Dos Jornalistas Livres - Quando o Jornal da Record colocou no ar a entrevista de 26 minutos de Jair Bolsonaro, no mesmo horário do Debate da Globo com sete presidenciáveis, as redações da TV e do portal R7 entenderam o recado: dali em diante, o Grupo Record usaria todos os esforços da reportagem como máquina de campanha para defender e promover o candidato do PSL, que liderava as pesquisas.
Naquela noite de 4 de outubro, reta final do primeiro turno, editores, repórteres e produtores ficaram em silêncio, atônitos, enquanto o colega Eduardo Ribeiro, da equipe paulista, aparecia no vídeo pronunciando as perguntas escritas sob orientação da direção. O vice-presidente de Jornalismo, Douglas Tavolaro, estava presente na empreitada, que se desenrolou na casa de Bolsonaro, no Rio de Janeiro. Tavolaro é homem de confiança e biógrafo do bispo Edir Macedo, o comandante da Record e criador da neopentecostal Igreja Universal do Reino de Deus. O projeto havia sido gestado a sete chaves. Nem mesmo a então chefe de redação, Luciana Barcellos, responsável pelo Jornal da Record, fora comunicada da existência dele. Luciana soube apenas na manhã daquela quinta-feira, quando o diretor de conteúdo de jornalismo, Thiago Contreira, hierarquicamente abaixo de Tavolaro, mandou escalar um determinado editor, pediu a ele para chegar bem mais cedo à emissora, no bairro paulistano da Barra Funda, para preparar o material a portas fechadas.
Só à tarde, profissionais da redação descobriram que o mistério se chamava Bolsonaro. Do conteúdo bruto quase nada foi cortado. A existência da gravação vazou. Mas o que o capitão reformado do Exército diria, permanecia em segredo. Às 18 hs, o candidato do PSL tuitou: "Hoje, às 22 horas, estarei no Jornal da Record com exclusividade. Peço assistir e divulgar". PT, PSOL e MDB entraram com recurso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para impedir a publicação da entrevista.
COM A PERMISSÃO DO TRIBUNAL
No espelho – a sequência dos conteúdos que entrariam no ar na edição de 4 de outubro – seriam incluídas matérias frias, que os editores tinham na gaveta, caso a Justiça interditasse a gravação de Bolsonaro.
Nos bastidores houve torcida para que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) acordasse e tomasse providências. Fora da lei, a Record não foi importunada pelo Tribunal que tem, entre suas funções, impedir que empresa detentora de concessão pública de rádio e TV favoreça uma candidatura. Surpreendentemente, o ministro Carlos Horbach deu sinal verde, rejeitando a "censura prévia" e reafirmando o direito à "livre manifestação" da Record.
O que os telespectadores viram é praticamente a íntegra da amigável entrevista do candidato que se recusara a debater com os sete adversários reunidos nos estúdios da Globo. Sua justificativa para a ausência: a recuperação do ataque a faca sofrido em Juiz de Fora (MG), no dia 6 de setembro.
O ESTRONDOSO PODER DO BISPO
Terminada a exibição da entrevista, a equipe do Jornal da Record, o principal da casa, deixou a redação constrangida e sem falar nada. "No dia seguinte, 5 de outubro, os colegas chegaram tristes e angustiados para trabalhar", lembra um produtor, que como todos os outros profissionais da TV e do portal de notícias online R7, deram entrevistas a Jornalistas Livres sob a condição de anonimato. "A Record é uma emissora vingativa. Os repórteres e produtores que se recusam a realizar as pautas sofrem represálias, pressões e podem perder o emprego", diz ele. Sobre a entrevista, uma profissional da pauta comenta:
"FOI O DIVISOR DE ÁGUAS. NAQUELE MOMENTO A RECORD PERDEU A MÃO, A SUTILEZA, PASSOU DOS LIMITES". EM OUTRAS DISPUTAS ELEITORAIS, LEMBRA ELA, "A CASA JÁ HAVIA ADOTADO UM COMPORTAMENTO ABUSIVO EM RELAÇÃO À COBERTURA DOS CANDIDATOS ALINHADOS AOS INTERESSES ECONÔMICOS DO BISPO. MAS O INGRESSO, DE CABEÇA, NA LINHA DE FRENTE DA CAMPANHA DO BOLSONARO FOI ESCANCARADO E VERGONHOSO DEMAIS."
Edir Macedo conta com a gratidão do mundo político. Para isso coloca a serviço de quem assume o poder a força de seu império de comunicação – um conglomerado de mídia. Macedo já esteve ao lado dos ex-presidentes petistas Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Mas virou as costas para ela, envenenado por Eduardo Cunha, ex-parlamentar afinado com o bispo e peça fundamental na orquestração do impeachment de Dilma, ocorrido no período em que ele presidiu a Câmara dos Deputados.
Entre os estimados 7 milhões de fiéis e pastores da Igreja Universal, fundada por Macedo no Rio de Janeiro em 1977 e hoje espalhada por mais de 7 mil pontos do país, há inúmeros vereadores e deputados estaduais eleitos com a força da máquina do bispo. Um soldado deste esquema é o deputado federal Celso Russomano (PRB-SP), reeleito este ano, e que sempre depois das disputas eleitorais volta à tela da TV com seu quadro Patrulha do Consumidor. Em Brasília, deputados e senadores filiados ao mesmo Partido Republicano Brasileiro, considerado o braço político da igreja, capitaneiam a bancada evangélica do Congresso Nacional. Atraem parlamentares desgarrados ou de legendas inexpressivas, que se enfileiram ao redor dos projetos de Macedo para existir politicamente e, assim, acabam aprovando as propostas mais conservadoras, moralistas ou retrógradas da agenda nacional.
Douglas Tavolaro, no episódio da entrevista chapa-branca, acertou com Bolsonaro a ampla cobertura que a Record, o R7 e as demais emissoras da rede passariam a fazer dos seus passos. Um jornalista do portal, em um desabafo por escrito, afirmou: "A TV e o R7 passaram a ser usados como máquina de propaganda do candidato do PSL. Nos corredores, já se comenta que Douglas Tavolaro, participa diretamente da campanha de Bolsonaro. Ajuda a estabelecer pautas e estratégias de comunicação..."
