A cada ano, entre duas e cinco barragens de rejeitos de minérios se rompem em todo o mundo. Na cidade de Trento, na Itália, em 19 de julho de 1985, o rompimento de uma barragem de rejeitos da mina de fluoreto vitimou 268 pessoas. No fim de janeiro de 2000, perto de Baia Mare, na Romênia, 100 mil metros cúbicos de água com cianureto causaram a poluição do Rio Tisza. Ou seja, tragédias como a da Samarco, em Mariana, e a da Vale, em Brumadinho, não são exclusividade do Brasil. A diferença é como o poder público – o que inclui o Judiciário – lida com a questão.
Coautor de um livro que trata dos aspectos jurídicos envolvendo desastres ambientais, o professor de direito internacional André de Paiva Toledo lamenta que três anos depois do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, ninguém até hoje tenha sido preso. “É uma questão fora do direito. É uma questão política. Há realmente interesses políticos, associados com interesses econômicos, que não permitem, não criam uma conjuntura necessária para a efetivação dessas responsabilizações”, disse o professor em entrevista ao Estado de Minas. O professor lembra que, em alguns casos, como aconteceu na Romênia, cabe a organismos internacionais a penalização dos responsáveis.
(foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Durante evento em Belo Horizonte, na quinta-feira, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro João Otávio de Noronha, lamentou as tragédias vividas em Minas e afirmou que elas foram causadas por seres humanos. Por que então até hoje ninguém foi punido pela tragédia em Mariana? O que a gente tem é uma situação complexa em que há diversos interesses envolvidos, já que a atividade de mineração é importante para o estado, e para esses municípios mais ainda. Mariana é diretamente dependente dos empregos que a empresa gera na comunidade e nos repasses dos tributos. Então há interesses econômicos envolvidos e questões políticas. Aí vem o papel da Justiça, que, em tese, é o terceiro poder que compõe a estrutura do Estado e que não se envolve nas questões políticas. Por isso os juízes não são eleitos. Aí vem o papel do Ministério Público, dos advogados, que devem provocar a Justiça. É preciso que se demande a Justiça, e essa demanda foi feita. A partir de investigações da polícia e do Ministério Público foram encontrados indícios de responsabilidades humanas. O caso foi para a Justiça. E aí vem o grande problema do Judiciário, que é a demora na prestação jurisdicional, seja por excesso de recursos – o próprio direito processual permite esse prolongamento das discussões, consequentemente, das responsabilizações –, seja o desinteresse que o próprio Poder Judiciário às vezes tem em levar a termo essas questões de punição de pessoas que estão envolvidas no ramo importantíssimo da economia.
Na sua avaliação, o Judiciário então vem sendo omisso em relação a crimes ambientais?
De maneira geral, não. Estou falando basicamente do caso de Mariana, que é um caso de 2015 e nós já estamos em 2019, mas não temos nenhum tipo de responsabilização concretizada. Mesmo as multas que o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) determinou que a empresa pagasse são objeto de recursos até hoje. Então, nós temos não apenas um problema no âmbito da Justiça, como as questões administrativas que não conseguem avançar. O Ibama entra no âmbito do Executivo. O que a gente percebe é que não é um problema só do Judiciário. Mas há nessa morosidade uma certa conivência na perpetuação dessa irresponsabilidade jurídica.
A atuação do Judiciário e essa impunidade esbarra também na questão legislativa? O Brasil tem um conjunto de leis capazes de evitar que essas tragédias ocorram? E mais, que os responsáveis sejam punidos?
O Brasil tem uma história, principalmente a partir da Constituição de 1988, de valorizar a proteção ambiental. O meio ambiente já faz parte do nosso direito há muitos anos, mas sempre há um enfrentamento e é algo histórico, não só no Brasil, mas geral. É o enfrentamento dos interesses econômicos com os interesses ambientalistas. Apesar de o Brasil, de maneira hipotética, na sua previsão normativa, seja na Constituição, seja nas normas infraconstitucionais, prever de forma interessante a proteção do meio ambiente, tem demonstrado ser um desafio a implementação dessa proteção. No meu modo de entender, não é um problema legislativo. O problema do direito ambiental não é a produção de normas, mas a aplicação das normas existentes.
E por que elas não são aplicadas?
Aí é uma questão fora do direito. É uma questão política. Há realmente interesses políticos associados com interesses econômicos, que não permitem, não criam uma conjuntura necessária para a efetivação dessas responsabilizações. Isso se dá não só na questão ambiental, mas vemos outros âmbitos sociais em que o direito é aplicado de maneira muito dinâmica e com muita efetividade em algumas circunstâncias. Em outras circunstâncias muito próximas, envolvendo outras pessoas, o direito não dá a mesma resposta. Qual é a diferença? Por que em uma situação o direito é tão eficiente e em outras não? Na verdade, são as pessoas que manipulam o direito. O direito não existe. É uma construção humana manipulada por humanos. E esses humanos que trabalham com o direito é que dão ou não maior veracidade, eficiência e concretude a ele.
