Por Gabriel Lima - A menos de um mês do início da Copa do Mundo da Rússia as telas brasileiras são tomadas por uma série publicitária do Banco Itaú, patrocinador da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Os filmes têm como personagem principal o técnico Tite motivando, com suas famosas frases de efeito, o escrete brasileiro e os 200 milhões de possíveis torcedores.
Trata-se da série "Entrelinhas", campanha institucional realizado pelas agências África e DM9DDB para o Itaú, com o foco em explorar o patrocínio do banco à seleção brasileira de futebol masculino. A série se vale de infinitos elementos semióticos em busca da construção da narrativa do Brasil unido e virtuoso. Na camisa da CBF usada pelos jogadores, o espaço destinado à identificação dos atletas dá lugar para as palavras "Respeito", "Ética" e "Esperança", junto à já manjada trilha sonora motivadora e a voz de Tite narrando descontextualizados casos de sucesso de sua carreira.
Em outro momento, representando o brasileiro médio, aleatórios falam com a voz do treinador. Entre eles existem negros, como o cantor Thiaguinho, travestis e trabalhadores que cumprem a tabela da demagogia publicitária, compondo o utópico reflexo de um Brasil conciliado para torcer pelo hexa, um Brasil que só existe na alucinação dos Setúbal e dos publicitários que os servem, ou dos diretores da Bahia branca na "Novela das Oito". Os filmes são feitos em storytelling, um recurso que busca promover o produto sem necessariamente falar dele. Para isso, as estórias reais do personagem, no caso o técnico Tite, são contadas de modo a emocionar e persuadir o público. Entretanto, no caso da série "Entrelinhas", o que se nota é um distanciamento abissal da realidade em vários aspectos. O primeiro deles é o social. Cmo já dito, o Brasil conciliado e unido do qual Tite fala está longe de existir.
No assunto futebol, o comercial também se distancia grosseiramente da realidade. Tite invoca a seleção brasileira de 1982, invoca Sócrates, Falcão e Zico. Daí entra o único limite da canalhice publicitária que insinua, mas não o permite compará-los com Paulinho, Renato Augusto e Fred. Tite fala então sobre a seleção modelo e o resgate da autoestima e do bom futebol. Tirando por isso já dá para saber que os publicitários, os banqueiros e o técnico da seleção sabem muito sobre autoestima, não a do povo, mas a suas próprias. Já sobre futebol, realmente não sabem, ou se sabem, preferem não tocar no assunto. Aliás, a campanha publicitária que busca entusiasmar o Brasil para a Copa do Mundo de futebol fala sobre tudo, menos sobre futebol. Cita até o saudoso reacionário Nelson Rodrigues na voz de um suposto repórter. Rapidamente o técnico Tite responde, quando questionado sobre complexo de vira lata: "Já tive, hoje não tenho mais", como se o esquema tático prostituído que viola as características mais singulares do nosso futebol e o estereótipo dos comentaristas brancos, descolados de suéter e mocassim não fossem um desdobramento do tal complexo.
Em 1970 em pleno os anos de chumbo da ditadura militar, a seleção substituía o polêmico João Saldanha pelo servil e isento Zagalo. A base do time pouco mudou, o Brasil conquistou o tri. O motivo da substituição do técnico era evidente, João Saldanha se recusava a atender as intervenções que o regime militar tentava realizar na seleção. Além disso, Saldanha tinha relações muito próximas com o PCB e os militares tinham medo de que o tricampeonato fosse conquistado sob o comando de um comunista. Naquele ano, enquanto líderes políticos oposicionistas eram assassinados, as televisões e rádios entoavam o jingle "Pra frente Brasil". 1970 e 2018 estão mais próximos do que imaginamos.
Tite diz, ou o roteiro diz, que "vencer é vencer em campo, não só no placar", e que "podemos sair até sem a estrela" referindo-se ao título da copa e reforçando uma das pretensões da campanha de dar outro significado para a palavra vencer e dizer que é possível que ocorra mesmo quando não ganhamos. Paradoxalmente, pelos antônimos das palavras o texto traz a revelação que nos falta enquanto povo, que no caso do Brasil em 2018, quando a onda conservadora avança, negros, mulheres e homossexuais são assassinados, direitos são violados todo o tempo, a nação é submetida a mediocridade política, a pequenez diplomática e ao caos econômico, nós já perdemos ainda que o hexa venha. Perdemos quando, a pedido do Ronaldo Nazário, Neymar foi às redes sociais pedir voto para Aécio Neves no segundo turno das eleições de 2014. Mesmo após o fatídico 7X1, o jogador não teve vergonha de fazer o seu pronunciamento político, em uma genuína manifestação da ignorância, onde não consegue tocar nem o primeiro grau de conhecimento sobre o próprio país. Perdemos quando Thiago Leifert, o apresentador meritocrata, filho de magnata da Globo, publicou que o esporte não é lugar de manifestação política. Perdemos quando Felipe Melo voltou ao Palmeiras e esqueceu o futebol para se ancorar em um personagem midiático, cuja prática comum é incitar a violência e declarar apoio ao candidato fascista à Presidência. Quando torcidas insistem em gritos de arquibancada que ofendem mulheres e homossexuais, ou quando torcedores são racistas. Quando Galvão Bueno tenta forçar a barra na rivalidade com a Argentina. Quando a Globo tenta censurar um Casagrande completamente desalentado com a péssima qualidade do nosso futebol atual. Em todas essas ocasiões já perdemos, mesmo que o futebol estéril e sem graça de Tite seja vitorioso na Rússia.
*Gabriel Lima é produtor audiovisual, escritor por hobby e militante do PCdoB-MS.