Em 6 de outubro, completou-se o chamamento para que as equipes se engajassem no esforço de eleger Bolsonaro. Márcio Santos, diretor de RH, postou na sua página do Facebook, foto em que aparece sorridente com as hashtags: "Melhor Jair se acostumando; "PT Não"; "Ele sim". Os jornalistas entenderam o recado. O que é capaz de fazer com os próprios empregados um conglomerado que persegue repórteres de outros veículos, autores de matérias mostrando que o bispo construiu seu império explorando fiéis da igreja? A perseguição mais notória se deu a Elvira Lobato, jornalista processada 111 vezes por publicar na Folha de S.Paulo inúmeras reportagens revelando a instrumentalização do conglomerado de comunicação como arma de massificação da opinião pública, além dos negócios milionários que isso possibilitou. Ficam na mira do time do bispo todos os jornalistas que escrevem sobre investigações policias, inquéritos e processos na Justiça envolvendo a igreja ou seu mentor em denúncias de falsidade ideológica, uso de documentos falsos, sonegação fiscal, importação fraudulenta e estelionato.
"NO FIM DE SEMANA POSTERIOR À ENTREVISTA, EDUARDO RIBEIRO, VOLTOU DO RIO PARA SÃO PAULO SÓ PARA RESOLVER A VIDA, BUSCAR ROUPAS E EMBARCOU DE VEZ NA COBERTURA DA CAMPANHA",
relata uma colega dele. "Não faço críticas, Eduardo deve estar sofrendo um bocado. Tem sido citado no mercado como alguém que é mandado e não retruca."
O cerco se fechou sobre a equipe. Todos os textos de política passaram a ser lidos, com rigor, por Thiago Contrera. Ele também começou a assinar as laudas do espelho, ao dar a sua aprovação.
A LARGADA DO BISPO NO FACEBOOK
Macedo nunca morreu de amores por Jair Bolsonaro, nascido católico e batizado em Israel, no Rio Jordão, por imersão – conforme a tradição evangélica. Nesta altura do calendário, maio de 2016, era presidenciável, mas por outra legenda, o Partido Social Cristão (PSC). O bispo sempre o considerou um parlamentar indócil, alguém com quem era difícil entabular um diálogo. Seu candidato no primeiro turno era, na maior parte do tempo, Alckmin (PSDB). Às vezes pendia para Ciro (PDT), com as reportagens evidenciando a gangorra. "Os jornalistas de política suspiraram aliviados com a escolha do bispo ficando no campo do centro e da esquerda. Ninguém se sentiria confortável em cobrir Bolsonaro se ele se tornasse o candidato queridinho da casa", lembra uma editora executiva da TV Record. Para comprovar a crença de que o bispo não embarcaria no tanque de guerra do capitão do Exército, ela cita a linha adotada na cobertura do atentado à faca. "Não tínhamos equipe em Juiz de Fora e a ordem foi pegar leve: 'Atenção com o tom das matérias sobre a cirurgia em Minas Gerais. Não queremos vitimizar Bolsonaro, para que ele não cresça nas pesquisas'," recorda a editora.
Quando se tornou evidente que Alckmin e Ciro não emplacariam e estariam descartados no fim do primeiro turno, Macedo mudou a rota.
Poucos dias antes da entrevista que dividiu as águas, pairavam a interrogação e o suspense entre os jornalistas do Grupo Record. Dois chefes de redação ouviram de um superior: "Tem um vento aí. Cuidado, não sabemos como ele vai virar". Era a senha (nunca explicitada em memorandos ou e-mails, mas verbalmente) para não atacar nem paparicar nenhum dos candidatos.
Não foi preciso esperar muito. No dia 29 de setembro, Edir Macedo soprou a sua escolha feito um tufão. No Facebook, um senhor que se identificou como Antonio Mattos, vendo Macedo em um vídeo que nada tinha a ver com política, cutucou: "Queremos saber, bispo, do seu posicionamento sobre a eleição pra presidente". Na lata, o chefe da Universal respondeu: "Bolsonaro!". Mas o acerto não havia ainda sido firmado com o quartel-general bolsonarista. Então, a conduta ditada ao jornalismo da rede na primeira semana após o primeiro turno foi a seguinte: Foco no Ciro. "Fizeram matérias para mostrar como seria delicada a situação dele, se apoiasse Fernando Haddad, candidato do PT à Presidência da República. Outras reportagens mostravam que Ciro não ajudaria o petista.
Quando o irmão dele, o senador eleito Cid Gomes, gritou: "O Lula tá preso, babaca", em um evento do PT, foi, para a Record, a festa da uva. "A recomendação era repetir, muitas vezes o episódio, e Cid berrando para a plateia de militantes: "Babaca, babaca", conta um editor.
Sobre o assassinato do mestre de capoeira Moa do Katendê, por um bolsonarista, que o atacou pelas costas com 12 facadas, depois de ouvi-lo declarar voto em Haddad, nenhuma palavra. Nenhuma imagem em rede nacional. Na reunião de pauta, uma editora fez a defesa do tema, dizendo que a TV precisaria acompanhar a investigação. "Trata-se de briga de bar", foi a resposta. Moa não era um brigão de boteco, teve importância na cultura baiana, fundou o Afoxé Badauê, ajudou na criação dos blocos afros de Salvador. A conclusão da polícia, de que a violência na política acendeu o estopim da morte de Moa foi igualmente ignorada pela Record.
A PORÇÃO QUE CABE A HADDAD
O adversário do postulante do PSL entra no noticiário minimamente cumprindo sua agenda de campanha. Ponto. Na sexta, 12 de outubro, dia da padroeira do Brasil, saindo de uma missa, Fernando Haddad criticou o apoio do bispo ao capitão. "Bolsonaro é o casamento do neoliberalismo desalmado representado pelo Paulo Guedes, que corta diretos trabalhistas e sociais, com o fundamentalismo charlatão do Edir Macedo", afirmou o candidato petista. O Jornal da Record pôs no ar apenas uma nota pelada, jargão televisivo para o texto lido pelos âncoras sem imagem ilustrativa. A nota dizia que Haddad havia ofendido o bispo, e a igreja o processaria.