Muito se diz que o Brasil é o país da impunidade. Se o desastre de Mariana tivesse ocorrido em outros países, já teria havido punições? Já teríamos uma resposta para a sociedade?
Houve e há diversos acidentes com barragens de rejeito no mundo inteiro. Há dados da doutrina que diz que a partir dos anos 1970 ocorrem em média dois a cinco rompimentos de barragem de rejeitos no planeta. Isso não é uma questão brasileira. E como os outros países têm reagido? Isso depende de cada direito interno. No livro Acidentes com barragens de rejeitos da mineração e o princípio da mineração, eu analisei dois casos – um italiano (Trento, em 1985) e outro na Romênia (Baia Mare, em 2000). Nos dois casos, a situação é muito parecida com o que temos vivido no Brasil. O poder público, ou o Estado, faz uma concessão de exploração de recursos naturais, uma empresa assume a exploração, utiliza a estratégia de rejeito como forma mais interessante economicamente para armazenar os resíduos da sua exploração, e há um rompimento com mortes, prejuízos à propriedade privada das pessoas e danos ambientais. O primeiro passo é procurar a responsabilidade interna. Na Itália, Romênia ou Brasil, os cidadãos sofreram um dano real e eles procuraram de alguma forma reparar. E a lógica do direito é tentar restabelecer o que havia antes. Muitas vezes isso é impossível, como na questão da morte de alguém ou um dano ambiental. Há de se apurar as responsabilidades e, ao final, há uma sanção no âmbito penal, ou no âmbito civil, uma indenização ou obrigação de fazer, como um reflorestamento, ou reconstruir uma casa. Mas como valorar a perda de uma vida? Esse é o outro grande desafio do direito, transformar em valor financeiro aquilo que não tem valor.
Mas nesses casos citados, na Itália e na Romênia, alguém foi punido?
Na Itália, sim, na Romênia, não. No caso romeno, não houve responsabilização pelos mesmos problemas do Brasil. Primeiro, a dificuldade de verificar as responsabilidades, seja por ação ou omissão do próprio Estado, agentes policiais e estrutura punitiva. E depois por demora na prestação jurisdicional e reparação às vítimas. Se elas procuram os meios no país onde se encontram e eles não existem, ou não são eficazes, qual seria a alternativa? Até bem pouco tempo a pessoa teria que se conformar. Mas hoje há um sistema internacional de proteção aos direitos humanos que tem sido movimentado nesses casos de danos ambientais. No caso da Romênia, por ser parte da convenção europeia de direitos humanos, aquelas pessoas que foram atingidas pelos rejeitos da barragem, diante da impossibilidade de responsabilidade no âmbito interno, procuraram a Corte Europeia de Direitos Humanos para responsabilizar a Romênia por não ter agido para prevenir os danos e para repará-los. A corte recebeu a denúncia, julgou e condenou a Romênia a indenizar aquelas pessoas. Mas para levar o caso ao âmbito internacional é necessário que o país esteja vinculado a uma estrutura de responsabilização internacional. No caso da Itália, houve prisões e indenizações no âmbito não só penal, mas também cível, houve responsabilização, o que impediu que a questão fosse levada para o âmbito internacional.
O senhor acha que o desfecho do caso brasileiro vai se assemelhar mais ao caso italiano ou ao romeno?
O caso brasileiro está muito parecido com o da Romênia na forma como o Estado está agindo: demora, falta de efetividade, impossibilidade de dar uma resposta num prazo razoável às demandas das pessoas prejudicadas que sofreram danos por conta do acidente de Mariana, mesmo que cometido por uma empresa privada. Não é porque a Vale foi privatizada ou a Samarco seja uma mineradora privada que o Estado não seja responsável por manter uma certa vigilância. Por mais que a Agência Nacional de Mineração (ANM) determine que as mineradoras façam uma autovigilância, há também a obrigação do Estado de fiscalizar o que tem sido feito em relação às barragens de rejeitos. O Estado não deixa de ser responsável pelo fato de a empresa ser privatizada. Há uma legislação ambiental que não é aplicada por outros interesses. O fato é que não houve a prestação judiciária no âmbito romeno na velocidade que a corte considerou adequada para o respeito aos direitos humanos. O Brasil se aproximando da Romênia nesse caso, há a possibilidade que as questões de Mariana e Brumadinho sejam, futuramente, levadas para o âmbito internacional. O Brasil é parte da Convenção Americana de Direitos Humanos e ela estabelece uma série de obrigações que são muito parecidas com as obrigações que a Romênia tem em face da convenção europeia. Mas nós temos que aguardar, o âmbito internacional é subsidiário e só vai atuar se o âmbito interno demonstrar ser ineficiente ou ineficaz.