BELO HORIZONTE

Quem passou pelo entorno da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais, na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, nesta terça-feira (2/9) notou uma mudança: um grupo de pessoas em situação de rua que ocupava o local há cerca de 10 anos simplesmente desapareceu. No lugar onde elas estavam, foi instalada uma estrutura para crianças. O Estado de Minas entrou em contato com os responsáveis pelo espaço, mas se deparou com um "jogo de empurra-empurra" sobre a iniciativa de retirar o grupo. 

 A responsabilidade seria da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult) se negou a comentar sobre quem solicitou a remoção dos moradores de rua, informando que "não se manifestará sobre o assunto". Porém, confirmou, em nota, a implantação do espaço para crianças. 

"A Secretaria de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais informa que a Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais ampliou suas atividades para crianças e famílias com a inauguração de um novo espaço nos jardins da instituição, uma extensão da Brinquedoteca do Setor Infantojuvenil (Biju). O ambiente, equipado com tenda, puffs, livros e brinquedos, funcionará de segunda a sexta-feira, das 9h às 11h e das 14h às 16h", diz a nota.

 Também contatada pela reportagem, a PMMG, do mesmo modo, negou participação na remoção do grupo. "A Polícia Militar de Minas Gerais, por meio do 1º Batalhão de Polícia Militar (1º BPM), informa que não promoveu qualquer ação de retirada de moradores em situação de rua ou de recolhimento de materiais no entorno da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais, na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, na terça-feira (02/09) ou em qualquer data anterior", informou a corporação.

A reportagem também procurou a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), que também negou a retirada do grupo. "Seguindo normativas nacionais e decisões do poder judiciário, a PBH não realiza a retirada ou remoção compulsória de pessoas em situação de rua", respondeu o poder municipal. De acordo com a prefeitura, "no dia 1º de setembro, a equipe de gestão de espaços públicos realizou um monitoramento rotineiro na Biblioteca Pública e, no momento da vistoria, não constatou a presença de pessoas em situação de rua no local".

"Medida higienista"
 
A retirada causou críticas de entidades de defesa de pessoas em situação de vulnerabilidade e dividiu opiniões entre os frequentadores do espaço. Rafael Roberto, coordenador do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), classificou a remoção como "absurda" e como "medida higienista".

"A gente é contra a retirada das pessoas e dos pertences delas", pontua Roberto. Ele lembra que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), assegura que a população de rua não seja retirada à força ou tenha pertences apreendidos. "Se as pessoas estão nessa situação, é porque faltam políticas públicas", conclui.

Para o pedagogo João Batista Mendes, de 36 anos, que costuma frequentar a Biblioteca Pública e outros atrativos da Praça da Liberdade com o filho de 11 meses, a implantação do espaço para crianças é positiva. Porém, ele faz questionamentos sobre retirada das pessoas que viviam no local. "Fiquei muito surpreso, porque hoje, de repente, eles não estavam mais lá", relata.

O frequentador opina que a retirada do grupo traz segurança para os usuários da biblioteca, mas levanta dúvidas sobre a maneira com a qual a remoção foi feita, bem como o destino dos moradores. "Tudo tem que ser pensado de forma humana", pondera. 

Moradores

No último dia 24/7, uma equipe do Estado de Minas visitou a biblioteca e constatou a presença de pelo menos 12 pessoas em situação de rua no local. Dois cachorros adultos andavam pelo jardim, recebendo alimentos oferecidos por transeuntes, enquanto alguns filhotes dormiam nas cobertas. Curiosamente, no momento da chegada da reportagem, um desses moradores, Leandro Alcântara Laureanos, de 49 anos, lia um livro. 

"Aqui é um lugar seguro, bonito, um lugar de cultura, onde podemos usufruir do banheiro e do computador do anexo. Quase diariamente eu uso o computador para estudar, pesquisar e me divertir também, assistir vídeo no YouTube", relatou.

Laureano cresceu em uma creche em BH. A mãe o visitava esporadicamente, até que, antes de completar 10 anos, fugiu e permaneceu nas ruas até ser apreendido e enviado para a Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Febem). Quando completou 18 anos, conseguiu um emprego como cozinheiro e chegou a se casar e a ter uma filha. Entretanto, não conseguiu manter a estabilidade em meio ao consumo de drogas e álcool.

Como só estudou até a quinta série do ensino fundamental, Laureano ainda busca concluir os estudos, por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA), e voltar a trabalhar como cozinheiro. Na ocasião, ele afirmou que a relação com os funcionários e visitantes da Biblioteca Pública é controversa: "tem alguns que nos cumprimentam, outros se sentem inseguros, incomodados com nossa presença. Mas se tivesse um programa ou uma alternativa, não teria ninguém aqui. A Biblioteca tem um peso, poderiam fazer um pouco mais para nos ajudar", opinou.

Problema complexo

De acordo com os últimos dados do Censo da População Adulta em Situação de Rua – BH+ Inclusão, realizado pela Faculdade de Medicina da UFMG em 2022 e apresentados em junho do ano passado, foram identificadas 5.344 pessoas vivendo nas ruas da capital. O levantamento também mostra que 84% desse grupo é formado por homens, com média de 42,5 anos, enquanto as mulheres representam 16% e têm, em média, 38,9 anos.