Na métrica diária do portal R7 entram duas matérias pró-Bolsonaro e duas batendo em Haddad. "Para fazer fachada, publicamos algo positivo do petista, como a sua proposta de baixar o preço do gás para 49 reais. Mas não entra com destaque, fica lá perdida. A demanda é por links negativos", afirma um dos 80 jornalistas da redação. "Desde sua gestão na Prefeitura (de São Paulo) há um boicote a ele. Não pudemos dar, por exemplo, a queda do número de mortes no trânsito, depois que o prefeito reduziu a velocidade nas vias da cidade".
A raiva de Macedo é anterior à gestão municipal do petista. Um projeto da igreja para a criação de uma universidade teria naufragado no Ministério da Educação no período em que Haddad foi o titular da pasta. Na disputa pela Prefeitura, em 2012, Macedo embalava a candidatura de Celso Russomano, que não passou para o segundo turno. Vitorioso, Haddad tomou posse quando a construção do Templo de Salomão, o gigantesco local de reuniões da Universal, no Brás, estava adiantada. O terreno havia sido reservado para moradias populares. A igreja conseguiu um alvará de reforma para o que, na verdade, era uma construção. Havia mais um problema: assinava a autorização Hussain Aref, diretor do departamento municipal que concede a licença, e que acabou afastado sob escândalo de corrupção. Haddad endureceu o jogo, a Prefeitura exigiu uma contrapartida, e o Ministério Público (MP) ameaçou pedir a demolição do templo. O petista exigiu como indenização à cidade a doação de um terreno na região com o mesmo tamanho. A igreja assinou um compromisso garantindo que doaria uma área avaliada em R$ 38 milhões. O MP segue acompanhando as tratativas, agora tocadas pela gestão Bruno Covas. "O bispo sabe que, eleito Haddad, não haveria dinheiro do governo federal para a Record", analisa um editor da TV.
Templo de Salomão, construído pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), no Brás, região central de São Paulo, Inagurado em 31-07-2014, Foto Paulo Pinto/fotospublicas
Imagem mostra terreno onde foi construído o templo de Salomão na região do Brás, em São Paulo. Fernando Haddad teve grandes atritos com o Bispo Edir Macedo, por suspeitas de irregularidades no processo de autorização do terreno durante a gestão Kassab. Haddad exigiu uma contrapartida no valor de 38 milhões, do Bispo, já que o imóvel ocupava área de interesse social para moradia popular. Fernando Haddad enfrentou o temido bispo, mesmo contrariando orientações do PT.
DUAS PAUTAS-BOMBAS CONTRA O PT
"No site a cobertura é ainda mais cretina que na TV", afirma outro editor, do R7. "E tem a Coluna do Fraga, que mente sobre Haddad e é escancaradamente a favor da vitória de Bolsonaro." O titular da coluna, Domingos Fraga, e sua pequena equipe ficam isolados; os colegas não querem se relacionar com eles. Mas os comentários de Fraga têm força na casa. Um deles pautou uma matéria especial da TV. A repórter Elaine Heringer teria sido a destacada para "amarrar" o material, que demonizaria o Movimento Sem Terra, com foco principal na educação das crianças nas escolas dos assentamentos rurais. "A ordem é mostrar que as crianças do MST são vítimas de lavagem cerebral, com intuito de provar que elas seriam obrigadas a louvar líderes de esquerda, como Che Guevara", comenta um profissional da casa. Os depoimentos colhidos estavam direcionados para confirmar a tese de Bolsonaro, para quem "o MST é um grupo terrorista".
Fraga havia atirado nesta direção ao escrever, em 2 de outubro: "Parece algum grupo muçulmano radical, como o Estado Islâmico (Daesh) ou Hezbollah. Ou mesmo guerrilheiros das Farc. Mas, na verdade, são brasileiros que não alcançaram a puberdade. Milhares de crianças estão sendo guiadas por adultos para militarem nas causas defendidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais".
A outra pauta-bomba mirou os venezuelanos. A missão era associar o sofrimento deles a um eventual governo de Haddad. A volta do PT ao governo transformaria o Brasil na Venezuela de Maduro. A ideia era mostrar a saída por estradas horríveis, ao longo de dias, com destino à Colômbia e ao Peru, ou a Roraima. "Em esforço incomum, foram enviadas uma equipe para a Colômbia e outra para a cidade brasileira de Pacaraima", conta um editor.
Os destacados para a missão, Leandro Stoliar e Fábio Menegatti, são repórteres experientes, acostumados a levantar dados secretos, provas, documentos difíceis de conseguir. Fazem parte de um seleto grupo investigativo, têm salários mais altos e são chefiados por Leandro Cipoloni, diretor de gestão de jornalismo. "Internamente, esta equipe ganhou o apelido de "Núcleo de Extorsão", porque algumas vezes é obrigada a usar a técnica investigativa em reportagens que atingem empresas do mercado – e elas, para se verem livres de exposição negativa na mídia de Macedo, cedem aos interesse do grupo, patrocinando projetos ou engordando a receita publicitária da emissora ", revela um jornalista da Record.
As reportagens sobre os venezuelanos e a que fala das criancinhas do MST estão editadas e prontas e podem ser publicadas a qualquer momento.
A CAIXA DE MALDADES SEM FIM
Durante a primeira semana do segundo turno, foram muito valorizadas as delações ex-ministro petista Antônio Palocci, as notícias da Lava-jato. No domingo, 14 de outubro, entrou no ar uma nova pancada no PT. Em manobra sem ética, a reportagem tentou associar ao ex-presidente Lula o filho do ditador da Guiné Equatorial, Teodorin Obiana, preso com 1,5 milhão de dólares em dinheiro e 20 relógios avaliadas em 15 milhões de dólares.
