Priscila Amoni desenvolveu mural com 25 metros de comprimento e sete de altura no Bairro Prado, Oeste de BH. Obra retrata a força das mulheres impactadas pelo desastre da Vale
Adriana Leal, de 28 anos, viu o tsunami de rejeitos tomar conta da horta, de onde a família de pequenos agricultores retirava o sustento. Em 25 de janeiro, ela estava na plantação, no Parque da Cachoeira, em Brumadinho, no momento exato em que a lama cobriu todo o terreno, trocando o verde da plantação, em coisa de minutos, pelo marrom da lama.
Felizmente, Adriana conseguiu escapar. Entre imagens fortes gravadas para sempre na memória, está a cena de mortos retirados do terreno nas caixas de verdura. Mas ela guarda também, na lembrança, a imagem de folhas de taiobas enormes, abertas como grandes guarda-chuvas naturais. “Já estavam prontas para serem colhidas, mas nunca foram. As taiobas estavam verdinhas, as folhas estavam enormes, supervistosas”, contou Adriana ao Estado de Minas.
Ela ficou curiosa para ver o mural pintado pela artista Priscila Amoni, em Belo Horizonte, em que as taiobas foram escolhidas para simbolizar a força de mulheres que, como Adriana, superam a dor da tragédia. A arte pode reinventar o mundo. “São duas mulheres saindo da lama agarradas nas plantas de poder. São duas taiobas gigantes. É uma planta muito nossa, mineira. A pintura tem também uma flor de lótus, que nasce da lama. Ela está em forma de botão. Não a quis florescida. Esse momento é de transição. A gente está na lama, mas precisamos nos agarrar à fé, ao positivo. Temos que renascer dessa lama. Não dá para afundar nela”, explicou Priscila. Com 25 metros de comprimento e 7 metros de altura, o mural foi feito no paredão embaixo da linha férrea da Vale no Prado, na Região Oeste de Belo Horizonte.
Quando Priscila chegou ao viaduto, local onde fez o mural, passou sobre os trilhos o trem da Vale, carregado de minério. “A tragédia tinha acontecido havia dois dias. Pensei: 'tem gente embaixo da lama e a máquina continua operando.Tenho que falar algo sobre isso'. Voltei pra casa e pensei nesse projeto.”
Priscila, que pintou um dos murais gigantes do Circuito Urbano de Arte (Cura), tem como característica de sua obra a referência às mulheres e às plantas de poder. “É a busca pelo feminino. A lembrança de que a sociedade, como um todo, precisa resgatar o feminino, tanto as mulheres quanto os homens”, diz. Em todos os trabalhos, ela pinta mulheres. “Comecei pensando nas mulheres que são curandeiras, bruxas, que sabem da magia das plantas, das curas, que o patriarcado tentou matar... Matar esse conhecimento não-científico, que tem a ver com nossa intuição muito forte e a magia feminina.”
Para fazer a pintura a céu aberto, Priscila lidou com intempéries durante 20 dias. “O processo de pintar na rua só começa quando se chega ao lugar. E o lugar realmente afeta. Um amigo que foi a Brumadinho disse: 'Não adianta ver foto. Você tem que sentir o cheiro, o barulho e o silêncio da morte'”, revela.
Priscila não se considera grafiteira, mas se autodefine como muralista, ou seja, os espaços urbanos como telas ampliadas. “O mural é uma tela para mim em grandíssima escala. Trabalho com pincel, com rolinho. Faço misturas de paletas. Trabalho a pincelada. Minha técnica tem esse aspecto do gesto, que importa e aparece. Não estou preenchendo uma área uniformemente. Tem aspectos que não consigo prever no projeto”, diz.
MULHERES DA ROÇA A defesa do meio ambiente, da agroecologia, da relação com a terra e a natureza perpassam o trabalho da artista, que pintou também um castelo na França. Depois de ter feito o mural, que denuncia a tragédia de Brumadinho, ela pintou outro com a foto de uma pequena agricultora do Ceará, dona Maria Francisca, na Casa de Agroecologia em Simonésia. Ela recria a imagem feita pelo fotógrafo Alécio Cézar. Para a artista, a imagem de dona Maria tem a força de resgatar a ancestralidade. “São mulheres que sofrem muito preconceito. São chamadas de mulher da roça. São cheias de poder e pouco empoderadas do nosso lado. Elas cuidam de vários filhos, cuidam da roça e mantêm essa tradição da função medicinal de cada planta”, afirma.
Os dois trabalhos sobre Brumadinho e Simonésia têm em comum a relação da sociedade com as plantas, que nos servem de remédio e alimento. “O que comemos envolve a produção de alimentos, a relação com os animais, com a cidade, a divisão social de classe. Está tudo envolvido com a produção do alimento que a gente come”, conclui.