Sábado que vem seria aniversário de Ramonzinho, representante comercial que se despedia dos amigos com a mesma frase que Padre Eustáquio (1890-1943) dizia aos fiéis: “Saúde e paz!”. Devoto do beato holandês que catequizou uma multidão no Brasil, Ramon Santana tinha 35 anos quando levou cinco tiros por motivo banal: disputa de espaço de cadeiras num bar em Belo Horizonte. Era véspera do Natal de 2017.
Ele deixou mulher e dois filhos para fazer parte de uma estatística assustadora: 42.995 homicídios foram registrados em Minas em dez anos. A título de exemplo, esta quantidade assassinatos é maior do que a população de 776 cidades do Estado – o equivalente a 91% dos 853 municípios. Os dados são do Atlas da Violência, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com base em números do Ministério da Saúde.
“Meu irmão não teve direito de se defender. É a banalização da violência. Foi morto por um policial militar (que estava de folga). Acredita que o homem que deveria nos proteger alegou legítima defesa? Legítima defesa de quê? O crime levou embora os sonhos de uma família”, indigna-se Vítor Santana, de 42 anos.
TRISTE LEMBRANÇA – Vítor Santana mostra a foto do irmão, Ramonzinho, assassinado em 2017
Herança maldita
Independentemente da causa dos crimes, assassinatos levam sonhos para longe. Deixam saudade e uma herança maldita. Fazem doer o coração de quem perde ente querido e prejudica o orçamento do poder público, pois dinheiro que deveria ser investido em educação, saúde, lazer ou cultura precisa ser destinado à segurança pública.
Um dos coordenadores da pesquisa, Daniel Cerqueira usou no texto do estudo a mesma conclusão que ressaltou em outras pesquisas sobre o tema: “a criminalidade violenta constitui um grande problema econômico, uma vez que afeta o preço dos bens e serviços, além de contribuir para inibir a acumulação de capital físico e humano, bem como o desenvolvimento de determinados mercados”.
No que tange à esfera fiscal, continua a conclusão assinada por Cerqueira e mais 12 co-autores do Atlas, “importantes e escassos recursos do Estado são drenados para lidar com o enfrentamento e com as consequências da violência”.
“Este número mostra a magnitude do problema. É inadmissível cerca de 4 mil homicídios por ano. Não podemos nos acomodar”, cobrou o sociólogo Luís Flávio Sapori, ex-secretário-adjunto de Segurança Pública do Estado, ex-coordenador do Instituto Minas pela Paz e, hoje, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública da PUC Minas.
O próximo estudo do Ipea irá mostrar que o total de homicídios caiu no Estado em 2018 e, provavelmente, deverá recuar em 2019. Entretanto, como destaca Sapori, “cada vida conta”.
“A redução é promissora, mas é preciso mais. De 2017 para cá, houve uma grande mudança geral, operacional (no policiamento de Minas). Quase que uma reengenharia, com a diminuição do efetivo da PM em funções administrativas, melhor distribuição dos policiais, definição de metas. Isso impactou de forma positiva”, analisou o sociólogo.
Reforço
O atual governo destacou que as medidas implantadas desde janeiro reduziram a criminalidade no território mineiro. Em nota, a Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) destacou que o “governo obteve o melhor resultado dos últimos oito anos em número de vítimas de homicídios, assim como o melhor período dos últimos sete anos no número de registros de roubos, com diminuições que superam a casa dos 30%, avaliando os cinco primeiros meses de 2019”.
A pasta acrescentou que os “resultados colhidos neste ano foram possíveis graças ao trabalho de prevenção, repressão e ostensividade das forças”. Novos equipamentos e servidores, como a entrega de 800 viaturas e a posse de 76 delegados e 425 investigadores, ajudaram nos resultados.
DOR – Alexandro morreu com um tiro, em 2014, na Vila Calafate, na zona Oeste
Jovens de 15 a 29 anos são as principais vítimas
A quantidade de armas apreendidas pelas polícias Militar e Civil em Minas nos primeiros cinco meses deste ano soma 10.652 unidades – média de 70 por dia. De um lado, o expressivo número de recolhimentos. Do outro, porém, a comprovação de que a quantidade em mãos erradas ainda é alta.
Foi uma arma que acabou com a felicidade de Regina Nunes, de 65 anos, moradora do bairro João Pinheiro, região Oeste de BH. Um tiro ceifou a vida do filho dela, Juan, em 2011. O rapaz tinha 17 quando foi assassinado por desavenças. </CW>
Regina reconhece que algo de errado aconteceu na criação do garoto. “Sofro por saber que foi uma morte que poderia ter sido evitada, de várias maneiras. Talvez eu tenha falhado como mãe, mas tinha que trabalhar para sustentá-lo sozinha. Acabei perdendo-o para as drogas”.
O rapaz que perdeu a vida está em uma estatística também mostrada pelo Atlas da Violência. Em todo o Brasil, a faixa etária com maior número de vítimas de homicídios é formada por jovens de 15 a 29 anos. A evolução das taxas de assassinatos desse grupo aumentou 38% em dez anos.
Mais uma vítima
Também foi uma arma de fogo que mudou a rotina de uma família na Vila Calafate, região Oeste. A vida de Elton Moura, de 56 anos, virou do avesso após a perda do filho. Em 2014, Alexandro foi morto após intervir numa operação da PM na vila.
As versões são controversas. Vizinhos do jovem dizem que um policial atirou no rosto do rapaz após ele tentar socorrer um adolescente com deficiência mental, que teria sido agredido por militares. Já os policiais diziam que oito pinos de cocaína foram encontrados com Souza e que o jovem teria sido atingido por disparo acidental ao tentar tomar a arma de um dos agentes.
Desde então, Moura, que era presidente da associação de moradores do bairro, vive acometido por transtornos psicológicos.
“A morte do meu filho acabou com a minha vida. É uma dor que nunca cicatrizou. Depois disso, entrei em depressão profunda. Tomo mais de dez remédios por dia. Não saio de casa. Por medo, estou debilitado. Perdi mais de 42 quilos”, relata o pai.