O ar estava irrespirável; a tensão e o stress crescentes provocavam inúmeras queixas entre repórteres e editores. Até que, na quarta-feira, 18 de outubro, a redatora-chefe do Jornal da Record tomou uma medida que restaurou a dignidade que os profissionais sentiam estar perdendo. Luciana Barcellos chegou às 13 horas, como de costume, e sentou na frente do computador. Abriu o e-mail e dirigiu-se aos superiores, com cópia para Márcio Santos, do RH. Escreveu a sua carta de demissão, avisou para os três editores executivos e a editora-chefe do JR e saiu da redação direto para a sala do diretor do RH. Pouco depois, Thiago Contreira reuniu a equipe para anunciar a saída de Luciana, depois de oito anos de trabalho na empresa. Funcionou como uma catarse. Alguém ali estava legitimando o desejo da maioria: livrar-se de uma cobertura sem verdade, que vai contra os princípios do jornalismo. E atropela brutalmente a cláusula de consciência do Código de Ética da categoria, que assegura ao profissional o direito de recusar um trabalho que vai contra seus princípios.
Luciana não era uma unanimidade. Para se relacionar com o comando extremamente masculino do jornalismo da Record, ela manteve uma postura firme e muitas vezes foi dura demais com os chefiados. "Mas ela me surpreendeu. Teve a dignidade de dar um basta", reflete uma repórter. "Fui até ela, como muitos outros colegas, para abraçá-la. Eu lhe disse: 'Você fez o que muitos de nós queríamos fazer agora'." Foi uma comoção. Um jovem jornalista perguntou a ela: "Sua decisão foi tomada depois da entrevista do Bolsonaro, não foi?" Luciana respondeu a ele que, na verdade, aquilo fora a gota d'água. E que ela vinha se questionando nos últimos meses: Queria ou não continuar fazendo parte, mesmo que indiretamente, do projeto de poder do Grupo?
NA SAÚDE E NA DOENÇA COM BOLSONARO
Sob os olhos dos ministros do TSE a cavalaria da Record continua mobilizada para angariar votos. Para o programa Domingo Espetacular de 21 de outubro, a reportagem se instala novamente na intimidade do lar do candidato, dedicando a ele uma longa matéria especial. O tema é saúde de Bolsonaro, sua determinação para enfrentar a colostomia etc etc. Para o veículo que não queria dar ênfase ao episódio da facada em Minas Gerais, a última edição de Domingo Espetacular foi mais uma prova da tentativa de elegê-lo. Exibi-lo como o homem que enfrenta tudo e desperta empatia com as pessoas que sofrem dramas semelhantes.
O diretor de Comunicação Celso Teixeira tem sido procurado desde o dia 22 de outubro por Jornalistas Livres. Vários recados foram deixados com a secretária do departamento. No dia 23, Teixeira mandou dizer que só atenderá a nossa equipe depois da votação do próximo domingo. Diante da recusa, insistimos, enviando as perguntas principais que gostaríamos de fazer a ele. Celso não as respondeu. Porém, a direção emitiu uma nota se defendendo de acusações de favorecimento de Bolsonaro publicadas por várias mídias. Um trecho: "O principal acionista Edir Macedo, ainda no primeiro turno, informou sua opinião pessoal em sua rede social particular. Um direito individual garantido pela Constituição e já exercido por ele em eleições anteriores. A decisão em nada influencia as posições da emissora, que tem um jornalismo premiado internacionalmente e reconhecido pelo público e anunciantes." O texto explica ainda a entrevista de Bolsonaro no dia 4, como "parte de uma estratégia do mercado de televisão que visa transmitir ao telespectador informações em primeira mão com agilidade".
Faltando três dias para as eleições, a audiência dos veículos de Edir Macedo continua recebendo propaganda eleitoral travestida de reportagem – um veneno recheado de mentiras.
Veja aqui a resposta do Grupo Record aos questionamentos que lhe tem sido dirigidos:
Nota à Imprensa
A Record TV repudia de forma veemente as declarações caluniosas, falsas e preconceituosas do candidato Fernando Haddad contra a emissora nas últimas semanas. Essas ofensas atingem diretamente todos os funcionários e colaboradores do jornalismo que se empenham em coletar informações com um único propósito: atestar a veracidade dos fatos de maneira clara e isenta para que o telespectador tenha a liberdade de tirar suas próprias conclusões.
Com mais de 30 anos de tradição e credibilidade na cobertura de eleições no Brasil, a Record TV procura sempre apresentar suas reportagens jornalísticas de forma equilibrada, mesmo com as críticas infundadas e ofensivas de qualquer candidato. A prova disto são as 11 horas de notícias diárias ao vivo, mais de 800 reportagens por dia produzidas por 2.000 jornalistas espalhados pelo país. Um trabalho de credibilidade em que todos os profissionais priorizam, ao máximo, se afastar de tudo aquilo que possa pôr em dúvida a sua isenção aos fatos.
A emissora também denuncia a estratégia de alguns veículos de comunicação que claramente apoiam Fernando Haddad e de blogs ligados ao candidato que usam estas mesmas falsas acusações para atacarem a Record TV, o portal R7.com e as empresas do Grupo. A ação orquestrada ainda usa de estratégia criminosa de reproduzir estes textos e declarações levianas em panfletos ilegais e apócrifos atacando nosso jornalismo e os profissionais que aqui trabalham com objetivos escusos de tumultuar a eleição.
O principal acionista Edir Macedo, ainda no primeiro turno, informou sua opinião pessoal em sua rede social particular. Um direito individual garantido pela Constituição e já exercido por ele em eleições anteriores. A decisão em nada influencia as posições da emissora, que tem um jornalismo premiado internacionalmente e reconhecido pelo público e anunciantes.
Também esclarecemos que a entrevista realizada pela emissora no último dia 4 de outubro com o candidato Jair Bolsonaro, fez parte de uma estratégia do mercado de televisão que visa transmitir ao telespectador informações em primeira mão com agilidade. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), rejeitou liminarmente a proibição da gravação exibida no horário do Jornal da Record. Em despacho negando o pedido do PT, Carlos Horbach, ministro do TSE, considerou que o trabalho era uma ação jornalística que não feria os princípios legais da democracia. "Impedir, por meio de decisão judicial, que uma emissora de televisão veicule toda e qualquer entrevista do candidato Jair Bolsonaro antes do primeiro turno das eleições, por quaisquer dos meios de comunicação (televisão aberta, televisão fechada, rádio e internet) seria manifesto ato de censura prévia, contrária à liberdade de imprensa, pressuposto fulcral do regime democrático", decidiu o desembargador.
