Entre 2004 e 2017, as fiscalizações resgataram 3.419 trabalhadores em 157 ações no Estado
Desde a época em que se vendiam escravos em mercados Brasil afora, passaram-se 130 anos. Em 1888, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, mas o documento da abolição não determinou o fim da escravidão no país. Em 1995, o Estado brasileiro reconheceu que ainda existiam trabalhadores escravos no país. Em 2003, a exploração dessa mão de obra foi incluída como crime no Código Penal, o que não foi suficiente para garantir a punição a quem a pratica. De 2004 a 2017, o trabalho escravo foi detectado em 157 operações em Minas Gerais, com o resgate de 3.419 pessoas. O resultado penal, no entanto, é tímido: três casos foram transitados em julgado e apenas um réu foi preso.
Os dados são do levantamento “Trabalho Escravo: Entre os Achados da Fiscalização e as Respostas Judiciais”, coordenado por Carlos Haddad e Lívia Miraglia. Juiz federal e coordenador da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Haddad diz que a impunidade “é um retrato de quase todos os crimes no país”, mas acredita que, com mais empenho e conhecimento sobre o tema, seria possível punir mais. “É da nossa cultura acreditar que processo não tem fim”, critica.
Em média, uma ação penal demora 2.271 dias (cerca de 6 anos e 3 meses) para tramitar na Justiça Federal. As ações trabalhistas demoram menos: 589 dias (cerca de 1 ano e 8 meses), e rendem punições como indenizações individuais ou coletivas, mas não resultam em prisão do infrator. “A Justiça brasileira acaba tratando um crime como simples irregularidade trabalhista”, diz a vice-presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Rosa Jorge.
Ela também diz que as penas previstas – entre dois e oito anos de detenção, mais multa – são pequenas. “A pessoa não sente a gravidade do crime que praticou”, avalia. O coordenador da Campanha Nacional Contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Xavier Plassat, tem a mesma avaliação. “Enquanto não colocarem os criminosos na cadeia, estão negando que seja um crime” diz.
Na avaliação da coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho (MPT), Catarina von Zuben, se houvesse mais rigor, os empregadores pensariam duas vezes antes de explorar a mão de obra.
O único preso em Minas Gerais cumpre sentença de 4 anos e 6 meses em Patos de Minas, no Alto Paranaíba. Ele só foi para a cadeia porque o advogado de defesa perdeu o prazo para apresentar um recurso. Nos outros dois casos finalizados, um foi punido com multa e restrições de direito, e o outro teve o crime prescrito.
CAMINHO
Denúncias. As fiscalizações acontecem após denúncias.
Trâmite. Os auditores fazem um relatório descrevendo a situação que encontraram e com fotos do local. Esse relatório pode resultar em inquérito policial, Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), ou denúncia-crime.
Ações. As denúncias são enviadas à Justiça, que absolve ou condena os réus.
Lista Suja. Os empregadores podem ser incluídos na Lista Suja e ficam impedidos de obter financiamentos.
Judiciário desconhece os conceitos que caracterizam o crime
Condição degradante, jornadas exaustivas, submissão a trabalhos forçados, restrição de locomoção em razão de dívidas contraídas com o empregador, cerceamento dos meios de transporte com a finalidade de reter o trabalhador, vigilância ostensiva e/ou armada para impedir o deslocamento do trabalhador e retenção de documentos ou objetos pessoais. Esses são os aspectos que, de acordo com a legislação brasileira, podem caracterizar o trabalho escravo. No entanto, muitos deles são desconsiderados pelos próprios juízes, ainda que descritos em detalhes nos relatórios dos auditores fiscais.
A jornada exaustiva, por exemplo, não foi reconhecida em nenhuma sentença em Minas. Em outras, o crime foi descaracterizado por não haver cerceamento de liberdade.
“Talvez no Judiciário federal exista uma incompreensão sobre o próprio conceito de trabalho análogo à escravidão. Não é incomum vermos membros dos Ministérios Públicos ou do Judiciário com a mesma visão do escravocrata, de que a vítima não estava amarrada, não estava proibida de deixar o local, e, apesar de estar em péssimas condições, elas eram melhores do que a casa do trabalhador. Essa visão é inaceitável na boca do empregador, de membros do Judiciário e, principalmente, de um auditor. A verdade é que os próprios agentes públicos não compreendem o que está na lei”, desabafa o auditor fiscal do Ministério do Trabalho e coordenador do projeto de combate ao trabalho escravo da superintendência regional em Minas Gerais, Marcelo Gonçalves Campos.