconsciente coletivo de cada um”, deseja.

Minas no coração 
Uma vida inteira. É essa a dimensão que Carlinhos Brown dá à sua relação com a música produzida em Minas. “Já tive a oportunidade de cantar com o Beto Guedes, sou fã de Flávio Venturini, Milton nem se fala, né? Milton é um líder de alma, de um brilhantismo! Eu tive a oportunidade de tocar com Milton, de performar com ele e também com o Jota Quest e Samuel Rosa”, enumera.

Para ele, “os compositores mineiros levam na alma verdadeiras jazidas de melódicas”. “Mas aqui também é terra de Robertinho Silva, de seus filhos, de Joãozinho, que acompanhava Ben Jor e Pepeu Gomes, um dos maiores percussionistas de todos os tempos!”, complementa. Ele atribui essa “força estética e cultural” a um “cuidado de preservação” em Minas Gerais.

“Não é à toa que o candombe, no Brasil, até que me corrijam, está aqui em Minas. E, fora do Brasil, no Uruguai. Os outros lugares têm candomblé, mas o candombe parou por aqui. E parou com outro acento da cultura congolesa. Porque você vê que lugares como o Rio usam o congo pelo funk, na Bahia temos o maculelê, etc. Os acentos aqui são de Caxambu. E Minas Gerais, especialmente, tem hoje os melhores luthiers do Brasil. Timbal bom saiu daqui, New Groove também, os mineiros são os melhores a lidar também com instrumentos de madeira. É uma beleza tudo que acontece aqui”, enaltece Brown, referindo-se a conhecidos instrumentos de percussão.

Toda essa estrada não modificou no artista uma crença que o acompanha sempre. “Todo tempo eu valorizo a criança. A criança que me trouxe aqui, eu faço com que ela permaneça. Porque é nela que está a força. Muito mais do que nesse adulto que sou hoje”, conclui.

‘Ninguém quer fazer música para a tristeza’
Num mundo infestado de guerras e pela nova ascensão da extrema-direita global, Carlinhos Brown reflete cirurgicamente: “O que falta para a atual humanidade é a humanidade”. “A gente perdeu muito o senso de humanidade. E hoje a gente precisa muito individualmente nos cobrarmos de que forma estamos nos posicionando a título de fazer a paz. E vejo que hoje uma das formas de dizer não à guerra é cuidar muito do seu lado, do seu entorno. Preservar as vivências, conviver em coesão e ficar atento o tempo inteiro”, diz. 

No entanto, ele não nega que, mesmo geograficamente distantes, a guerra afete seu sentimento. “Pense bem, quem quer fazer música para a tristeza? Eu quero fazer música para o Carnaval. Mas, também, fazer Carnaval sobre ameaças de guerra, saber que pessoas vão se ferir, que elas não estariam felizes, é bem duro, é bem difícil. E as pessoas também, quando chegam em momentos difíceis assim, descem e buscam soluções. E às vezes essas soluções abruptas, que não condizem do cuidado com o outro, terminam inflamando muito mais o nosso desejo de continuar vivo em um planeta tão especial, tão bonito”, arremata, com a sua fé insolúvel nos milagres da arte.