O Ministério Público Eleitoral também deu parecer contrário ao processo contra a entrevista porque considerou que "para candidatos que se encontram em situações distintas, a ação está prevista na própria lei eleitoral".
Vale ressaltar que a Record foi a primeira emissora de TV aberta a realizar sabatinas com os candidatos à Presidência da República, com tempos iguais para todos. Uma pesquisa simples no Portal R7.com revela de imediato artigos e reportagens, que atestam nossa independência ao tratar cada um dos candidatos de forma equilibrada, e questionam todos sobre declarações, opiniões e programas de governo.
Por isso, não aceitamos os ataques covardes à nossa conduta pautada numa só direção: jornalismo imparcial a serviço dos brasileiros.
Em nome da democracia, da liberdade de expressão e da defesa veemente dos direitos constitucionais previstos para todos, a Record TV vai seguir firme no sentido de oferecer ao público um jornalismo isento.
São Paulo, 25 de outubro de 2018.
GRUPO RECORD
Quando o Jornal da Record colocou no ar a entrevista de 26 minutos de Jair Bolsonaro, no mesmo horário do Debate da Globo com sete presidenciáveis, as redações da TV e do portal R7 entenderam o recado: dali em diante, o Grupo Record usaria todos os esforços da reportagem como máquina de campanha para defender e promover o candidato do PSL, que liderava as pesquisas.
Naquela noite de 4 de outubro, reta final do primeiro turno, editores, repórteres e produtores ficaram em silêncio, atônitos, enquanto o colega Eduardo Ribeiro, da equipe paulista, aparecia no vídeo pronunciando as perguntas escritas sob orientação da direção. O vice-presidente de Jornalismo, Douglas Tavolaro, estava presente na empreitada, que se desenrolou na casa de Bolsonaro, no Rio de Janeiro. Tavolaro é homem de confiança e biógrafo do bispo Edir Macedo, o comandante da Record e criador da neopentecostal Igreja Universal do Reino de Deus. O projeto havia sido gestado a sete chaves. Nem mesmo a então chefe de redação, Luciana Barcellos, responsável pelo Jornal da Record, fora comunicada da existência dele. Luciana soube apenas na manhã daquela quinta-feira, quando o diretor de conteúdo de jornalismo, Thiago Contreira, hierarquicamente abaixo de Tavolaro, mandou escalar um determinado editor, pediu a ele para chegar bem mais cedo à emissora, no bairro paulistano da Barra Funda, para preparar o material a portas fechadas.
Só à tarde, profissionais da redação descobriram que o mistério se chamava Bolsonaro. Do conteúdo bruto quase nada foi cortado. A existência da gravação vazou. Mas o que o capitão reformado do Exército diria, permanecia em segredo. Às 18 hs, o candidato do PSL tuitou: “Hoje, às 22 horas, estarei no Jornal da Record com exclusividade. Peço assistir e divulgar”. PT, PSOL e MDB entraram com recurso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para impedir a publicação da entrevista.
COM A PERMISSÃO DO TRIBUNAL
No espelho – a sequência dos conteúdos que entrariam no ar na edição de 4 de outubro – seriam incluídas matérias frias, que os editores tinham na gaveta, caso a Justiça interditasse a gravação de Bolsonaro.
Nos bastidores houve torcida para que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) acordasse e tomasse providências. Fora da lei, a Record não foi importunada pelo Tribunal que tem, entre suas funções, impedir que empresa detentora de concessão pública de rádio e TV favoreça uma candidatura. Surpreendentemente, o ministro Carlos Horbach deu sinal verde, rejeitando a “censura prévia” e reafirmando o direito à “livre manifestação” da Record.
O que os telespectadores viram é praticamente a íntegra da amigável entrevista do candidato que se recusara a debater com os sete adversários reunidos nos estúdios da Globo. Sua justificativa para a ausência: a recuperação do ataque a faca sofrido em Juiz de Fora (MG), no dia 6 de setembro.
O ESTRONDOSO PODER DO BISPO
Terminada a exibição da entrevista, a equipe do Jornal da Record, o principal da casa, deixou a redação constrangida e sem falar nada. “No dia seguinte, 5 de outubro, os colegas chegaram tristes e angustiados para trabalhar”, lembra um produtor, que como todos os outros profissionais da TV e do portal de notícias online R7, deram entrevistas a Jornalistas Livres sob a condição de anonimato. “A Record é uma emissora vingativa. Os repórteres e produtores que se recusam a realizar as pautas sofrem represálias, pressões e podem perder o emprego”, diz ele. Sobre a entrevista, uma profissional da pauta comenta:
“FOI O DIVISOR DE ÁGUAS. NAQUELE MOMENTO A RECORD PERDEU A MÃO, A SUTILEZA, PASSOU DOS LIMITES”. EM OUTRAS DISPUTAS ELEITORAIS, LEMBRA ELA, “A CASA JÁ HAVIA ADOTADO UM COMPORTAMENTO ABUSIVO EM RELAÇÃO À COBERTURA DOS CANDIDATOS ALINHADOS AOS INTERESSES ECONÔMICOS DO BISPO. MAS O INGRESSO, DE CABEÇA, NA LINHA DE FRENTE DA CAMPANHA DO BOLSONARO FOI ESCANCARADO E VERGONHOSO DEMAIS.”
Edir Macedo conta com a gratidão do mundo político. Para isso coloca a serviço de quem assume o poder a força de seu império de comunicação – um conglomerado de mídia. Macedo já esteve ao lado dos ex-presidentes petistas Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Mas virou as costas para ela, envenenado por Eduardo Cunha, ex-parlamentar afinado com o bispo e peça fundamental na orquestração do impeachment de Dilma, ocorrido no período em que ele presidiu a Câmara dos Deputados.
Entre os estimados 7 milhões de fiéis e pastores da Igreja Universal, fundada por Macedo no Rio de Janeiro em 1977 e hoje espalhada por mais de 7 mil pontos do país, há inúmeros vereadores e deputados estaduais eleitos com a força da máquina do bispo. Um soldado deste esquema é o deputado federal Celso Russomano (PRB-SP), reeleito este ano, e que sempre depois das disputas eleitorais volta à tela da TV com seu quadro Patrulha do Consumidor. Em Brasília, deputados e senadores filiados ao mesmo Partido Republicano Brasileiro, considerado o braço político da igreja, capitaneiam a bancada evangélica do Congresso Nacional. Atraem parlamentares desgarrados ou de legendas inexpressivas, que se enfileiram ao redor dos projetos de Macedo para existir politicamente e, assim, acabam aprovando as propostas mais conservadoras, moralistas ou retrógradas da agenda nacional.
Douglas Tavolaro, no episódio da entrevista chapa-branca, acertou com Bolsonaro a ampla cobertura que a Record, o R7 e as demais emissoras da rede passariam a fazer dos seus passos. Um jornalista do portal, em um desabafo por escrito, afirmou: “A TV e o R7 passaram a ser usados como máquina de propaganda do candidato do PSL. Nos corredores, já se comenta que Douglas Tavolaro, participa diretamente da campanha de Bolsonaro. Ajuda a estabelecer pautas e estratégias de comunicação…”
Em 6 de outubro, completou-se o chamamento para que as equipes se engajassem no esforço de eleger Bolsonaro. Márcio Santos, diretor de RH, postou na sua página do Facebook, foto em que aparece sorridente com as hashtags: “Melhor Jair se acostumando; “PT Não”; “Ele sim”. Os jornalistas entenderam o recado. O que é capaz de fazer com os próprios empregados um conglomerado que persegue repórteres de outros veículos, autores de matérias mostrando que o bispo construiu seu império explorando fiéis da igreja? A perseguição mais notória se deu a Elvira Lobato, jornalista processada 111 vezes por publicar na Folha de S.Paulo inúmeras reportagens revelando a instrumentalização do conglomerado de comunicação como arma de massificação da opinião pública, além dos negócios milionários que isso possibilitou. Ficam na mira do time do bispo todos os jornalistas que escrevem sobre investigações policias, inquéritos e processos na Justiça envolvendo a igreja ou seu mentor em denúncias de falsidade ideológica, uso de documentos falsos, sonegação fiscal, importação fraudulenta e estelionato.
“NO FIM DE SEMANA POSTERIOR À ENTREVISTA, EDUARDO RIBEIRO, VOLTOU DO RIO PARA SÃO PAULO SÓ PARA RESOLVER A VIDA, BUSCAR ROUPAS E EMBARCOU DE VEZ NA COBERTURA DA CAMPANHA”,
relata uma colega dele. “Não faço críticas, Eduardo deve estar sofrendo um bocado. Tem sido citado no mercado como alguém que é mandado e não retruca.”
O cerco se fechou sobre a equipe. Todos os textos de política passaram a ser lidos, com rigor, por Thiago Contrera. Ele também começou a assinar as laudas do espelho, ao dar a sua aprovação.
A LARGADA DO BISPO NO FACEBOOK
Macedo nunca morreu de amores por Jair Bolsonaro, nascido católico e batizado em Israel, no Rio Jordão, por imersão – conforme a tradição evangélica. Nesta altura do calendário, maio de 2016, era presidenciável, mas por outra legenda, o Partido Social Cristão (PSC). O bispo sempre o considerou um parlamentar indócil, alguém com quem era difícil entabular um diálogo. Seu candidato no primeiro turno era, na maior parte do tempo, Alckmin (PSDB). Às vezes pendia para Ciro (PDT), com as reportagens evidenciando a gangorra. “Os jornalistas de política suspiraram aliviados com a escolha do bispo ficando no campo do centro e da esquerda. Ninguém se sentiria confortável em cobrir Bolsonaro se ele se tornasse o candidato queridinho da casa”, lembra uma editora executiva da TV Record. Para comprovar a crença de que o bispo não embarcaria no tanque de guerra do capitão do Exército, ela cita a linha adotada na cobertura do atentado à faca. “Não tínhamos equipe em Juiz de Fora e a ordem foi pegar leve: ‘Atenção com o tom das matérias sobre a cirurgia em Minas Gerais. Não queremos vitimizar Bolsonaro, para que ele não cresça nas pesquisas’,” recorda a editora.
Quando se tornou evidente que Alckmin e Ciro não emplacariam e estariam descartados no fim do primeiro turno, Macedo mudou a rota.
Poucos dias antes da entrevista que dividiu as águas, pairavam a interrogação e o suspense entre os jornalistas do Grupo Record. Dois chefes de redação ouviram de um superior: “Tem um vento aí. Cuidado, não sabemos como ele vai virar”. Era a senha (nunca explicitada em memorandos ou e-mails, mas verbalmente) para não atacar nem paparicar nenhum dos candidatos.
Não foi preciso esperar muito. No dia 29 de setembro, Edir Macedo soprou a sua escolha feito um tufão. No Facebook, um senhor que se identificou como Antonio Mattos, vendo Macedo em um vídeo que nada tinha a ver com política, cutucou: “Queremos saber, bispo, do seu posicionamento sobre a eleição pra presidente”. Na lata, o chefe da Universal respondeu: “Bolsonaro!”. Mas o acerto não havia ainda sido firmado com o quartel-general bolsonarista. Então, a conduta ditada ao jornalismo da rede na primeira semana após o primeiro turno foi a seguinte: Foco no Ciro. “Fizeram matérias para mostrar como seria delicada a situação dele, se apoiasse Fernando Haddad, candidato do PT à Presidência da República. Outras reportagens mostravam que Ciro não ajudaria o petista.
Quando o irmão dele, o senador eleito Cid Gomes, gritou: “O Lula tá preso, babaca”, em um evento do PT, foi, para a Record, a festa da uva. “A recomendação era repetir, muitas vezes o episódio, e Cid berrando para a plateia de militantes: “Babaca, babaca”, conta um editor.
Sobre o assassinato do mestre de capoeira Moa do Katendê, por um bolsonarista, que o atacou pelas costas com 12 facadas, depois de ouvi-lo declarar voto em Haddad, nenhuma palavra. Nenhuma imagem em rede nacional. Na reunião de pauta, uma editora fez a defesa do tema, dizendo que a TV precisaria acompanhar a investigação. “Trata-se de briga de bar”, foi a resposta. Moa não era um brigão de boteco, teve importância na cultura baiana, fundou o Afoxé Badauê, ajudou na criação dos blocos afros de Salvador. A conclusão da polícia, de que a violência na política acendeu o estopim da morte de Moa foi igualmente ignorada pela Record.
A PORÇÃO QUE CABE A HADDAD
O adversário do postulante do PSL entra no noticiário minimamente cumprindo sua agenda de campanha. Ponto. Na sexta, 12 de outubro, dia da padroeira do Brasil, saindo de uma missa, Fernando Haddad criticou o apoio do bispo ao capitão. “Bolsonaro é o casamento do neoliberalismo desalmado representado pelo Paulo Guedes, que corta diretos trabalhistas e sociais, com o fundamentalismo charlatão do Edir Macedo”, afirmou o candidato petista. O Jornal da Record pôs no ar apenas uma nota pelada, jargão televisivo para o texto lido pelos âncoras sem imagem ilustrativa. A nota dizia que Haddad havia ofendido o bispo, e a igreja o processaria.
Na métrica diária do portal R7 entram duas matérias pró-Bolsonaro e duas batendo em Haddad. “Para fazer fachada, publicamos algo positivo do petista, como a sua proposta de baixar o preço do gás para 49 reais. Mas não entra com destaque, fica lá perdida. A demanda é por links negativos”, afirma um dos 80 jornalistas da redação. “Desde sua gestão na Prefeitura (de São Paulo) há um boicote a ele. Não pudemos dar, por exemplo, a queda do número de mortes no trânsito, depois que o prefeito reduziu a velocidade nas vias da cidade”.
A raiva de Macedo é anterior à gestão municipal do petista. Um projeto da igreja para a criação de uma universidade teria naufragado no Ministério da Educação no período em que Haddad foi o titular da pasta. Na disputa pela Prefeitura, em 2012, Macedo embalava a candidatura de Celso Russomano, que não passou para o segundo turno. Vitorioso, Haddad tomou posse quando a construção do Templo de Salomão, o gigantesco local de reuniões da Universal, no Brás, estava adiantada. O terreno havia sido reservado para moradias populares. A igreja conseguiu um alvará de reforma para o que, na verdade, era uma construção. Havia mais um problema: assinava a autorização Hussain Aref, diretor do departamento municipal que concede a licença, e que acabou afastado sob escândalo de corrupção. Haddad endureceu o jogo, a Prefeitura exigiu uma contrapartida, e o Ministério Público (MP) ameaçou pedir a demolição do templo. O petista exigiu como indenização à cidade a doação de um terreno na região com o mesmo tamanho. A igreja assinou um compromisso garantindo que doaria uma área avaliada em R$ 38 milhões. O MP segue acompanhando as tratativas, agora tocadas pela gestão Bruno Covas. “O bispo sabe que, eleito Haddad, não haveria dinheiro do governo federal para a Record”, analisa um editor da TV.
DUAS PAUTAS-BOMBAS CONTRA O PT
“No site a cobertura é ainda mais cretina que na TV”, afirma outro editor, do R7. “E tem a Coluna do Fraga, que mente sobre Haddad e é escancaradamente a favor da vitória de Bolsonaro.” O titular da coluna, Domingos Fraga, e sua pequena equipe ficam isolados; os colegas não querem se relacionar com eles. Mas os comentários de Fraga têm força na casa. Um deles pautou uma matéria especial da TV. A repórter Elaine Heringer teria sido a destacada para “amarrar” o material, que demonizaria o Movimento Sem Terra, com foco principal na educação das crianças nas escolas dos assentamentos rurais. “A ordem é mostrar que as crianças do MST são vítimas de lavagem cerebral, com intuito de provar que elas seriam obrigadas a louvar líderes de esquerda, como Che Guevara”, comenta um profissional da casa. Os depoimentos colhidos estavam direcionados para confirmar a tese de Bolsonaro, para quem “o MST é um grupo terrorista”.
Fraga havia atirado nesta direção ao escrever, em 2 de outubro: “Parece algum grupo muçulmano radical, como o Estado Islâmico (Daesh) ou Hezbollah. Ou mesmo guerrilheiros das Farc. Mas, na verdade, são brasileiros que não alcançaram a puberdade. Milhares de crianças estão sendo guiadas por adultos para militarem nas causas defendidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais”.
A outra pauta-bomba mirou os venezuelanos. A missão era associar o sofrimento deles a um eventual governo de Haddad. A volta do PT ao governo transformaria o Brasil na Venezuela de Maduro. A ideia era mostrar a saída por estradas horríveis, ao longo de dias, com destino à Colômbia e ao Peru, ou a Roraima. “Em esforço incomum, foram enviadas uma equipe para a Colômbia e outra para a cidade brasileira de Pacaraima”, conta um editor.
Os destacados para a missão, Leandro Stoliar e Fábio Menegatti, são repórteres experientes, acostumados a levantar dados secretos, provas, documentos difíceis de conseguir. Fazem parte de um seleto grupo investigativo, têm salários mais altos e são chefiados por Leandro Cipoloni, diretor de gestão de jornalismo. “Internamente, esta equipe ganhou o apelido de “Núcleo de Extorsão”, porque algumas vezes é obrigada a usar a técnica investigativa em reportagens que atingem empresas do mercado – e elas, para se verem livres de exposição negativa na mídia de Macedo, cedem aos interesse do grupo, patrocinando projetos ou engordando a receita publicitária da emissora ”, revela um jornalista da Record.
As reportagens sobre os venezuelanos e a que fala das criancinhas do MST estão editadas e prontas e podem ser publicadas a qualquer momento.
A CAIXA DE MALDADES SEM FIM
Durante a primeira semana do segundo turno, foram muito valorizadas as delações ex-ministro petista Antônio Palocci, as notícias da Lava-jato. No domingo, 14 de outubro, entrou no ar uma nova pancada no PT. Em manobra sem ética, a reportagem tentou associar ao ex-presidente Lula o filho do ditador da Guiné Equatorial, Teodorin Obiana, preso com 1,5 milhão de dólares em dinheiro e 20 relógios avaliadas em 15 milhões de dólares.
O ar estava irrespirável; a tensão e o stress crescentes provocavam inúmeras queixas entre repórteres e editores. Até que, na quarta-feira, 18 de outubro, a redatora-chefe do Jornal da Record tomou uma medida que restaurou a dignidade que os profissionais sentiam estar perdendo. Luciana Barcellos chegou às 13 horas, como de costume, e sentou na frente do computador. Abriu o e-mail e dirigiu-se aos superiores, com cópia para Márcio Santos, do RH. Escreveu a sua carta de demissão, avisou para os três editores executivos e a editora-chefe do JR e saiu da redação direto para a sala do diretor do RH. Pouco depois, Thiago Contreira reuniu a equipe para anunciar a saída de Luciana, depois de oito anos de trabalho na empresa. Funcionou como uma catarse. Alguém ali estava legitimando o desejo da maioria: livrar-se de uma cobertura sem verdade, que vai contra os princípios do jornalismo. E atropela brutalmente a cláusula de consciência do Código de Ética da categoria, que assegura ao profissional o direito de recusar um trabalho que vai contra seus princípios.
Luciana não era uma unanimidade. Para se relacionar com o comando extremamente masculino do jornalismo da Record, ela manteve uma postura firme e muitas vezes foi dura demais com os chefiados. “Mas ela me surpreendeu. Teve a dignidade de dar um basta”, reflete uma repórter. “Fui até ela, como muitos outros colegas, para abraçá-la. Eu lhe disse: ‘Você fez o que muitos de nós queríamos fazer agora’.” Foi uma comoção. Um jovem jornalista perguntou a ela: “Sua decisão foi tomada depois da entrevista do Bolsonaro, não foi?” Luciana respondeu a ele que, na verdade, aquilo fora a gota d’água. E que ela vinha se questionando nos últimos meses: Queria ou não continuar fazendo parte, mesmo que indiretamente, do projeto de poder do Grupo?
NA SAÚDE E NA DOENÇA COM BOLSONARO
Sob os olhos dos ministros do TSE a cavalaria da Record continua mobilizada para angariar votos. Para o programa Domingo Espetacular de 21 de outubro, a reportagem se instala novamente na intimidade do lar do candidato, dedicando a ele uma longa matéria especial. O tema é saúde de Bolsonaro, sua determinação para enfrentar a colostomia etc etc. Para o veículo que não queria dar ênfase ao episódio da facada em Minas Gerais, a última edição de Domingo Espetacular foi mais uma prova da tentativa de elegê-lo. Exibi-lo como o homem que enfrenta tudo e desperta empatia com as pessoas que sofrem dramas semelhantes.
O diretor de Comunicação Celso Teixeira tem sido procurado desde o dia 22 de outubro por Jornalistas Livres. Vários recados foram deixados com a secretária do departamento. No dia 23, Teixeira mandou dizer que só atenderá a nossa equipe depois da votação do próximo domingo. Diante da recusa, insistimos, enviando as perguntas principais que gostaríamos de fazer a ele. Celso não as respondeu. Porém, a direção emitiu uma nota se defendendo de acusações de favorecimento de Bolsonaro publicadas por várias mídias. Um trecho: “O principal acionista Edir Macedo, ainda no primeiro turno, informou sua opinião pessoal em sua rede social particular. Um direito individual garantido pela Constituição e já exercido por ele em eleições anteriores. A decisão em nada influencia as posições da emissora, que tem um jornalismo premiado internacionalmente e reconhecido pelo público e anunciantes.” O texto explica ainda a entrevista de Bolsonaro no dia 4, como “parte de uma estratégia do mercado de televisão que visa transmitir ao telespectador informações em primeira mão com agilidade”.
Faltando três dias para as eleições, a audiência dos veículos de Edir Macedo continua recebendo propaganda eleitoral travestida de reportagem – um veneno recheado de mentiras.
Veja aqui a resposta do Grupo Record aos questionamentos que lhe tem sido dirigidos:
Nota à Imprensa
A Record TV repudia de forma veemente as declarações caluniosas, falsas e preconceituosas do candidato Fernando Haddad contra a emissora nas últimas semanas. Essas ofensas atingem diretamente todos os funcionários e colaboradores do jornalismo que se empenham em coletar informações com um único propósito: atestar a veracidade dos fatos de maneira clara e isenta para que o telespectador tenha a liberdade de tirar suas próprias conclusões.
Com mais de 30 anos de tradição e credibilidade na cobertura de eleições no Brasil, a Record TV procura sempre apresentar suas reportagens jornalísticas de forma equilibrada, mesmo com as críticas infundadas e ofensivas de qualquer candidato. A prova disto são as 11 horas de notícias diárias ao vivo, mais de 800 reportagens por dia produzidas por 2.000 jornalistas espalhados pelo país. Um trabalho de credibilidade em que todos os profissionais priorizam, ao máximo, se afastar de tudo aquilo que possa pôr em dúvida a sua isenção aos fatos.
A emissora também denuncia a estratégia de alguns veículos de comunicação que claramente apoiam Fernando Haddad e de blogs ligados ao candidato que usam estas mesmas falsas acusações para atacarem a Record TV, o portal R7.com e as empresas do Grupo. A ação orquestrada ainda usa de estratégia criminosa de reproduzir estes textos e declarações levianas em panfletos ilegais e apócrifos atacando nosso jornalismo e os profissionais que aqui trabalham com objetivos escusos de tumultuar a eleição.
O principal acionista Edir Macedo, ainda no primeiro turno, informou sua opinião pessoal em sua rede social particular. Um direito individual garantido pela Constituição e já exercido por ele em eleições anteriores.